Índice de Capítulo

    — Estão todos inteiros? — Yonzu varreu o grupo com o olhar enquanto recuperava o fôlego.

    Atrás deles, o túnel desmoronava em uma nuvem de poeira e escombros. O estrondo abafado das rochas da caverna ainda ecoava no ar, misturado ao som irregular dos tremores. Haviam escapado no último instante, agora se encontravam na saída traseira da caverna, tentavam recuperar o fôlego e processar o que acabara de acontecer.

    Hal tossiu, tentando dissipar a poeira do rosto. 

    — O que diabos foi isso? Um terremoto?

    Isabel, sentada sobre uma pedra com a lança apoiada no ombro, estreitou os olhos. 

    — Aquelas duas… Elas não eram inimigos comuns. São muito mais fortes do que os goblins da clareira.

    — Gigantes — corrigiu Yonzu, e cruzou os braços. — O termo correto para elas é gigante.

    Isabel revirou os olhos, exausta dos termos técnicos empregados. 

    — Eu não sou da classe caçadora para me importar com essas trivialidades.

    Hal cruzou os braços, impaciente. 

    — E agora? Vamos simplesmente abandonar Adrian?

    — Vamos atrás de Vítor — respondeu Yonzu sem hesitar. — Adrian consegue se virar.

    — Vítor também. Que ideia estúpida — resmungou Diovanni. — Devíamos procurar outro caminho de volta e pedir reforços.

    — Está sugerindo que o deixemos para trás? — Argus sorriu de canto, seu tom carregado de ironia.

    — Sim — respondeu Diovanni, sem rodeios.

    Yonzu estreitou os olhos. 

    — Acha que sobreviveremos a outra onda de ataque? Vítor é um cinco estrelas, nossa melhor chance de sair daqui vivos. Não é ele que precisa de nós, somos nós que precisamos dele.

    Diovanni riu do comentário de seu oficial.

    — Está confiando demais em um cara da guilda dos ‘Dragões dos Sol’, o que é isso? Bateu com a cabeça em algum lugar?

    Yonzu manteve a expressão séria, sem ser levado pelas emoções ou provocações de seus subordinados.

    — Ele é um membro do conselho interno, um dos dez heróis mais fortes que temos. Se ele não consegue, quem mais vai conseguir?

    — Dante e Uriel, são os dois nomes que consigo pensar no momento. Tem mais alguém do conselho interno mais forte que eles? — intrometeu-se Argus na discussão.

    Todos ficaram calados, e tentaram pensar em alguém para contrapor Argus. Não havia ninguém. Sabiam que apesar de haverem heróis na frente dos três, a maioria deles eram heróis de suporte, ou que haviam conquistado grandes quantidades de pontos com missões secundárias que não necessariamente envolviam combate.

    Em quesito poder bruto, a classificação era: Uriel, Dante e Vìtor, nessa ordem.

    Isabel soltou um longo suspiro, e quebrou o silêncio.

    — Em vez de perdermos tempo discutindo, que tal sairmos daqui antes que mais inimigos apareçam?

    Argus virou-se para ela, franzindo o cenho.

    — Para onde? O que vamos decidir? Resgatar Vítor ou tentar fugir e chamar reforços?

    Yonzu deu um passo à frente, a voz carregada de autoridade.

    — Como oficial da guilda dos Cavaleiros do Inverno, eu ordeno: iremos resgatar Vítor e exterminar todos os goblins em nosso caminho. Faremos justiça pelos nossos companheiros caídos na clareira. Pelos nossos amigos assassinados por essas pragas!

    Ninguém levou as palavras dele a sério, apenas se entreolharam uns aos outros constrangidos pelo discurso.

    — Se queria nos animar, não funcionou não — comentou Hal com um desaprovar de cabeça.

    — Tenho que pensar em algum juramento mais profundo da próxima vez… — Yonzu suspirou, bastante desapontado com o resultado. — Vocês entenderam o meu ponto, então vamos lá, atrás de Vítor…

    O grupo se levantou, e preparou-se para partir. Eles ainda recuperavam o fôlego da corrida, e não estavam muito dispostos para uma caminhada até a montanha.

    — Atrás de mim? — falou uma voz familiar nas copas das árvores.

    Vítor desceu da árvore com um mortal no ar. Ele caiu na frente do grupo e sorriu.

    — Me resgatar? Por que eu precisaria disso?

    — Você não é Vítor — afirmou Yonzu sem hesitar, e preparou seu arco contra a cabeça do adversário.

    — Como assim? Por que está suspeitando de mim? — questionou ele, ao levantar as mãos em sinal de rendição.

    — Porque Vítor jamais perguntaria isso — respondeu Yonzu, a flecha já retesada contra a corda do arco.

    Os demais membros do grupo entraram em posição de combate, trocando olhares cautelosos entre si. Hal ergueu o cajado, Isabel apontou a lança, e até Diovanni, que momentos antes duvidava da missão, levantou seu escudo, pronto para o que viesse a seguir. 

    O silêncio pesou no ambiente, apenas o farfalhar das folhas ao vento e os estalos das brasas no solo quebravam a quietude.

    A figura que se passava por Vítor olhou ao redor, como se medisse suas opções. Seu sorriso permaneceu, e algo em seu olhar mudou, como se estivesse prestes a desistir da farsa.

    — São mais espertos do que parecem…

    E então, a ilusão se desfez. Seu rosto começou a se distorcer, as feições humanas se dissolveram em uma textura peluda e selvagem. Suas roupas se transformaram, o uniforme branco dos Dragões do Sol se transformou em uma armadura cinzenta e se ajustou ao novo formato. Uma longa cauda de macaco surgiu de suas costas, e balançou lentamente no ar. Suas mãos se alongaram, os dedos agora mais grossos e ágeis.

    Com um gesto fluido, um enorme bastão de madeira surgiu em sua mão, e se materializou no ar  como se sempre tivesse estado ali. Ele girou a arma, antes de apoiá-la casualmente sobre os ombros.

    — Tenho ordens de levá-los vivos. — O primata sorriu, sua postura aparentemente relaxada, e sem demonstrar grande ameaça. —— Mas isso não significa que eu não possa machucá-los se resistirem…

    O grupo ficou tenso com a ameaça, e logo se levantaram no chão, e assumiram posições de combate. Ainda não conheciam aquele inimigo, mas era óbvio que não podiam confiar nele. Ser capturado simplesmente não era uma opção.

    De repente, um garoto surgiu das sombras, ele corria de forma meio desesperada na direção do macaco. Ele tinha orelhas de rato sobre a cabeça, e sua expressão transbordava de insegurança.

    — Sun… Temos que voltar agora! — gritou, visivelmente nervoso. Suas mãos tremiam, e sua voz vacilava.

    Sun não desviou os olhos do grupo, e respondeu para o garoto sem sequer olhar para trás.

    — O que aconteceu?

    — O ‘Exército de Libertação’ está aqui… — murmurou o garoto, ofegante. — A chefe quer você de volta. Precisamos discutir o plano de ação…

    O ar ficou pesado. A simples menção àquele nome fez um arrepio percorrer a espinha de todos. O ‘Exército de Libertação’… Os lacaios de Erobern. Eles também estavam na floresta?

    Sun soltou um suspiro, seu tom de voz duro.

    — Não vê que estou ocupado?

    Apesar do tom ríspido, era evidente que a notícia o abalara, e sua confiança e determinação vacilavam.

    — São ordens da chefe… — o garoto gaguejou, hesitante.

    Pela primeira vez, Sun virou a cabeça para encará-lo.

    — Mice, você confia em mim?

    O garoto hesitou, e colocou a mão na testa franzida.

    — Eu… Eu não sei…

    — Apenas confie. Volte em quinze minutos, e tudo estará resolvido. — Sun girou o bastão, e uma rajada de vento sacudiu as folhas e fez as árvores rangerem.

    Mice encolheu os ombros, claramente desconfortável, porém foi vencido sem demonstrar muita resistência pelos comentários do colega selvagem.

    — Tudo bem…

    Sem dizer mais nada, desapareceu na mata.

    O macaco voltou a sorrir para o grupo, como se tivesse recuperado a confiança.

    — Onde estávamos? Ah, sim… Vocês iam me seguir.

    Ele ergueu o bastão sobre os ombros, e retornou a sua postura relaxada de antes.

    — Achei que seria mais fácil para vocês, se eu tivesse o rosto do seu amigo… — provocou. 

    E então, diante dos olhos de todos, suas feições começaram a se contorcer. Em instantes, a face bestial cedeu lugar à de Vítor. O corpo permaneceu inalterado, a cauda balançava suavemente com a brisa da floresta.

    Yonzu estendeu a corda do arco, a mira fixa no peito do inimigo, e afirmou com voz firme: — Vai ter que nos matar primeiro…

    — Não seria tão difícil — retrucou ele com uma gargalhada debochada. — E então, como vai ser? Quem vai dar o primeiro golpe?

    Todos ficaram imóveis, a tensão no ar era crescente.

    — Vamos lá, serei gentil: vou permitir que ataquem primeiro. Ou estão com medo de enfrentar o seu amigo? — sugeriu, ainda com a aparência de Vítor.

    — Isso só facilita as coisas… Sempre quis dar uma surra naquele bastardo! — Argus declarou, ao recarregar sua escopeta e preparar-se para disparar contra Sun.

    Ao apertar o gatilho, os projéteis atingiram o alvo; contudo, o adversário permaneceu impassível, esboçando apenas um leve sorriso, como se as balas tivessem simplesmente atravessado seu corpo.

    — Argus! Cuidado! — Diovanni gritou, saltando para se posicionar nas costas de seu companheiro e protegê-lo com o escudo.

    De repente, o macaco reapareceu do nada, com o rosto bestial e o bastão pronto para desferir um golpe mortal nas costas de Argus. Por sorte, Diovanni antecipou o movimento, interceptando o ataque com seu escudo. Mesmo armado, a força do golpe foi suficiente para arremessá-lo para longe.

    — Belos reflexos… — murmurou o primata com o rosto de Vítor, antes que sua imagem se desvanecesse no ar, e revelou ser apenas uma ilusão.

    — Fiquem juntos! — ordenou Yonzu, enquanto o grupo se reagrupava em um semicírculo, com as costas voltadas para a saída desmoronada da caverna.

    O macaco soltou para um galho no alto de uma árvore.

    — São mais interessantes do que eu pensei, tiveram sorte de me encontrar. Eu gosto de me divertir nas minhas lutas, meus companheiros não seriam tão misericordiosos.

    — O que é você? — Yonzu estreitou os olhos, ainda tentando encaixar todas as peças do que estava acontecendo naquela floresta.

    Sun riu, o olhar carregado de desdém.

    — Um selvagem, é claro! Ou sua mente limitada não consegue compreender isso?

    Ele se inclinou levemente para frente, a postura sempre relaxada, mas carregada de perigo.

    — Ainda assim, estou lhes dando uma opção. Venham comigo, e pouparei vocês da humilhação de serem derrotados. O fim será o mesmo, mas ao menos evitarão um espetáculo vergonhoso.

    — Você sairá daqui morto! — Yonzu rosnou com ódio no coração com aquele desaforo, e disparou uma flecha envolta de uma aura azulada sem nenhuma hesitação.

    Com um movimento casual, Sun a pegou no ar, sem o menor esforço. Ele girou o projétil entre os dedos e soltou uma risada baixa.

    — Tão lento… Ainda uma criança brincando de guerreiro. — Ele quebrou a flecha com um estalo seco. — Seria covardia da minha parte lutar contra vocês? Talvez… Mas estão em maior número. Então, acho que podemos chamar isso de uma luta justa.

    A tensão no ar era sufocante. Aquele inimigo era diferente de qualquer um que haviam enfrentado antes. Até agora só haviam lutado contra monstros irracionais em Testfeld, jamais contra um ser que parecia tão racional. Ele não era apenas forte, era inteligente. Um adversário repleto de truques, e, pior ainda, se divertia com a situação.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (2 votos)

    Nota