Índice de Capítulo

    Alice caminhou até a fila designada, seus passos hesitantes. A mente, um turbilhão de teorias. Seria aquilo um jogo? Um sonho? Mas nada parecia tão simples. Tudo era vívido demais. Ela sentia o calor do sol filtrado pelos mosaicos incrustados no alto do salão, que projetavam padrões de luz colorida sobre o chão branco de mármore. O calor acariciava sua pele, uma sensação de vida tangível. Não, aquilo não era um sonho. Era real. Mas como? Por quê?

    Ao seu redor, o murmúrio das outras pessoas crescia. Pequenas conversas dispersas começavam a superar o silêncio que antes pairava sobre o “Salão dos Heróis”. E não demorou para que Alice fosse colocada em uma dessas conversas.

    — E você, qual é o seu nome? — Uma garota atrás de Alice perguntou para ela.

    — Eu? — questionou, ao apontar para si.

    — Sim, você… — A garota cruzou os braços, o olhar sério contra Alice. Era uma garota jovem, provavelmente um pouco mais velha que Alice, com seus dezoito anos, cabelo preto bem curto.

    — Sou Alice… — respondeu, um pouco tímida.

    — Amanda… — disse, com a voz meio rude. — Tem alguma ideia de por que estamos aqui?

    Alice balançou a cabeça em negativa a questão.

    — Nenhuma de vocês sabe de nada pelo jeito… — resmungou Amanda, ao virar-se para as garotas atrás dela na fila. — Vocês são da onde?

    — A moça disse para a gente não falar nada além do nome e idade… — rebateu outra garota, a voz meio nervosa. Era a menor delas, os cabelos castanhos escuros que iam até a cintura, amarrados por um laço com joaninha.

    — E você acredita nela? Não me surpreende que não saiba de nada! — retrucou Amanda.

    — Sou de Xique-Xique, Bahia… — intrometeu-se uma quarta garota, uma jovem musculosa de cabelos castanhos claros, e mechas loiras nas pontas. Ela disse com uma voz forte, quase no mesmo tom que Amanda resmungava.

    — Onde que é isso? México? África? — Amanda continuou a questionar. — Você não tem cara de africana, parece latina.

    — Algum problema? — A garota se impôs, sempre mantendo o mesmo tom de Amanda.

    — Realmente não me importo… — retrucou, ao cruzar os braços novamente e virar o rosto com desprezo. Para logo então voltar o olhar para a garota menor. — E você? De onde vem?

    — Disseram pra gente não falar isso… — Ela se encolheu, medrosa.

    — Cala a boca. — Amanda rebateu, ao segurar a gola da camisa da garota menor com força. — Ela falou e nada aconteceu. O que poderia acontecer de pior?

    Antes que a situação escalasse, a garota musculosa interveio, a voz ainda firme, porém, agora com uma polidez inesperada:

    — Solta ela…

    Amanda hesitou por um instante, mas manteve o aperto.

    — Não, tudo bem… — sussurrou a garota menor. Ela ergueu as mãos em um gesto de calma. Ela respirou fundo e tentou responder à pergunta que ecoava entre elas. — Eu sou de…

    Sua voz falhou. A frase ficou incompleta, as palavras presas em sua garganta. Ela tentou novamente, mas nada saía. Seus olhos arregalaram-se em pânico. Levou as mãos ao rosto, instintivamente, e então sentiu o horror indescritível: ela não tinha mais boca. Lágrimas de desespero escorreram pelo rosto, enquanto ela tentava gritar.

    — Que maldição… — exclamou Amanda surpresa. Ela soltou a gola, e deixou a garota cair no chão.

    — O que você fez? — indagou preocupada a garota musculosa, ao se ajoelhar ao lado da menina e tentar ajudá-la.

    — Me desculpa, eu não sabia… — murmurou Amanda, os olhos com lágrimas de terror e arrependimento.

    — Moderador! Moderador! — Um dos heróis que faziam a patrulha das filas começou a gritar freneticamente, enquanto um círculo de ritual vermelho se iluminava no chão.

    — Fiquem todos calmos… — gritou Angeline, do alto do palco. — Não façam movimentos brucos… A visão dele é baseada no movimento… 

    Os olhares assustados dos heróis novatos se voltaram para o centro do círculo, enquanto os veteranos mantinham expressões serenas, embora a tensão fosse visível em seus músculos rígidos, e a posição de combate que a maioria deles se posicionava. O círculo pulsava, e então, de dentro dele, algo começou a emergir.

    Primeiro, uma enorme mão avermelhada atravessou o brilho, os dedos grossos e pontiagudos arranharam o chão. Em seguida, a criatura inteira saltou para fora, e toda a sua grandiosidade foi apresentada para o resto do salão. Tinha quase três metros de altura. Seu corpo era musculoso e coberto por uma pele avermelhada. Exalava um forte odor de enxofre que tomou conta do ambiente. 

    Vestia roupas completas de couro marrom, calças largas, e uma camisa cujos braços musculosos ficavam a mostra. Na cabeça, um chapéu de vaqueiro desbotado, com quatro aberturas de onde emergiam dois pares de chifres negros e retorcidos.

    Sob a sombra do chapéu, os olhos da criatura brilhavam como brasas. Suas pernas terminavam em cascos de bode, que batiam no chão com um som profundo e metálico a cada passo.

    — O que é você? — indagou, hesitante, um herói próximo ao local de onde a criatura havia emergido. Era  voz de curiosidade, todavia o medo era maior.

    — Mefistófeles… — respondeu à criatura, sua língua bifurcada escapou entre os dentes afiados enquanto falava. Ele ergueu a cabeça, e fixou o olhar no palco onde o trio de heróis veteranos se encontrava, e apontou para eles com uma garra longa e afiada. — Toda segunda-feira é a mesma coisa… Sempre sou invocado para punir infratores da primeira regra. Vocês são patéticos, fazem um trabalho deplorável… — Ele cuspiu no chão, e a saliva corrosiva queimou o mármore, e deixou uma marca negra e fumegante.

    — Eles só aprendem na prática… — respondeu Magnus, com um sorriso frio e indiferente.

    — Muito bem… — Mefistófeles rosnou, enquanto duas correntes macabras, feitas de um metal escuro e pulsante, se materializavam em suas mãos. Ele as segurou com firmeza e começou a caminhar lentamente no meio das filas, os olhos vermelhos analisavam cada rosto congelado pelo medo. — Quem devo julgar?

    — O que é essa coisa? — gritou alguém na multidão, o pânico evidente.

    — Um moderador… — respondeu Magnus, sem um pingo de emoção na voz. — Como podem ver, eles são demônios.

    O salão foi tomado por um murmúrio de horror, mas ninguém ousava se mover.

    — Tenho que voltar para casa! — sussurrou uma pessoa no meio da multidão, a frase era um pedido desesperado.

    Mefistófeles parou abruptamente e girou a cabeça em direção à voz. Um sorriso cruel se abriu em seu rosto.

    — Casa? — ele repetiu, e deixou escapar uma risada grave. — Vocês só voltam para casa depois de cumprir sua missão, seus patéticos inúteis! De todos vocês, apenas um por cento é digno de permanecer vivo. E eu sou aquele que julga quem merece continuar!

    Antes que alguém pudesse reagir, ele girou as correntes com precisão assustadora. Em um movimento rápido, uma delas envolveu o herói que havia falado. Não houve tempo para gritos; em um instante, o corpo dele desapareceu em meio a uma explosão de fumaça negra e o cheiro sufocante de carne queimada tomou o salão.

    Mefistófeles gargalhou alto, um som grave e distorcido que ecoou pelas paredes de pedra.

    — Mais alguém? — perguntou, com a voz carregada de sarcasmo e ameaça. Ele girou as correntes novamente, como se saboreasse a ideia de repetir o ato.

    O pânico tomou conta do salão. Mais de uma centena de heróis começaram a correr em direção às portas. Alguns até conseguiram abri-las e fugiram para os corredores do pavilhão, entretanto suas esperanças foram rapidamente esmagadas.

    — Patéticos… Estragaram a diversão do meu trabalho… — suspirou Mefistófeles, decepcionado, enquanto estralava os dedos com um som seco e definitivo.

    No mesmo instante, sombras disformes em forma de mãos surgiram do chão, acompanhadas por círculos ritualísticos brilhando em um branco espectral. Cada um dos que tentaram escapar foi agarrado e puxado para baixo, suas vozes de pânico se extinguiam à medida que eram consumidos pelos círculos. O ar foi tomado por um cheiro horrível de carne queimada, uma mistura pútrida e nauseante que fez muitos lutarem para não vomitar.

    — Meu trabalho se encerra por aqui… — anunciou Mefistófeles, ao guardar as correntes que lentamente desapareceram em um redemoinho de névoa negra. Ele lançou um olhar severo para Magnus, que permanecia indiferente. — Certifique-se de que eu não seja chamado de novo esta semana.

    — Farei o que puder… — respondeu Magnus, com um leve encolher de ombros, antes de trocar um olhar rápido com Angeline, que parecia esconder uma gargalhada atrás da mão.

    Um novo círculo vermelho apareceu sob Mefistófeles, e, em um instante, ele desapareceu como havia chegado, levando consigo o cheiro de enxofre e carne queimada.

    — Por favor! Eu só quero ir para casa! — gritou alguém na multidão assim que o moderador sumiu.

    Magnus virou-se para todos, sua voz autoritária ecoou pelo salão.

    — Não existe mais casa… Só existe Testfeld! Pensem nisso como um jogo, seus fracotes! Agora, voltem às filas, escolham suas malditas classes e vamos começar o tutorial!

    — Esse é o pior grupo que tivemos nas últimas semanas… — murmurou um dos guardas da fila para o colega ao lado.

    Ninguém se atreveu a responder. O silêncio pesado tomou conta do salão, quebrado apenas pelo som hesitante de passos enquanto os sobreviventes voltavam lentamente para as filas. O pavor estampado em seus rostos era suficiente para garantir que não haveria mais tentativas de fuga.

    Amanda, no entanto, desviou-se da fila para auxiliar a garota menor a se levantar. De alguma forma, Mefistófeles a havia ignorado, e a boca dela, milagrosamente, estava de volta.

    — Você está bem? — perguntou Amanda, ao estender  a mão.

    — Sim, obrigado… — respondeu a garota com um sorriso tímido, a voz embargada de alívio.

    — “Qual é a pior coisa que poderia acontecer?”, francamente… Você praticamente implorou para que algo desse errado… — disse a garota musculosa, rindo apesar da tensão no ar. — Eu me chamo Beatriz, e ela é Emily.

    — Prazer! — Emily sorriu nervosamente, seus olhos ainda denunciavam o medo que sentia.

    — Desculpa por isso… Eu realmente não esperava que eles invocassem um demônio… — Amanda sorriu de volta, tentando aliviar o clima.

    “Essas garotas estão loucas? Como conseguem agir tão casualmente depois disso? Elas não perceberam o que acabou de acontecer?!” Alice pensava, olhando para trás enquanto lutava para manter a calma. Ansiosa, ela avançava na fila, tentando imaginar o que a aguardava ao entrar na sala.

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