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    — De novo!

    Vítor gritava a cada tentativa frustrada de Alice. O progresso parecia lento, entretanto, na realidade, não era. Comparada a outros heróis em treinamento, Alice avançava a uma velocidade impressionante, ainda que ela mesma não percebesse, e nem soubesse.

    — De novo! — repetiu Vítor, ao ver a última esfera de fogo se dissipar no ar, chegando apenas a poucos metros do alvo.

    O alvo era um grande círculo de madeira reforçada, coberto por uma fina camada de resina anti-magia, uma substância rara e valiosa, capaz de neutralizar qualquer tipo de habilidade mágica. Esse detalhe fazia dele o material perfeito para treinamentos de heróis, garantindo que nenhuma habilidade destruísse o alvo completamente. Graças a essa resistência natural, podia ser reutilizado inúmeras vezes.

    — Estou tentando! — bradejou Alice, bem frustrada e irritada com Vítor no ouvido dela o tempo todo. — Bola de Fogo!

    Tomada pela frustração, ela nem percebeu o que havia feito de diferente. Até então, sempre estendia o braço e conjurava a magia de forma estática. Mas, dessa vez, em um gesto inconsciente, puxou o braço para trás e o lançou à frente como se arremessasse algo.

    A esfera de fogo voou de forma rápida, muito mais veloz do que todas as outras tentativas. Infelizmente, ela não acertou o alvo, pelo contrário, errou por uma grande margem. Sem colidir com o alvo, o projétil seguiu adiante, disparado como um cometa incandescente. Apenas ao atingir o muro do outro lado do campo é que a bola se dissipou em um clarão de brasas e calor.

     Vítor bateu palmas de maneira irônica.

    — Parabéns… — disse, com um sorriso sarcástico, e também orgulhoso pelo progresso da aprendiz. — Finalmente. Já estava preocupado de que fosse perder meu almoço.

    Alice respirava ofegante, os músculos tensos pelo esforço repetitivo.

    — Terminamos? — questionou, feliz pelo resultado do primeiro treino.

    — Sim. — Vítor virou-se na direção do pátio de treinamento, onde a fumaça subia lentamente da chaminé da cozinha. — Vamos para o refeitório. Espero que tenham feito algo decente hoje…

    Enquanto caminhavam pelos corredores da fortaleza, Alice teve a chance de observar melhor o local. Havia um calor peculiar ali, não apenas pelo clima, mas pela própria atmosfera vibrante do lugar. Pátios menores espalhavam-se pelo complexo, adornados com fontes cristalinas e jardins bem-cuidados.

    As paredes dos corredores eram repletas de quadros, esculturas e obras de arte, cada uma contando uma parte da longa história dos heróis que ali passaram. A maioria dos retratos representava guerreiros de grupos passados, os dignos de serem imortalizados na história pelos seus grandes feitos.

    A fortaleza era bem grande, e eles levaram cerca de cinco minutos até chegarem ao refeitório. O salão era imenso e espaçoso, com quatro longas mesas de madeira robusta dispostas no térreo. Acima delas, uma escadaria levava a um mezanino elevado, onde uma mesa enorme dominava a visão do alto, reservada para figuras de maior importância. O lugar era iluminado por tochas de fogo azul, na parede, e enormes candelabros no teto.

    Nas mesas, diversos membros e recrutas compartilhavam refeições e conversas, e criavam um ambiente animado e descontraído. Três das grandes mesas estavam ocupadas. Duas delas reuniam um grande grupo de jovens, em sua maioria homens, vestidos com os mesmos uniformes simples de treino que Alice usava. A terceira mesa, no entanto, era diferente.

    Ali, jovens mulheres, não muito mais velhas que Alice, ocupavam seus lugares com uma postura mais refinada. Algumas usavam vestidos elegantes de diversas cores, enquanto outras trajavam uniformes brancos semelhantes ao de Vítor, mas com um imponente sol dourado entalhado nas costas. Diferente dos recrutas barulhentos, elas pareciam mais contidas, e conversavam em tons mais baixos, embora algumas risadas suaves ressoassem ocasionalmente

    Quando Vítor entrou no salão, um breve silêncio se instalou. Todos os presentes baixaram a cabeça em respeito, criando um contraste repentino com a algazarra anterior. Sem alterar sua expressão de tédio, Vítor apenas inclinou levemente a cabeça em resposta, e o burburinho das conversas logo retornou.

    Alice o seguiu até um balcão de madeira polida. Atrás dele, uma grande abertura revelava a cozinha movimentada, onde várias pessoas trabalhavam em meio ao calor das panelas e ao cheiro de comida recém-preparada.

    — Vítor, achei que tivesse ido almoçar com Uriel… — disse uma mulher idosa atrás do balcão, a voz rouca e carregada pelo peso de muitos anos de tabagismo. — O que vai querer de almoço?

    — O de sempre… — murmurou ele, ao apoiar o ombro no balcão.

    A mulher então voltou seu olhar para Alice, parada ao lado dele, e notou o uniforme cinza de recruta.

    — Você, novata. A comida dos recrutas já acabou. — Sua voz firme, sem nenhum resquício de simpatia. — Da próxima vez, chegue mais cedo. Ainda há restaurantes abertos na cidade baixa. Se for rápida, talvez consiga alguma coisa antes de ficar sem almoço.

    Alice ficou desnorteada com a fala da mulher, e tentou protestar. Vítor não lhe deu tempo, ele intercedeu ríspido, da mesma forma que a mulher havia falado.

    — Sirva a comida dos oficiais para ela. — Sua ordem foi seca e direta, enquanto pegava sua bandeja sem dar mais explicações.

    A cozinheira arqueou as sobrancelhas, surpresa.

    — Como é que é? Uriel permitiu que eu servisse a comida dos oficiais para… essa de baixo nível?

    Vítor interrompeu seu gesto de pegar os talheres e virou-se para encará-la.

    — São ordens minhas. Você as questiona?

    A mulher engoliu.

    — Não, vice-líder.

    — Ótimo. Alice, pegue seu prato. — Ele se afastou, no início da escadaria para o mezanino. — Estarei esperando no andar de cima.

    Alice olhou para a cozinheira, que resmungou algo inaudível antes de colocar a comida em uma bandeja e empurrá-la para frente com pouca cerimônia. O prato consistia em uma generosa porção de arroz, verduras cozidas e um grande bife acebolado, muito mais elaborado do que a ração simples dos recrutas.

    Quando pegou sua bandeja, ouviu a cozinheira murmurar, incrédula:

    — Ela vai sentar na mesa dos oficiais?

    — Vai… — respondeu Vítor, já na parte de cima. Sem olhar para trás.

    Alice pegou a bandeja e subiu até o mezanino, seus passos cuidadosos para evitar qualquer acidente. Ao chegar ao topo, encontrou Vítor sentado com a cabeça baixa, os lábios se moviam em silêncio, como se murmurasse algo inaudível. Ele ainda não havia tocado na comida.

    Hesitante, Alice sentou-se ao lado dele. Foi apenas então que Vítor ergueu o rosto, lançou-lhe um pequeno sorriso e pegou o garfo, e levou uma grande porção de arroz à boca. Engoliu sem mastigar, antes de comentar, de forma despreocupada:

    — O gosto é estranho, mas é bom… Pode acreditar.

    — Estranho? — Alice franziu a testa.

    — O tempero. O arroz deles também é um pouco aguado para o meu gosto. Mas tanto faz… É o melhor que temos. — Ele cortou um pedaço do bife e apontou com o garfo. — Mas essa carne de búfalo das pradarias é uma delícia. Facilmente uma das melhores de toda Testfeld.

    Alice ficou em silêncio por um momento, e o encarou antes de soltar a pergunta que rondava sua mente o tempo todo, sem pausa.

    — Por que está fazendo isso?

    Vítor desviou o olhar do prato e encarou Alice, a boca ainda com comida.

    — Isso o quê?

    — Me dando comida, abrigo, me ensinando habilidades… O que você quer?

    Ele mastigou tranquilamente mais uma porção antes de responder.

    — Já te disse. Ajuda mútua.

    Alice cruzou os braços. Ainda sem tocar no prato de comida.

    — E o que exatamente você ganha com isso?

    — Uma curandeira.

    — Existem outras.

    Vítor soltou uma risada contida e a encarou de soslaio.

    — Como você? Suas habilidades de fogo são únicas. E, mais importante… você é a única que pode me curar.

    Alice piscou, confusa.

    — O que quer dizer com isso?

    — Um dia te conto. Quando eu tiver paciência pra explicar.

    — Explique agora… — implorou, com um beicinho e um olhar de cachorro.

    Vítor apenas enfiou outra grande garfada de arroz e carne na boca.

    — Estou comendo — respondeu com a boca meio cheia. — E você também deveria. Ainda preciso te ensinar a habilidade Raio, e sua Bola de Fogo ainda está fraca.

    Ela encarou o prato na sua frente, parecia delicioso. Com um suspiro longo, cedeu a Vítor, e começou a comer seu almoço. Precisava estar bem alimentada para o treino da tarde. 

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