Capítulo 42 — Shio
Jiten não soube como chegou ao seu quarto.
Assistiu cada minuto do espetáculo de Mochiaki. Contemplou os momentos se arrastarem em um lento gotejar. O cheiro, o calor na face, o silêncio sepulcral da multidão e as palavras que lhe foram ditas no meio das chamas. Tudo aquilo o exauriu além do limite. Assistiu até o fim, sem nada fazer.
Não se lembrou de como se sentiu ao deitar, quando acordou, ainda estava com a testa banhada em suor.
Seu corpo ainda estava imobilizado. Aos poucos deu-se conta que entre o momento em que deitou e até aquela hora, havia um intervalo em que ele correu pela floresta, vislumbrou o Cedro Celeste e esteve diante de uma caverna.
Os olhos ardiam
Respirou fundo. Mais de uma vez. Até sentir que finalmente podia levantar.
Em sua mente, temia o que aconteceria se levantasse daquela esteira. Como se alguma tragédia iminente pudesse emergir e dominá-lo de súbito. Ficar parado, no entanto, apenas lhe causou ainda mais ansiedade. O corpo estava inquieto querendo se mover. Querendo fazer alguma coisa. Logo, o medo em sua mente não pôde mais contê-lo.
Tateou seu caminho até a janela. Uma massa de luz vinha dela. Era a lua, as estrelas ou algo mais? Antes de enxergar o que havia além, primeiro inspirou profundamente o ar fresco. Sentiu as narinas queimarem.
Então, soube que estava acordado. Soube também que estava vendo.
Vendo de verdade.
O mundo lá fora não parecia escuro. A noite deveria ter mergulhado tudo ao seu redor em um manto negro, mas Jiten conseguia enxergar. Não entendia o que havia mudado. Não enxergava como sempre, como se a luz do sol estivesse sobre si, mas como se o brilho da lua tivesse se tornado tão intenso que agora banhava a terra.
Não havia mais noite.
Estava de volta ao ambiente de um sonho, mas ainda acordado. Como se os dois mundos tivessem se misturado.
Sentiu-se enjoado e confuso. Sentou sob o parapeito da janela, de costas para a parede. Olhando para o ponto onde a luz da lua se projetava na janela. Estava escuro ali dentro. Alguma coisa ainda estava no lugar. Fechou os olhos, pensando que talvez pudesse retornar a dormir.
Deveria estar sonhando ou sonâmbulo. Algo entre os dois era possível? Mesmo que tentasse não poderia descobrir.
Fechar os olhos foi uma decisão ruim. Tudo o que podia ver por detrás de suas pálpebras era a coluna de fogo. O brilho intenso, mesclado com a escuridão de uma noite opressiva. Então, a lembrança dos olhos de Yuwa entre as chamas e as palavras que saíram de lá.
Abriu os olhos e fez força para manter as pálpebras abertas.
Sua respiração acelerou. Rastejou até onde havia guardado seus pertences. Envolta em um pedaço de linho estava a fruta que Yuwa lhe havia dado. Jiten percebeu que havia mais elementos naquele contrato do que ele havia conjecturado de princípio.
Era algo tão importante que a mulher dedicou suas últimas palavras a isso.
Um calafrio o fez encolher os ombros.
Sua mente ficou estagnada em algum ponto de reflexão. As ideias fluíram, mas seu corpo o impelia para seguir adiante na mais estúpida delas. Sua vida dependia disso. Mais de uma vez, a indecisão fez seu estômago embrulhar.
Agarrou a espada entre seus pertences. Ele ainda a tinha, mas não sabia por quanto tempo. Nada os prendia de verdade no castelo, mas ele sabia que o laço invisível da honra devia ser mais forte do que qualquer amarra física.
Pouco conhecia de fato sobre seus companheiros, mas sabia que pertenciam às classes senhoriais. Havia entre esses mais poderosos um código e nem sempre a solução mais inteligente valia.
Jiten amarrou a espada à cintura, envolveu o corpo com uma sobrecamisa de linho para ser capaz de aguentar o frio da noite. Abriu a porta de seu quarto e rastejou pelo corredor.
A melhor opção que tinha era chegar até Toshiro. Quem sabe, se dissesse a ele tudo o que estava acontecendo e sobre as últimas palavras de Yuwa, ele talvez entendesse e o ajudasse a ir até a floresta.
Era um plano ruim, mas era a única coisa que sua mente tão acelerada conseguia processar. Estava agitado, ansioso e parecia que a qualquer momento seu coração pararia.
Mas não havia ninguém no corredor. Nenhuma luz acesa vazando entre os vãos das portas. Tentou se mover silenciosamente, mas mais de uma vez uma tábua rangeu sob seus pés. Ficar imóvel era a única resposta. Esperar pelo pior.
Contudo, nenhum guarda surgiu no fim do corredor e nem atrás dele. O silêncio sepulcral era a única regra.
Pé ante pé, caminhou em direção a porta.
Quando sentiu o aperto no seu braço, já era tarde demais. Estava sendo puxado. Seu cérebro se bagunçou por um momento. O senso de equílibrio tentando se ajustar à movimentação abrupta e então, o ar tentando voltar aos pulmões depois de ele bater as costas na parede.
Encontrou dois olhos agressivos lhe encarando. Uma mão cobrindo sua boca. Um braço fazendo pressão em seu corpo contra a parede.
Reconheceu-a rapidamente. Era Shio, seu olhar endurecido, estranhamente alocado em um rosto que parecia muito jovem e bonito demais para ser hostil. Ela estava vestida ainda com uma veste militar, o gibão protegendo o corpo, as peles sobre os ombros e o couro de animais selvagens lhe fornecendo proteção extra.
— Fique quieto. — A ordem que ela deu parecia razoável o bastante.
Assentiu com a cabeça. A garota o liberou.
Jiten sustentou o próprio peso com dificuldade, apoiando-se na mesma parede contra a qual havia sido colocado. Ele nem mesmo sentiu de que maneira foi trazido para dentro do quarto de Shio. Seus pés ainda tocavam o chão, mas ela era claramente mais habilidosa nas sombras do que ele jamais pudera prever.
— Está fugindo? Outra vez? — Shio falou baixo, seu tom de voz bem medido para ficar levemente acima do sussurro.
Jiten fez a negativa com a cabeça. O olhar dela demonstrou com clareza que ela não acreditou.
— Eu ia falar com Toshiro. Eu preciso ir até a floresta.
Ela sorriu.
— Tem noção do quanto a gente se arriscou para buscar você?
— Eu não estou fugindo.
— Toshiro sabe sobre o seu ferimento. Bjarka contou tudo para ele. Como sempre, ele acredita em tudo o que essas bruxas dizem. Ele queria te trazer aqui e não vai admitir isso na sua frente. Acho engraçado que você não tenha o mesmo pudor e queira se esgueirar até ele no meio da noite para ofendê-lo.
Jiten abaixou a cabeça. Sua cabeça passava por muitos lugares diferentes. Era difícil processar a ideia de que aquelas pessoas estavam em perigo por causa dele. Tinha uma dívida com eles, então? Mais uma dívida. Estavam ali para salvar sua vida, não é? Por isso o levaram até Yuwa.
— Sinto muito por isso. — Foi a resposta que pôde dar.
Shio se afastou um pouco. Ela parecia lidar com os próprios pensamentos.
— Foi ele quem errou. Você é só um pastor de ovelhas. Existe um motivo para que os plebeus trabalhem no campo. Não é sua natureza enfrentar essa viagem.
— Eu quero ir. Quero fazer a jornada até a montanha. — Jiten realmente queria ir ao norte. Queria dar algum valor ao que seu mestre havia feito por ele. Mesmo assim, não encontrava algo além que pudesse argumentar. Queria ir porque não conseguia enxergar nenhuma outra opção.
— Mas eu não quero. — Shio respondeu e seus olhos ficaram fixos no rapaz. — Minha vida é muito mais complicada do que a de um camponês. Eu preciso ficar na fronteira. Em Kinyuki, onde meus guerreiros precisam de mim. Uma guerra se aproxima.
— Eu entendo que deve ser difícil de acreditar, mas…
— Você não entende nada. Você não tem noção. Nosso povo é supersticioso. O lorde Senzai quis acreditar que um garoto de olhos azuis claros em uma vila inimiga é algum tipo de lenda. Ele mandou o herdeiro dele vir buscá-lo.Você. — As palavras dela saíram em um tom baixo, mas em cada uma havia a entonação da reprovação que ela sentia por ele. — Nós já te encontramos, você não é aquilo que nos disseram. Fim. Essa jornada acabou. Deveríamos voltar e guarnecer as fronteiras, mas…
— O quê?
— Toshiro é tudo o que precisamos no norte. Três runas marcadas no corpo e é amado pelo povo… e ele se colocou nessa posição de agora… por um pastor de ovelhas.
Jiten manteve os olhos nela, tentando encontrar o sentido por detrás daquelas palavras. Tudo aquilo havia sido feito para resgatá-lo, mas ele não podia imaginar que Toshiro acabaria forçado a ficar no castelo. Se tivesse tido outra chance, teria explicado antes a ele sobre a floresta e sobre o que Yuwa lhe havia dito. Podiam ter saído de lá antes de toda aquela comoção, quem sabe?
Todas as coisas que ela disse, manteve para si por não ser capaz de compreender que o fluxo dos acontecimentos seria tão rápido. Se pedisse a Toshiro para ir embora, agora, a reação dele poderia ser igual a de Shio. Talvez, pior. Os dois eram parecidos no olhar e ele havia arriscado muito mais.
Olhou a janela. Viu a luz. Sua mente estava acelerada. Pensar naquilo apenas o fazia se sentir um imprestável. Toda a sua vida como pastor de ovelhas não tinha mais valor. Não existia mais. Seu coração se apegava à luz da lua.
— Eu preciso ir até a floresta.
A garota quase riu, mas foi um lampejo de raiva que iluminou seus olhos com o fogo.
— É claro que precisa.
Jiten virou o rosto. Era melhor que evitasse uma discussão. Seus olhos procuraram a janela mais próxima. A noite lá fora ainda estava clara. Era estranho pensar naquilo, a luz da lua iluminando a noite como o sol fazia com o dia.
Deveria contar alguma coisa para ela? Talvez, ela acreditasse nele.
Não. Não entenderia.
— Então, quer sair do castelo? — A garota voltou a falar, seu tom ainda era ríspido, mas mais brando do que antes.
Seus olhos voltaram para ela. Não respondeu de imediato.
— Eu te ajudo. Acho que vai ser melhor para todo mundo se for assim.
Shio caminhou até seus pertences. Pegou uma corda por dentro da bolsa e a mostrou para o garoto. Em seu rosto havia um sorriso que pairava entre o deboche e a simpatia. Jiten preferia acreditar muito mais na primeira possibilidade.
Ela o queria fora dali. O desprezava demais para lhe dar a chance de viajar com eles até o norte. Entendia que a lealdade dos outros devia ser a mesma coisa. Estavam ali por Toshiro, mas para eles, o rapaz era só um pastor de ovelhas pelo qual não valia aquele risco.
Aceitar a ajuda era admitir a derrota. Contudo, era a melhor forma que ele tinha para chegar até a floresta. O sentimento de urgência que a garota havia interrompido com sua abordagem, agora retornava mais forte.
— Está bem — precipitou-se na resposta.
A expressão no rosto dela denotou mais uma decepção. Uma mudança sutil. Um momento de hesitação e então, foi notável o momento em que seu semblante voltou a demonstrar sua determinação.
— Vai ser melhor assim — ela disse, mas Jiten não sentiu que ela falava com ele.
Nos momentos seguintes, Shio explicou com detalhes como ele deveria proceder. Falou sobre os guardas, por onde seguir para evitá-los na patrulha. Ela lhe explicou como ele deveria se guiar no vilarejo, usando a forma como ele fora construído para se manter paralelo à rua principal sem estar exposto.
Ela lhe falou sobre o pátio, sobre como próximo àquela hora, a maioria dos guardas estaria concentrado na parte central do forte, já que a troca de rondas iria começar e sempre que se reforçava a guarda, o que acontecia era uma desordem na organização deles.
Ela parecia conhecer muito bem Soramaru. Tão bem como alguém que tivesse vivido lá. Não parecia para Jiten que Shio era do tipo de guerreiro que se infiltrava. Parecia muito mais com uma combatente direta. Contudo, ela entendia como aquele vilarejo era e sabia suas fraquezas.
Havia algo ali que Jiten não entendia? Sim. Sempre houve. Sempre havia.
Apesar da dúvida, não era um momento para perguntar qualquer coisa. Ele só queria chegar até a floresta. Acalmar o coração que batia acelerado ante a noite clara.
— Você prestou atenção? — Ela o questionou, puxando o colarinho de sua blusa.
Mesmo que tivesse escutado com atenção, seus olhos continuavam sendo puxados para a janela e para o bosque.
— Sim, mas eu preciso ir logo.
— Tem razão. Enrole a corda na cintura e mantenha-se paralelo a corda. Se tiver sorte, estará fora do forte antes dos guardas voltarem.
Ele fez como Shio ordenou. Projetou-se na janela, espiando para baixo e enxergando o que lhe esperava se simplesmente não conseguisse se equilibrar. Não podia mais por o pé para dentro do castelo. A garota o observava com urgência e não havia mais argumentações a se fazer. Ela segurava com firmeza a corda nas mãos.
Iria confiar a vida nas mãos dela. Mais uma vez.
Ela não hesitou. Ele também não.
Quando soltou os pés do parapeito e se jogou para baixo, sentiu a vertigem e o ar frio da noite o envolverem. Então, um puxão no torso o manteve suspenso. Shio não o havia soltado. A corda foi liberada lentamente. Um ritmo que o permitia manter-se rente, descendo pelos poucos andares que tinha a fortaleza até a ponta de seus pés tocar o chão.
Desamarrou a corda e esta foi içada para cima. Ele não viu mais Shio na janela. Mesmo sendo cúmplice, ela não quis assisti-lo ir embora.
Ali de baixo, os muros pareciam altos e o caminho parecia longo. Apertou a ferida no peito. Sua mente não estava no lugar. Ele sabia que não estava.
Mesmo assim, sabia que mesmo sem ainda ter deixado o pátio do castelo, já havia ido longe demais.
Então, sem saber como poderia voltar, só lhe restou seguir em frente.