Capítulo 43 — Novamente, o Carneiro
O silêncio era um mar.
Jiten mergulhou por dentro dele e escapou de Soramaru com um passo acelerado. Algo sombrio mantinha as pessoas dentro de suas casas. Nenhuma luz provinha das lamparinas, e as ruas estavam abandonadas como as de uma cidade fantasma. Havia algo mais assustador na noite do que podiam explicar.
Sabia que esse terror não era causado pelo senhor de Soramaru, pois nem mesmo os soldados dele estavam dispostos a ficar de guarda. Encontrou poucos ao ar livre. Seguindo o caminho que Shio lhe indicara, tinha certeza de que ninguém o detectara. E, mesmo que alguém o tivesse visto atravessando a escuridão em direção à floresta, teria julgado-o como uma assombração.
Para ele, era um dia claro e frio, como se o inverno já estivesse ali.
Após passar os muros de Soramaru, seguiu para a floresta em uma corrida de ritmo constante. Seu corpo estava preenchido pela euforia da fuga, mesmo sem ter ideia do caminho que estava fazendo. Sabia que tinha de seguir em frente, por isso, não parou de correr até estar tão fundo entre as árvores e tão exausto que precisou descansar ao lado de uma pedra.
O ar frio entrava e saía de seus pulmões, rasgando suas vias respiratórias. Aquele era o outono, mas parecia mais frio que o normal. Ele estava acostumado a passar madrugadas em vigília para proteger as ovelhas, mas agora, parado de correr, começava a se dar conta de que estava dentro da floresta. Mesmo que a noite fosse clara, ela o era apenas para ele. Todo o resto daquele mundo estava mergulhado na escuridão.
À medida que desacelerava e mais profundamente penetrava no escuro, sua mente começou a fervilhar. Uma sensação de sono intranquilo ainda agitava seu coração, mesmo parado. Lembrava-se do fogo, das palavras dirigidas a ele e do sacrifício. Nada podia superar um preço de sangue. Renji lhe ensinara isso há muito tempo. Ele tinha que cumprir o trato.
Aquele bosque parecia completamente tomado por uma espécie de opressão. O ar ali não só era mais frio, como também mais denso. A floresta permanecia em silêncio, assim como o vilarejo de Soramaru. Jiten suprimiu sua respiração ofegante ao perceber que era ele o som mais barulhento naquela floresta inteira.
E agora?
Cercado pela floresta, ele não tinha como se orientar. Tudo ao seu redor eram folhagens e árvores. O silêncio profundo tornava tudo ainda mais difícil de identificar. Rastejou pelo chão e se levantou novamente. Concentrou-se nos arredores, tentando visualizar aquela busca como no sonho que tivera. Tentou ouvir a voz dela, seguir seu rastro, procurar pela luz no chão que o levaria até onde precisava ir.
Uma caverna. Era lá que ele precisava chegar. Uma caverna com dois grandes olhos vermelhos em seu interior.
Quando deu por si, já estava vagando. Seguia seu instinto por entre as árvores, perseguindo o invisível. A floresta foi, por uma boa quantidade de minutos, um mistério que ele se esforçou para não entender. Apenas vagava por ela, seguindo suas pernas. Seu corpo estava cansado, e ele sentia isso com mais clareza agora.
Sabia que algo estava errado com seu corpo. O ferimento deteriorava sua capacidade física, como uma ferida infeccionada. A diferença era que, mesmo com os sintomas, não havia febre, e sua pele permanecia fria. Fria demais.
Logo, começou a compreender que sua escolha era instintiva e que o levava ao lugar mais perigoso que podia estar. Em vez de fugir da sensação opressiva ao redor, mergulhava mais fundo nela. A floresta permanecia a mesma, mas parecia cada vez mais fechada.
A energia que fluía pela floresta transmitia um sentimento envolvente, como um abraço gélido que normalmente repelia, mas naquele momento guiava Jiten em seu caminho. A ansiedade estava lá, escondida sob o coração, mas ainda acima do diafragma. Sua respiração controlada era o que a mantinha sob controle. Talvez, contudo, não fosse só a respiração.
Quando o abraço gélido se tornou tão apertado que ele estava prestes a desistir, seu instinto exigiu um novo movimento. Sua mão pousou sobre o cabo da espada que carregava.
Havia um cadáver caído. Mesmo de longe, a pele ressequida e os trapos eram distinguíveis. O corpo parecia de um adulto, talvez uma mulher ou um homem de cabelos longos. Naquela altura, a decomposição já teria feito seu trabalho por tempo demais.
Continuou caminhando. Mesmo que a presença de um corpo indicasse perigo, algo maior que seu instinto de fuga o impulsionava. Tinha algo a ver com os olhos, mas o que não tinha a ver com seus olhos desde que saiu de Bushimusuko?
Quando seus olhos se desprenderam da figura morta à sua frente, percebeu que aquele não era o único corpo na floresta. Com a visão agora clareada pela luz da lua, reparou que o solo parecia misturado com uma substância que se desfazia com facilidade: fuligem.
Cadáveres estavam envoltos nela. Pelo menos quinze, até onde se atreveu a contar. A fuligem grudava em suas peles, corpos ressequidos, parcialmente queimados e decompostos, espalhados pelo chão. A floresta era fechada, mas só até certo ponto. Agora, ela se abria para ele, como um cadáver rasgado por uma lâmina em brasa.
A partir daquele ponto, estava tudo queimado.
Teve a consciência sombria de que os corpos mais próximos foram os que tiveram mais chance de escapar. Em alguns pontos, a floresta tentava reconquistar aquele lugar, mas ainda era apenas um começo. Não fazia tanto tempo desde que a destruição fora feita.
Jiten se sentiu em um ponto sem saída. Seu instinto o levou até ali, mas avançar por aquele campo de morte lhe parecia mórbido demais. Seus olhos procuraram no horizonte, mas tudo terminava em um paredão de pedras.
Sua visão, seu instinto, o jeito como tudo se desenrolou até ali — ele tinha que estar perto de algo que fizesse sentido. Viu uma mulher ser queimada viva para lhe dar a visão que o levou até ali. Se virasse as costas agora, o sacrifício dela e de todos os outros seria em vão.
Esses pensamentos assombravam sua mente, frutos de um misto de vergonha e medo. Vergonha de ser quem era. Medo de morrer se corresse agora. Aquela coisa no peito, crescendo negra e voraz, o mataria de uma forma ou de outra. Seguir em frente era a única forma de fugir.
Suas dúvidas e autopiedade deram-lhe apenas alguns minutos de inquietação introspectiva. Sua atenção foi chamada de volta ao silêncio, pois o silêncio em uma floresta é sempre uma armadilha. Ouviu um som entre as folhas e, se não fosse pela visão agora iluminada, não teria visto o movimento.
Uma mão cadavérica ergueu-se do chão, tateando o solo pútrido em busca de algo para segurar. Outro som surgiu atrás dele. Era uma cabeça sem olhos o observando, erguida acima da lama negra. A vida corrompida tomava forma, familiar, despertando o medo.
Draugos. Dessa vez, surgiram sem serem convocados por palavras, vestidos de terra coberta de fuligem, alimentando-se de carne, ossos e tecido podre. A visão clareada permitia a Jiten capturar cada detalhe grotesco. Os mortos o cercaram antes mesmo que ele notasse sua presença.
Ante o claro sinal, sacou sua espada. Arrastou os pés pela terra e assumiu a postura de combate.
Os draugos não aguardaram muito mais após terem ressurgido para avançar em sua direção. Agora entendia de onde ressurgiam, como nas lendas. Eles vinham da terra e dos mortos. Resquícios de coisas antigas. Um deles saltou para cima dele, arremessando toda a frente de seu corpo raquítico para tentar segurá-lo. Jiten o cortou de baixo para cima, como mandava a postura do carneiro.
Dois dos outros seres puxaram o tecido de suas roupas por suas costas, os ossos das mãos pontudos e afiados arranharam sua pele. Jiten se reposicionou com a base firme, não se deixando desequilibrar, e com dois cortes rápidos tirou os braços de um até os cotovelos e a cabeça do outro quando sua lâmina desceu. Afastou mais um aparando seus dentes podres com a lâmina e impulsionando o corpo para longe abriu-lhe a mandíbula e separou a base do crânio da coluna.
Não eram criaturas vivas e ele tinha a espada para enfrentar dentes e unhas. Não derramava sangue, pois esse já seco nas veias negras já não escorria. Eram mais rápidos do que Jiten lembrava, mesmo com seus corpos menos robustos agora. Quando os enfrentou a primeira vez, ele sentiu a pressão que a podridão deles criava no ar. A falta de explicação sobre eles ainda os tornava temíveis, mas não tinha escolha.
Tinha que cumprir o trato.
Então, a espada se moveu de cima para baixo, retornando ao ponto neutro. Seus pés rasgaram a terra e espalharam a fuligem como sangue. Seus cortes não eram técnicos. Eram brutos, desajeitados, mas velozes, defensivos na medida que precisava. Partiu a cabeça, os braços, o torso e removeu os membros de mais de uma dezena de draugos até ver que centelhas pulsavam ao redor da espada. As criaturas que o atacaram estavam vencidas no chão e ele havia descoberto algo sobre si.
Havia manifestado o Shanguo de um jeito que ainda não havia feito. A lâmina cortou tão facilmente pela podridão que seus movimentos se tornaram muito mais fluidos e agora reparava como os músculos pareciam cheios de energia, sedentos por mais um movimento. Segurou o cabo da espada com mais firmeza. A luz alaranjada se depositou no fio da lâmina.
Abriu um sorriso que durou pouco.
— Esta terra é minha.
Ouviu uma voz inconstante, alta e grave. Era feminina, mas gutural em um nível bestializado, mas que mal conseguia articular as sílabas nas palavras.
Quando a terra voltou a se mexer, viu que dessa vez não era um draugo.