Deveria ter fugido.

    A contratura do breve sorriso de Jiten desapareceu e seu ânimo foi largado como um tecido jogado ao chão. Seus órgãos internos foram vítimas de uma pressão enorme, tornando-se tão pesados que foi difícil manter o equilíbrio. 

    Seus olhos estavam plenamente abertos. Enxergavam a floresta como se estivesse em pleno dia. Esta percepção ampliada apenas o fez absorver com ainda mais intensidade o que estava acontecendo. Foi como se levasse um golpe, sem nem mesmo precisar que alguém tocasse nele. 

    Escavando a terra para emergir estava uma criatura cujo o tamanho era muito maior do que o de qualquer draugo. A massa de escuridão, galhos e carne elevou seu torso revelando sua silhueta grotesca. Humanoide, mas era puramente bestial. O corpo coberto de terra, pelagem grossa e fuligem era robusto, três metros de altura sustentado por pernas parcialmente flexionadas e que findava no topo em uma cabeçorra com olhos brancos brilhantes. 

    — Não é seu… Você não pode estar aqui… Aqui sou eu. 

    Jiten ainda mantinha a postura do carneiro. Deu um passo para trás sem quebrar a posição, mas isso só pareceu deixar a coisa mais atenta em relação a ele. Não era como nada que ele tivesse visto em sua vida. Os pêlos e o corpo lhe lembravam um grandioso primata, algo próximo das lendas dos animais gigantes que viviam com o povo antigo. Só que aquilo não era animal nenhum.

    Era um horror do qual ele conhecia apenas o nome… e a força. 

    — O trato… vim cumprir o trato. — Sua boca falou por ele. Suas mãos se prenderam com mais força no cabo da espada. Seu espírito estava se segurando para não cair.

    A coisa se moveu, a fuligem sacudida de seu corpo formando uma névoa que escorria ao redor dela. A carne do primata sobre a qual ela havia se formado estava parcialmente partida, com fragmentos de galhos e pedras emergindo de dentro em feridas supuradas com líquido negro como betume. 

    — Eu… Eu… Eu… 

    O fio de tensão entre os dois se quebrou de uma única vez. A criatura avançou com os braços e as pernas na terra a projetando para frente. Jiten sentiu a quebra do fio, como se fosse algo físico. Virou as costas sem pensar e com os olhos cheios de lágrimas começou a correr. Tentando respirar, emitia gritos de pavor que apenas denunciavam como ele sucumbiu de uma única vez. 

    Não ousou olhar para trás. Focou tudo em suas pernas. Nem mesmo reparou que a espada que um dia foi de seu pai havia caído em algum lugar. Não conseguiu sequer ouvir algo além dos estrondos que a criatura fazia sempre que suas patas tocavam no chão. 

    Tudo o que ele se dispôs a ser nos últimos dias foi abandonado. O trato não era nada mais que um vazio em sua mente diante da possibilidade da morte logo diante de si. 

    Abandonar quem ele queria se tornar, não o salvou.

    Seus pés pararam de tocar o chão poucos metros após ele começar a correr. A coisa o agarrou pelo manto, suas garras cortando a pele de seu dorso. Ele foi puxado e como se fosse um brinquedo nas mãos de uma criança mimada, arremessado para o lado. 

    Tudo ao seu redor se tornou uma nuvem de fuligem e ele rolou pelo solo até parar perto de alguma árvore. 

    Fechou as mãos e as abriu repetidamente, seus braços se recolhendo e empurrando o solo, chutando as folhas e os galhos até acertar o chão e conseguir se levantar. Olhou ao redor procurando o errante. Seus olhos estavam parcialmente irritados, não encontrou nada. 

    Tinha que fugir. Ficar vivo. 

    Começou a correr mais uma vez, mas a criatura já estava na sua frente. Assim de perto, ele parecia ainda menor. Ainda mais impotente. O cheiro próximo dela era insuportável. A pressão que aquela presença exercia era ainda pior. 

    — EU! – A coisa rugiu. 

    Jiten se jogou para o lado, mais uma vez ia se colocar a correr, mas a coisa o agarrou de novo. Ergueu-o alto e o jogou no chão com força. O rapaz sentiu apenas a pressão do impacto atravessar o seu corpo, caindo poucos metros à frente. 

    Estava atordoado, mas mesmo assim se arrastou para longe da besta.

    A sujeira, o barro e alguns cadáveres no caminho foram passando por baixo e ao redor de seu corpo. Cuspiu parte da terra em sua boca quando conseguiu se levantar. Não entendia como havia chegado tão longe. Escutou grunhidos ininteligíveis vindos de suas costas. 

    A espada. Onde estava?

    Viu sua lâmina brilhar poucos metros à frente. Se fosse correr e fugir, que pelo menos levasse ela. Foi o que fez. Intercalando entre uma corrida e o cambalear rápido, saltou sobre a espada e a agarrou de uma vez. Feriu os dedos pois no desespero agarrou-a pela lâmina. Cambaleou para mais longe, ouvindo os grunhidos se tornarem em mais um rugido furioso. 

    Então, os estrondos do avanço do monstro.

    Jiten ajustou a arma na mão. Os estrondos se tornaram próximos demais. Quis gritar, mas ninguém o ouviria. 

    De que adiantaria fugir? Se a coisa era maior e mais rápida?

    Os estrondos se tornaram muito mais altos. Uma sombra cobriu a lua. Centelhas alaranjadas envolveram seu corpo. 

    Jiten gritou e se virou, seus músculos se tensionaram de uma única vez. Seu pé desferiu um arco, erguendo uma névoa negra ao seu redor e estacionando no lugar perfeito para lhe fornecer apoio. 

    O Carneiro. 

    A lâmina da espada, na horizontal, diante de seus olhos, aparou o golpe do errante e o impacto se espalhou pelo seu corpo como se tivesse sido arremessado contra uma montanha. Mas estava de pé. 

    O fio da lâmina revestido com o brilho trêmulo que o Shanguo se conectava aos seus dedos e em seus ombros, sustentava sua coluna e as pernas até a sola dos pés. Seu corpo inteiro estava revestido pela energia sagrada que aprendera. 

    O errante havia se ferido. O golpe contra a lâmina sólida havia feito com que parte de sua carne se partisse. A escuridão que o constituía em seu cerne escorreu e se revelou por completo. O líquido negro caiu no solo e foi por ele absorvido com enorme velocidade. 

    Em um ímpeto de fúria agora reforçado, a criatura mirou um novo ataque. Com a pata esquerda contra a lateral do corpo de Jiten. O rapaz não viu o movimento que o salvou, mas seu corpo por instinto cortou para o lado. O impacto foi absurdo, mas dessa vez, ele foi empurrado para trás, sentindo sua cabeça chacoalhar. Deu vários passos de costas, tentando reestabelecer o equilíbrio. 

    Quando conseguiu, o errante já estava sobre ele novamente. A coisa o tentou segurar com ambas as patas dessa vez. Um movimento rápido para trás e a lâmina erguida, fez com que apenas um vulto passasse diante de seu rosto. O ar denso ao seu redor apenas se condensou mais. 

    Cada movimento que fazia enfurecia mais seu algoz. Mais um golpe descendente da criatura, ela o golpeava com um dos punhos para baixo para esmagá-lo. Jiten mais uma vez se protegeu com sua espada. As centelhas laranjas se espalharam pelo ar como faíscas ante o martelar de um ferreiro. 

    Jiten gritou. Seus braços, seus ombros, suas pernas e joelhos estavam no limite. Ele estava machucando a criatura, mas a cada novo golpe ele sentia seu corpo fervilhar. Era como se o Shanguo o estivesse incendiando de dentro para fora. 

    Não conseguia pensar no que fazer. A criatura não o dava abertura para fugir e mais uma vez lhe golpeava de cima para baixo. Ele se protegia, bloqueando o movimento com toda sua força, mas  cada golpe daquele martelo obscuro o fazia ceder mais. 

    Moveu-se então, em um ato de desespero, usando a energia do último impacto para descer a lâmina e então cortou para frente em um arco, buscando as pernas da criatura. Sua lâmina deixou um rastro brilhante pelo ar, mas a criatura foi muito mais rápida. 

    Ela se esquivou da lâmina de Jiten e seu contra-ataque foi feroz. Um único soco com o punho fechado direto contra o torso do rapaz. Todo o ar se esvaziou de seu corpo e ele foi arremessado para trás. Sua espada caiu logo ao seu lado e ele em desespero mais uma vez a segurou. 

    O medo voltou a preenchê-lo. A sensação de derrota o atingiu antes mesmo de ele receber o golpe final. 

    Lembrou-se de Yuwa, que o levou até ali. Amaldiçoou-a em pensamento e cuspiu sangue no chão. Tudo o que ele queria em sua conversa com ela era ser curado daquela ferida em seu peito. Ela lhe ofereceu frutas e um punhado de palavras enigmáticas. 

    Pensou por um momento em seu mestre. Como ele o havia treinado a toa. 

    O errante veio em sua direção. Uma aura obscura emanando dele, como se estivesse com a pele queimando. Os olhos brancos e vazios sem trazer expressividade. A fúria era subentendida. Como tudo o que havia feito até então. Nada estava claro e enfrentar o destino só o havia lhe trazido para um lugar mais sombrio. 

    Colocou a mão no bolso e por um momento olhou a fruta que Yuwa lhe dera. Uma coisinha esférica, de casca lisa, sensível e cujo tudo o que sabia não passava de um mistério. Mas as frutas o fizeram enxergar. Ele havia escutado o que a velha lhe dissera. Escutou-a porque ela lhe requisitou em seu momento de morte. 

    Só mais uma vez. De uma forma ou de outra, depois daquela luta, não precisaria mais fugir. 

    A hesitação, no entanto, lhe cobrou um preço. Quando a sombra do errante cobriu a lua, ele esticou o braço por reflexo para erguer a espada. A fúria do monstro foi sentida na força dos dedos grossos quando envolveram seu antebraço. Sentiu a pressão, com o errante lhe apertando até além do que seus ossos podiam suportar. 

    A dor o cegou por um momento, fechou os olhos e só havia um mundo vermelho por detrás das pálpebras. 

    — Você não pode entrar. — A coisa falou com ele, mas não fez mais nada. Continuava apenas apertando-o, vendo o contorcer de dor. Ele tentava chutá-la. Repeli-la. — Não… Não… Não vai fugir… 

    Jiten respirou fundo. Inspirou com tanta força que sentiu o gosto de seu sangue na boca. Abriu os olhos para fitar o errante. Seu coração batia forte. Em um único movimento, levou a fruta até a boca e esmagou-a entre os dentes. Um azedume licoroso cobriu sua língua e ele engoliu. 

    Sentiu seu braço direito ser quebrado. Um estalo que ressoou entre os músculos. Seria a hora de gritar, mas abriu a boca em um sorriso vermelho antes de sua boca falar por ele. 

    — Não. Não vou fugir. 

    Nota