A respiração foi a primeira coisa que mudou.

    Um único inspirar fez queimar o sangue de Jiten dentro de suas veias. Era como se uma torrente de ferro quente estivesse sendo vertida por entre os músculos. Uma dor abismal, muito maior do que qualquer outra que ele já tivesse sentido. O sangue subiu para o crânio, inundou o cérebro, a mente agora afetada por um novo nível de percepção. 

    Sentiu algo mais. Toda a dor condensada no bater de seu coração acelerado. Tudo o que viu dentro de si foi ódio. Uma raiva  que era absoluta.

    A criatura ainda o segurava pelo braço. Jiten deixou a lâmina cair e a pegou com a mão esquerda. Propulsionou corpo para frente, mirando a espada não na pata que o prendia, mas usando o braço preso para se projetar para frente e estocar  diretamente o ombro do errante. 

    A força que despendeu de uma única vez de fato surpreendeu a criatura que não esperava uma reação tão repentina e essa o soltou. Jiten sentiu a resistência na ponta da espada e isso o encheu de ainda mais raiva, mas também de uma forma sombria de prazer.

    Seus pés tocaram o  chão, mas a densidade do ar ao  seu redor era tão grande que nem mesmo a fuligem se atreveu a se erguer do solo. Foi a vez dele rugir.  Um grito de fúria que vinha das  partes mais internas de sua mente. O Shanguo se concentrou não mais na espada, mas em sua pele. 

    Os olhos se encheram de sangue. Deixando as íris azuis flutuarem sobre um mar de sangue. 

    Avançou para cima da criatura e quando ela tentou lhe desferir um golpe para afastá-lo, Jiten atingiu-a com um chute no abdome. A surpresa era visível no rosto do monstro, jogado para trás e caído no solo, o errante ergueu a cabeça atordoado. 

    Jiten segurou sua espada com o braço quebrado. Sabia que algum de seus ossos havia sido partido, mas ele não precisava mais dele. Não precisava mais dos ossos ou dos músculos. Não precisava dos olhos, nem da pele, não precisava dos pulmões e nem de seu coração. Não precisava nem mesmo da própria mente. 

    Sendo assim, se entregou por completo. 

    O errante não esperou muito. A criatura tinha também muita fúria dentro de si e ela saltou sobre  Jiten com as garras à mostra, erguidas alto no céu. O rapaz se moveu rápido, aparou o golpe com sua espada que atingiu com firmeza a pele obscura de seu adversário. A  criatura foi desviada  para o lado. O rapaz berrou e se lançou às  costas da criatura, saltou até alcançar uma altura e agarrou em seus pelos com sua mão esquerda. Chutou com ambos os pés  e ganhou  o impulso para voltar e  perfurar o monstro com sua lâmina. 

    Sentiu a  espada atravessar a barreira de escuridão, partir pedaços do monstro por dentro. Introduziu metade da lâmina, antes da coisa se chacoalhar ensandecidamente e o arremessar para o lado. 

    Jiten rolou pelo chão, a fuligem grudando em sua pele e um sorriso em  seu rosto. 

    Correu até o monstro, mas sua loucura não o permitiu desviar de um golpe lateral em contra-ataque. Foi arremessado para longe, mas apenas se ergueu novamente e afastou a criatura com um movimento de sua espada em arco. 

    A criatura tentou o agarrar, Jiten retribuiu o gesto com uma sequência de ataques a esmo. O errante chegou a cravar fundo suas garras em sua pele, mas  a quantidade de cortes que sofreu foi tão grande que ela se afastou. 

    A escuridão se verteu pelo solo. A criatura em múltiplos pontos sangrava, deixando escorrer pelo chão a própria essência. O errante deu alguns passos para trás. Confuso, gemia e grunhia e olhava ao redor procurando por alguma coisa. 

    Jiten notou, por um instante, que os olhos da coisa não brilhavam mais. 

    Mas não importava. 

    Avançou realizando mais um  corte descendente. O errante se protegeu com os braços e a lâmina abriu um talho em ambos os antebraços. O impacto da espada com a escuridão que revestia a carne do monstro emitiu um estrondo. 

    Jiten girou e deu mais um golpe. Então começou a golpear como um construtor tentando derrubar uma parede. Ficou tão absorto em seus ataques que não previu quando a criatura retirou os braços e deixou-o avançar com a lâmina até atingir o ombro dela. Estava perto demais e o contra-ataque já vinha.

    A boca da criatura se abriu mais do que qualquer ângulo natural e se fechou ao redor de sua cabeça. Os dentes se cravaram em sua pele, a pressão contra os ossos do crânio se tornando absurda. Um bafo gelado e pestilento lhe atingindo diretamente no rosto.

    Ainda assim, não sentiu medo ou dor. Nenhuma hesitação em recolher os ombros e agarrar a cabeça da criatura com uma das mãos, para cortá-la com o outro braço. Sentiu a lâmina romper resistências, então foi sacudido e arremessado para longe. 

    O mundo se tornou um borrão azulado e brilhante, até que ele atingiu uma árvore. 

    Um carvalho retorcido e queimado aparou o impacto. Jiten cuspiu sangue e ainda sorria pela satisfação de desferir um dano contra seu algoz. Pouco notava que se não fosse a energia entrelaçada em seus músculos e ossos, de forma alguma teria sobrevivido. Sem pensar duas vezes, apoiou-se na árvore e se levantou. 

    A espada ainda estava em mãos, úmida com um líquido negro que escorria e se desfazia em pleno ar. 

    O errante emitiu um berro sem precedentes. Quilômetros dali, árvores voavam para fora de seus poleiros em temor. A coisa rasgava e puxava os próprios pelos em desespero e sua agonia começou a se tornar tão densa, que Jiten, mesmo com a mente turva, sentiu profundamente o desafio.

    O chão estremeceu sob o errante. A coisa atraía para si toda a energia que havia depositado naquele lugar. As sombras rastejavam em direção a ela com formas humanoides, como espectros esquecidos buscando uma saída de seu sofrimento e atraídos por uma luz. O sangue nos olhos do rapaz se acumularam e se verteram como lágrimas.

    Jiten sentiu um ódio que jamais havia sentido. Não apenas um sentimento que emanava de seu peito, mas que ressoava como golpes de um tambor e se somavam, fazendo um eco ensurdecedor. Não precisava entender com palavras, apenas sentia ainda mais o nível de profanidade que a criatura agora representava.

    No solo, mãos e cabeças se ergueram e um choro, o lamentar final de centenas de seres outrora viventes foi escutado. Os últimos gritos de dor de família inteiras chacinadas, mulheres que berravam ao serem queimadas diante de suas crianças e pedidos de misericórdia que nunca foram escutados. 

    Onde estava plantado aquele carvalho retorcido, onde Jiten agora sangrava e enfrentava a morte, centenas, talvez milhares haviam morrido. Inocentes. Mais deles do que alguém alguma vez teria se dado ao trabalho de contar. Todo o bosque coberto de fuligem era uma ruína e as chamas haviam destruído tudo. Até o fim. Até o último corpo. 

    O errante havia aumentado de tamanho. Seus olhos não eram mais branco e brilhantes. Haviam se apagado não para a normalidade, mas se tornaram negros e vazios como um poço escuro. 

    Nada daquilo causou medo em Jiten. Apenas mais e mais raiva. Mais e mais. 

    O carvalho retorcido atrás dele agitou seus galhos sem que o rapaz pudesse ver. Não, ele não via, mas era visto. 

    Mais uma vez o humano avançou contra a criatura. Não esperou a ofensiva do monstro. O errante respondeu cobrindo um espaço absurdo de terreno com apenas um salto. Suas garras cortaram o ar deixando para trás uma nuvem escura. Jiten girou o corpo para que o golpe não o acertasse e desceu sua lâmina com firmeza. Cortou profundamente e no mesmo impulso, carregado de raiva, cortou mais uma vez para cima. 

    O errante avançou com sua mandíbula aberta, mas Jiten aparou a mordida com a espada. Sua lâmina entre os dentes da criatura quase se partiu, o som metálico do impacto podendo arrepiar qualquer um. Rasgou a boca da criatura, empurrando a lâmina mais profundamente na boca dela e a puxando de uma vez. 

    Não pôde se esquivar de mais um impacto. Com os braços livres e sua lâmina presa por um momento, teve que aceitar as garras do monstro lhe acertando o peito e sequestrando o ar de seus pulmões. Recuou alguns passos, mas os ataques não paravam. 

    Jiten rangeu os dentes enquanto de maneira rápida desviava e cortava, mas sua lâmina, mesmo que resoluta, não parecia cortar o monstro muito mais do que alguns centímetros. Ainda, se sofresse um golpe, sentia-se dar um passo a mais para perto da morte. 

    O ar ao redor do errante era sufocante. A raiva não o permitia respirar direito. 

    As patas do monstro iam rasgando o ar. Até que a criatura estava tão próxima dele que já era quase impossível de manter o ritmo. Assim, a mordida veio de cima. 

    O corpo de Jiten reagiu da única maneira que podia. Mudou a postura, a lâmina na horizontal sobre a cabeça. Uma explosão alaranjada surgiu ao redor dele. Viu ao seu redor a figura de um carneiro que com seus chifres segurava e empurrava a cabeça do inimigo. Era a materialização do Shanguo. Por instinto. 

    Assim, por instinto, também rolou por debaixo das pernas do monstro agora aturdido. Uma vez atrás deste, sua lâmina subiu em um movimento debaixo para cima e arremessou a criatura para trás. Mais uma explosão alaranjada. Mais um golpe que atingiu. 

    Ensadecido, Jiten não parou. Moveu-se e golpeou. Uma. Duas. Três. Quatro vezes e mais. A cada golpe, sua lâmina brilhava alaranjada, cortando a escuridão da noite como labaredas. A cada golpe, sentia a criatura ceder mais para trás, mas sabia que sua vida escoava por entre seus dedos. Sabia que depois daquela luta não teria mais volta. Não teve medo mesmo assim.

    As palavras de Renji voltaram à sua mente. Muitos o queriam vivo. Tudo o que ele precisava fazer era não morrer. Parar. Correr.

    Mas já não podia. 

    Concentrou ainda mais força no golpe. Suas próprias unhas cortando a carne de seus dedos tamanha a força com a qual apertava o cabo da espada. O monstro se virou para ele mirando um ataque. Jiten Atingiu a criatura mais uma vez.

    — Não, mestre!

    Mais um golpe. A criatura tentou se proteger, mas a lâmina cortou-a através de seu braço e arrancou dela uma de suas patas.

    — Eu não mereço. 

    Mais um golpe. A criatura tentou se virar para fugir, mas sua carne foi aberta da virilha ao ombro. 

    — Eu nunca mereci. 

    O errante bateu as costas contra o carvalho retorcido. Exausto. Desesperado. As sombras e os espectros ao seu redor se debatendo, tentando se agarrar à vida. Jiten nem mesmo viu, imerso em seu ódio, que o carvalho retorcido envolvia com sua madeira carbonizada o corpo do errante e não o permitia sair. Tudo o que Jiten via era a si mesmo. 

    O rapaz girou a espada na mão. Ela vibrou. 

    — Eu nunca mereci viver. 

    Fincou a espada no peito da criatura e dessa vez ela foi mais longe do que nunca. Atravessou a carne sombria e corrompida até perfurar a casca do carvalho. 

    Ali, era como se enfiasse a espada em seu próprio peito. Ela vibrou ainda mais, banhada com energia e invés de apenas escuridão, dela verteu sangue. Sangue de verdade.

    Nota