Capítulo 46 — Notun, o Retorcido
A respiração continuou acelerada.
Mesmo quando a criatura monstruosa parou de se mexer, Jiten ainda sentia pulsando dentro dele toda a raiva que concentrou no golpe derradeiro. Contudo, agora não havia mais cor, apenas a luz fria da lua iluminando a noite com a intensidade que ele havia recém-descoberto.
Deixou a lâmina fincada no peito do errante e cambaleou para longe. Aos poucos, a raiva foi se desvanecendo como uma névoa carregada por uma brisa ao amanhecer. Caminhou a esmo. Estava ali por um propósito e mesmo que agora ansiasse pela luz do sol, ainda falta muito para a noite acabar.
Seu corpo parecia algo distante, a respiração ia aos poucos reduzindo sua frequência conforme ele se afastava do local de seu embate. Seu corpo estava amortecido, distante dele mesmo. Era como estar sonhando.
Perseguiu então o sonho, caminhando em direção ao paredão de rochas à sua frente, seguindo um rastro invisível mesmo para alguém que podia enxergar na escuridão. Passando por entre algum conjunto de árvores carbonizadas, encontrou a entrada de uma caverna.
Olhou-a por um instante. Era tão escura por dentro que nem mesmo seus olhos podiam enxergar. Não havia lua ou sol que a tivesse jamais iluminado. Estava escondida de maneira provocativa. Um convite e um desafio para imergir em suas sombras.
Notou um brilho vermelho. Uma centelha como a de um vagalume, mas essa era muito mais sutil. Musgo nascia mais a frente na escuridão, mas sua bioluminescência não era clara alaranjada como a de um vagalume e não lembrava nem mesmo aos pequenos servos do Cedro Celeste. A luminosidade era parca, mas era vermelha intensa como o sangue.
Eram os olhos vermelhos que o esperavam.
O amigo de Yuwa que ele havia ido lá para salvar. Estava ali dentro.
Já que não mais pretendia fugir e seu corpo já em pouco tinha forças para dar as costas, apenas seguiu pelo interior da caverna. A umidade enchendo suas narinas e lhe causando um imediato desconforto, era grudenta na pele coberta de fuligem e diluía-se no sangue que ele havia sido coberto.
Seus sentimentos agora não batiam mais com o que seu corpo sentia. Se ainda havia força e vigor nele, sua mente claramente estava esgotada e derrotada. Era como um cadáver forçado a caminhar em uma última procissão antes da morte. Sentiu que estava entrando em sua própria cova.
O musgo vermelho que crescia pelas paredes e pelo teto mal o permitia não tropeçar e o caminho no qual o guiava não era totalmente reto, mas sinuoso e confuso. Suspirou fundo para não se dar por vencido. A dor que havia suprimido agora parecia estar voltando. Ela ainda era pouco além de um latejar na cabeça e no antebraço, mas o assustou, pois era um prenúncio sombrio do que enfrentaria. Antes, no entanto, que se perdesse naquele desespero, ouviu uma voz.
— Mãe… é você?
E seguiu a voz. Era uma criança que chamava? Algo nela, o lembrou de uma voz que já não ouvia há muito tempo e apoiando-se na parede, buscou-a nos túneis escuros.
A luminescência vermelha o levou então para uma câmara. Não muito maior do que uma cabana simples, mas fechada e concentrada com uma umidade gélida. Uma lembrança detestável se avizinhou de sua mente. As entranhas vermelhas de um demônio… A morte impiedosa de uma ovelha. Devia ser isso mesmo, mas desta vez estava de mãos vazias. A ovelha era ele.
Quando observou com cuidado à câmara, viu que era muito mais do que sua primeira impressão. As paredes tinham desenhos misteriosos, sinais marcados com a mão representando diversos símbolos. Círculos, espirais, triângulos, figuras humanoides, representações da natureza e escritas em símbolos que eram totalmente incompreensíveis agora.
Mais adiante, no entanto, espantou-se com a visão que teve. Sobre uma pedra lisa próxima à parede de pedras, estava uma figura humanoide sentada, recostada como se cansada demais para se levantar.
Tinha a altura de um jovem da idade de Jiten, mas seu corpo era composto por apenas gravetos, pedra e folhas reunidas. No entanto, os globos oculares eram perceptíveis. Eram vermelhos. Brilhantes como algo etéreo. Como os que ele viu em seu sonho.
A coisa se mexeu e o olhou.
— Não precisa ter medo, mugenjin. — A voz era masculina, mas muito suave, quase como a de uma criança ante a juventude.
Jiten ainda sentia sua respiração acelerada. A visão um pouco turva começava a tornar os detalhes menos visíveis. O que o sustentava vivo ia aos poucos se esvaindo. Ainda assim, tinha alguma firmeza que o fazia ignorar o que aconteceria no futuro.
Os galhos se mexeram, como um corpo voltando-se mais para frente. A coisa inclinou a cabeça, parecia entender que Jiten sofria.
— Não precisa ter medo, sob a sombra dos meus galhos você não morrerá.
O rapaz soltou o ar pelas narinas. Soube que era verdade.
— Yuwa pediu que eu viesse. — Jiten murmurou, ainda experimentava se ainda conseguia falar com clareza ou não.
Os galhos se remexeram por um momento. A coisa olhou para frente por uns instantes e voltou novamente os olhos vermelho brilhantes para Jiten.
— Ah, como está a boa senhora?
Jiten não respondeu.
A coisa assentiu com a cabeça.
— Eu gostava muito dela. Ela morreu em paz?
Jiten apenas balançou a cabeça.
Notou a coisa ali se empertigar. Os galhos se remexerem e o silêncio apenas se tornou muito pesado. Só então, Jiten notou que a coisa tinha algo no colo. Parecia uma criatura peluda, dormindo, uma respiração pesada.
— E ela te pediu para vir aqui? Para matar o arukage lá fora?
— Ela disse que se eu salvasse o amigo dela, ele poderia me ajudar. Acho que esqueceu de falar do monstro… ou só não foi muito clara.
Jiten abriu um sorriso vermelho.
— Eu estou vendo. Um deles te marcou. Não costumam fazer isso com coisas vivas, tirando o caso lá fora que você viu, quando um deles está começando a se formar e não tem muita força. No seu caso é diferente. Seus olhos valem muito nesta terra… Acho que consigo ajudar sim.
— Não tem mais nada para ajudar.
— Eu te devo uma. Aquela coisa estava me absorvendo há anos. Mesmo agora eu não tenho mais força para reconstruir meu domínio. Somos dois moribundos. Pelo menos um tem que sair desta caverna.
— O que quer dizer? — indagou Jiten, mesmo que agora fosse muito difícil processar qualquer tipo de esperança.
Ele havia ido até lá porque não podia continuar fugindo. Queria ter a oportunidade de ser algo além de um garoto fujão, escondido em um vilarejo governado por um tirano. Tinha vislumbrado aquilo. A possibilidade de ajudar alguém a fazer algo e cumprir algum tipo de promessa que teria sido feita em seu nome antes mesmo de nascer. Nada parecia ter dado muito certo. Até o momento, ele era apenas um estorvo. Sentenciado à morte antes mesmo de conseguir sair do território de seu vilarejo.
Sabia que se não fosse até aquela caverna, seria devorado por dentro por aquela ferida negra e os pesadelos de fogo e gritos lhe atormentariam. Seus olhos, sua visão, a convicção com a qual despertou de seu pesadelo quis interpretar como um sinal de que fazia o certo. Ainda assim, agora pouco significavam suas motivações.
A morte parecia aceitável. Pelo menos chegou até ela enfrentando algo sozinho. Era merecido.
— Você não sabe o que eu sou? Ou melhor, o que eu fui?
— Sei que era amigo de Yuwa. Nada mais.
— Isso só nos últimos cem anos. Já me chamaram de muitas coisas, mas eu gosto mais de Notun, era como os primeiros visitantes me chamavam. Eu gostava deles. Traziam oferendas e deixavam aos meus pés, cantavam e sempre pareciam muito felizes ao meu redor. Não sei o que os deixava assim, minha aparência nunca foi muito boa. Eu me retorci inteiro, sempre muito grande, imponente, minha madeira escura e os galhos fortes. Eu queria ser amedrontador, mas eles gostaram.
Jiten quase perdeu a atenção por um momento. Estava tão exausto que pouco podia interpretar dos mistérios que recebia. Notun, como queria ser chamado, era uma criatura muito antiga e era perceptível, que como o Cedro Celeste, ele era um dos membros dos Ocultos.
— Notun, o Retorcido. — Sussurrou o nome. Era uma lenda antiga. Algo que ele já ouvira nos dias que passava com Bjarka. Uma grande árvore escondida perto das rochas. Era o berço de uma das lendas.
— Isso! Isso! — A voz pareceu legitimamente animada, mesmo que os galhos pouquissima expressividade pudessem demonstrar. — É sempre tão intuitivo, não?
— Sou Jiten.
— Jiten, dos Olhos Sangrentos.
O rapaz sorriu. Apoiou as costas na parede e se deixou deslizar até o chão.
Jiten notou algo se mover no colo de Notun. Uma coisa pequenina, peluda, abriu os olhos brilhantes e olhou para Jiten. Não havia como saber o que aquele ser pensava. Assim como quando se olha nos olhos de um recém-nascido, curiosidade é tudo o que há.
— Um filhote. É seu? — O rapaz questionou. O silêncio o fazia mais mal naquela situação. Lembrava-o da dor.
— Não. Você matou a mãe dele lá fora.
Jiten respirou fundo.
— Não se preocupe — consolou-o Notun, a voz jovem e aprazível. — Ela fez tudo o que pôde para resistir. Estava disputando a própria mente com o arukage. Lutando para não ser consumida. Era inevitável, de qualquer forma, alguma hora o sofrimento que eles causam dobram qualquer alma.
O rapaz abaixou a cabeça, respirou fundo mais uma vez. Que tipo de mundo era aquele cheio de criaturas tão cruéis? Era parte de tudo aquilo e agora sentia apenas angústia. A caverna parecia que diminuía de tamanho ao redor de si. A luz vermelha se tornava mais fraca.
Notun, então ajeitou-se, movendo-se mais para frente. A criatura no colo dele se agitou.
— Eu vou te ajudar. Vou te dar as ferramentas que você precisa para se salvar e para chegar até a montanha. Mais importante, vou te dar ferramentas para conseguir descer dela com vida.
— Como sabe para onde eu vou?
Uma risada ecoou pela caverna.
— Todos nós sabemos. Todos do meu povo sabem que você é aquele que busca e que no alto da montanha está aquele que descobre.
— Meus olhos… tudo isso é por causa deles.
Jiten cuspiu uma massa de sangue no chão.
— Não. Tudo isso é por causa da criança.
— O unmeiko… — Jiten sorriu, aquela velha lenda de sua infância se tornara terrível só de lembrar. — É ele quem tenho que amaldiçoar.
— É o destino dele que está te levando por esse caminho. — Notun parou de falar por um momento. — Mas não só você. Eu irei até a montanha com você, considere isso o pagamento por ter me salvado.
Jiten sorriu. Mais um trato. De quantos mais precisava? Mas foi o que ele havia ido lá para buscar. Algo que o fizesse viver, mesmo que agora já não pudesse mais ver motivação para isso. Não iria morrer de mãos vazias.
— Está bem.
Notun pegou o filhote que tinha em seu colo e o levantou nos braços. A criatura parecia muito um filhote de urso, mas tinha braços mais articulados, tal como a mãe que Jiten enfrentou. Era como um pai segurando um bebê recém-nascido. Então, ele tocou o pequeno animal na testa com seu dedo de galho e rama.
Jiten estava debilitado demais para entender o que acontecia. Não houve luzes, explosões ou nenhum lampejo especial. Mesmo assim, ele sentiu algo mudar na atmosfera daquele ambiente. Soube que algo estava diferente.
— Venha. Levante-se. — Notun o chamou. Sua voz agora estava mais séria.
O rapaz então o viu pousar o animal sobre a pedra lisa. Quando o filhote abriu os olhos para contemplá-lo, não era mais negros e brilhantes, mas vermelhos. Tão vermelhos como o musgo que revestia a parede da caverna.
— O que fez com ele? — Jiten questionou após uma breve tosse.
— Venha logo.
O amontoado de galhos, folhas e musgo começou a andar rapidamente. Jiten se levantou, segurando-se na rocha, cravando até as unhas nela para se levantar. Mesmo que toda a dor se avizinhasse, ainda estava forte o suficiente para continuar seguindo.
Notun, a figura ancestral e tão esquisita, desceu pelos túneis que haviam conduzido Jiten. O rapaz o seguiu, sem tempo de pensar no filhote que deixaram para trás.
— Faça o que eu estou dizendo, tá bem? Será simples. Eu não posso sair andando para fora desta caverna. Estou fraco demais. — Seu andar era desengonçado, mas estranhamente resoluto. Notun aproveitava muito bem de cada instante que tinha para falar. — Tudo o que sobrou de mim está na árvore. Retire a lâmina dela. Pegue também algum pedaço do errante que você matou. A pata servirá. Depois, volte para a vila, você ainda vai precisar de tratamento médico.
Jiten caminhou até a porta da caverna, onde Notun estacou e o esperou.
— É longe demais.
— Você tem força o suficiente. Não se preocupe com isso.
Ante a noite fria e iluminada pela luz da lua, Jiten se voltou para os galhos ao seu lado. Mais uma vez, se via diante de forças muito maiores do que ele. A noite devolveu uma parte de seu medo. A visão da floresta lhe devolveu um tanto mais de dúvida.
Restou-lhe apreciar, respirando fundo o ar noturno, por um último momento na companhia daquela estranha criatura.
— Já que não pode sair da caverna, como vai me ensinar o que prometeu se eu for embora?
Foi então que escutou mais uma risada.