Quando acordou, sentiu primeiro o corpo, mas não viu nada. 

    Ouviu o som de água ao seu redor o envolver como um berço gelado. Não sentiu, no entanto, seu corpo ficar molhado e nem se sentiu suspenso. Estava em superfície sólida e sentia as costas apoiadas em madeira. Podia perceber que estava em movimento, mas demorou um pouco para entender que era um barco. 

    Seus olhos estavam cobertos por um pano grosso e o pouco da luz que escapava através dele já denunciava que o sol brilhava. O corpo estava letárgico, pesado e por alguns momentos, sentiu medo de tentar se mover. 

    Permaneceu deitado e estático por um tanto mais de tempo. Deixou-se descansar no som da água. Uns poucos minutos e juntou-se o som de um burburinho e então o de alguém pisoteando a água. Jiten sentiu algumas gotículas de água atingir seu rosto.

    — Ainda não sei. Vamos ver mais pra frente. — Era a voz de Amara.

    — Quero voltar logo. — Agora, a voz de Shio. 

    O som da água se agitando retornou, então o som de passos no convés. 

    —  Olha só isso aqui! — Quem falava era o mestre de Toshiro, sua movimentação pelo convés deixava transparecer pelos sons o tamanho que ele tinha. — Duvido que conseguem um peixe maior que esse!

    Alguma coisa caiu no convés e ficou se debatendo. 

    Jiten tentou se mover, mas desistiu. Esperou um pouco mais, tentando fazer as pazes com os próprios pensamentos. Ainda estava confuso sobre tudo o que acontecera. Muito aos poucos, podia lembrar de que fugiu pela floresta enxergando como se fosse dia. Será que tinha sonhado tudo aquilo, afinal?

    — Acaba logo com o sofrimento dele. Não quero vê-lo sufocar. — Shio murmurou. 

    — Da mesma forma que sugeriu que fizéssemos com o rapaz que viemos buscar? — O homem rebateu, mas em seu tom havia algo de deboche. — A senhora da piedade. 

    — Não achei que ele viveria. Ainda não acho. Estamos perdendo tempo. Um tempo valioso que…

    — Chega disso. Antes que comece de novo. — Agora foi Toshiro quem falou, ele estava em um ponto mais distante do barco. Sua voz soou impaciente. — Ele subirá a montanha, mesmo que tenhamos que carregá-lo nas costas.

    — Que seja. 

    Depois que a garota falou, um silêncio se estabeleceu por alguns momentos. 

    Tentou se mexer. A dor o lembrou de que para seu azar, não havia sido um sonho. Agora, quando tentava mover os braços com mais força, percebia-o imobilizado junto ao seu corpo. As pernas estavam pesadas e tentar movê-las as fazia queimar. Mesmo assim, fez um pouco mais de força. Estava ansioso. Será que ainda estava inteiro?

    — Ele está se mexendo. — Amara quebrou o silêncio e foi possível ouvi-la dar alguns velozes passos no barco em sua direção. — Está ouvindo, Jiten?

    Ele assentiu com a cabeça.

    Um momento de silêncio se seguiu.

    — Como eu disse. — Amara falou para alguém atrás dela. — Jiten, consegue mexer o corpo? 

    O rapaz tentou realizar um movimento com mais vigor, mas a dor era grande demais. Deixou escapar o ar pela boca e estremeceu. 

    — Tudo bem, não force demais. Consegue falar?

    — S-sede.

    Foi o que conseguiu responder. Sua boca estava seca demais, falar parecia forçar uma dúzia de pedregulhos garganta acima. Alguns momentos depois, sentiu água molhar seus lábios e bebeu como se o tivesse feito pela primeira vez. 

    Precisou de mais uma bolsa com água para ser saciado. 

    — Está melhor? — Amara lhe perguntou.

    Quis responder, mas as palavras ficaram perdidas em algum lugar entre sua mente e sua garganta. Restou-lhe manter os olhos expectantes e perdidos, parcialmente cegado pela luminosidade do dia e por todo o peso de tentar permanecer acordado mesmo quando o corpo gritava de dor.  Jiten tentou respirar mais fundo, mas podia sentir alguma resistência de seus pulmões. Uma dor nas costelas os apertava em um abraço involuntário. Ainda assim, anuiu com um aceno de cabeça. 

    — Está em segurança, Jiten. — Toshiro falou, distante ainda, mas mesmo de olhos vendados Jiten se sentia observado. 

    — Onde?— Era a pergunta mais lógica, talvez. O que havia acontecido era importante, mas lhe parecia mais urgente saber que não estava em algum lugar específico. Não queria estar em Soramaru. Não queria estar na floresta. Sua mente apenas tinha o instinto de que precisava ficar longe das arvores, como uma crian;a instruida pela mãe a manter distancia. . Seus olhos procuraram o bosque ao redor com espanto. Nao podia ver. Não podia correr. 

    As lembranças da noite enluarada a qual ele havia desbravado a floresta sozinho surgiam mais nítidas. A silhueta de uma centena de árvores e então, a silhueta terrível dos mortos. Draugos. Sim, havia enfrentado uma dúzia deles… ou mais? Carne podre, metal enferrujado, os globos oculares vazios cheios de sombras e os ossos enegrecidos expostos. Lembrou-se do cheiro e ficou enjoado. 

    O estômago vazio o impediu de vomitar. 

    — Estamos subindo o Aokawa. Paramos porque meu mestre quis pegar um peixe. O barco está amarrado à margem, mas estamos de partida. — Toshiro respondeu. 

    Jiten conhecia apenas parcialmente os rios e outras conexões do Arqueado, mas sabia que o Aokawa era um rio menor que se conectava ao Arqueado já em ponto final, mas que era grande o suficiente para ser usado como transporte. Sabia também que havia um pequeno clã que o defendia em sua porção mais inferior, mas que toda a parte superior estava sob os cuidados de um clã bem maior. Era plausível que esse clã fosse os Senzai. 

    — Deixamos Soramaru três dias atrás. – Completou, a voz lenta, desconfiada.

    Jiten abriu o quanto podia os olhos mesmo que não pudesse ver. Respirou. Olhou ao redor. Parecia verdade.

    Agora, podia se lembrar de que lutava na floresta. Como se fosse um sonho. Podia ver as luzes, olhos brilhantes brancos, o salpicar delicado das centelhas alaranjadas sobre o fio de sua lâmina. As lembranças o deixaram nervoso. Havia uma centena de sombras de arvores. Sombras que se moviam e tentavam mata-lo. Ate haver uma única sombra grande e cruel. Sua respiração se acelerou. 

    — Foi você que nos tirou de lá… E eu fiquei espantado tambem. — O tom de Toshiro partiu de um casual para um verdadeiramente inquisitivo. — Acordei pela manhã ao som dos camponeses te carregando para o castelo. Eles faziam muito barulho. Acordaram o lorde do mesmo jeito. Ate que acabou bem para nos.

    Jiten respirou fundo. Sentiu dor e apertou os olhos. 

    — Então, alguma coisa aconteceu naquela floresta que só você sabe, mas quando voltou trouxe a pata de um onikuma, uma fera que não é vista tão ao sul há séculos. Aparentemente, era o que estava causando todo o mal que assolava a vila.  — O tom de Toshiro estava marcado por uma desconfiança latente.  – Era a explicacao que o povo precisava e era plausivel o suficiente para o lorde aceitar. A cidade livre de uma maldicao e entao logo não era mais de bom tom deixar o herói e seus companheiros aprisionados.

    O tecido em frente aos olhos dificultava que conseguisse medir em que situação estava. Não sabia o que deveria esconder e o que deveria revelar à eles. Em parte tudo pareceu um sonho, mas n’ao podia ser. A dor em seu corpo era verdade. Assim como o dia que foram atacados no campo fora de Bushimusuko. Sua mente podia projetar imagens tão fortes ou brutais? Tão vivas que lhe podiam quebrar ossos e rasgar sua carne? Tinha que aceitar que estava em meio a algo muito grande, fora de uma vida comum e simples. Era o povo escondido e todo o seu terror.

    — Matei alguma coisa. — Jiten falou e a materialização dessas palavras pareceu fazer sua boca secar novamente. 

    Não enxergava, mas havia silêncio ao seu redor. Só o rio sob ele cochichava com seu fluxo sob o casco do barco.

    — Me deixem com ele. 

    A voz de Toshiro fez o barco esvaziar. Jiten ouviu os passos no casco, sentiu a estruturar balançar a cada pessoa que saía de perto. Mesmo assim, quando o silêncio voltou mais uma vez, sentia a presença dele.

    — Eu sei o que é um errante. — As palavras soavam sérias, graves, não pareciam sair de um jovem. — Não é o tipo de coisa que uma pessoa sem treinamento seja capaz de sobreviver. Na verdade, mesmo com treinamento em Shanguo não é um combate previsível. Não dura o suficiente para uma pessoa entender o que está acontecendo. Uma vez que se manifesta é como estar diante da própria morte. Eu me considero abençoado por estar aqui. — Toshiro pronunciou cada palavra lentamente. Elas caíam como grandes bigornas de ferro. Era quase possível ouvir o som na madeira do barco. Jiten, então, sentiu a presença se aproximar e respirar perto de si. — Então, me surge você. Os camponeses não sabem reconhecer exatamente os sinais exatos. Uma pata de um onikuma é aterrorizante por si só, mas mesmo eles sabem que o que você matou era mais que maligno… 

    — E-Eu… 

    — Você. Você sobrevive ao ataque de um errante em Bushimusuko e então, mesmo infectado e ferido, mata um em Soramaru… — Toshiro emitiu um breve riso nervoso. — E volta com a lâmina da espada vermelha e negra. — Toshiro estava muito perto agora, Jiten sentia a respiração dele. — Se eu sou abençoado, o que você é? — Um momento de silêncio. — Predestinado. Seu destino é a montanha. Nosso destino é a montanha. — Uma voz entre um sorriso. — Eu preciso que essa expedição dê certo. Estou lutando pela sobrevivência, Jiten. Muitos dependem de mim. O Imperador se prepara para uma expedição e ele virá para o norte com seus maniren. Então, meu povo sangrará, como ocorreu em Bushimusuko dez anos atrás, em tantas outras vilas e fortalezas. Para impedi-lo precisamos de alguém para unificar o povo mugenjin. 

    Jiten tentou se levantar. Apoiou mais as costas, usou a mão para puxar a faixa que cobria seus olhos para baixo. Toshiro se levantou e ele sentiu o barco balançar sob os seus pés. Uma das faixas cedeu o suficiente para que um olho azul escapasse para a luz. Injetado em sangue, cristalino, brilhando sob o sol. Toshiro contra a luz sorria confiante e sua sombra era do tamanho do barco.

    — U-unmeiko… — Jiten soprou o nome ao vento.

    — Eu duvidei, muito mais vezes do que deixei os outros saberem. — Toshiro olhou para o horizonte e era possível ver no rosto dele o reflexo da luz do sol contra o Arqueado. — Mas agora, eu tenho fé em você, Jiten. Tenho fé nos seus olhos. Fé no seu sangue. Você encontrará o unmeiko. Subiremos a montanha e desceremos. Não importa o que aconteça. O destino não irá fugir de você. 

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