Capítulo 11 — E agora?
Mesmo em silêncio, o olhar do velho Renji podia comunicar muitas palavras.
Jiten o observou por alguns momentos. Um sentimento de expectativa se condensava dentro dele, deixando seu peito mais pesado. Ele entendia que alguma coisa estava fora de sintonia ali, algo que não conseguia ver com nitidez.
Assim como o olhar do velho comunicava silenciosamente, sua recusa em olhar o fazia igualmente.
Um suspiro longo e cansado vindo de seu mestre lhe deixou mais atento a este desconcerto.
— O que foi, mestre? — Jiten indagou. Fê-lo mais para quebrar respeitosamente o silêncio do que por curiosidade.
Ele sentia aquela tensão, mas não queria realmente saber do que se tratava. Ainda lidava com o sentimento confuso de ter estado diante do lorde, mas aquele incômodo o arrastaria para a conversa que necessitava ter.
Renji observou a porta por alguns momentos. Sua testa foi franzida ante os pensamentos que tinha em sua mente. Ele voltou ao centro da sala, deixando-se cair sobre uma das cadeiras. Seus olhos não procuraram Jiten.
A luz da lamparina estava quase se apagando.
— Fomos traídos.
Jiten se espantou. Havia um conjunto de afirmações contidas naquelas duas palavras. O rapaz entendeu que o grupo a qual ele se referia era apenas os dois naquela sala, mas também podia indicar todas as pessoas que já o haviam procurado por ajuda.
Mais do que isso, a indicação de que haviam sido traídos afirmavam que havia algo para trair. Sentiu uma onda de tensão subir por seu corpo como o abraço fatal de uma serpente.
O rapaz não teve compostura inicialmente para pensar em quem. Sua mente havia se estacionado sobre o sentimento. A ausência de segurança, a exposição, a ideia de que estavam sendo vigiados.
Lidavam com alguém mais esperto, mais apto em planejar e com mais recursos para executar o que planejavam. Era como lutar com um gigante. De repente, os atos de auxílio ao vilarejo, as reclamações que traziam para Renji, os escritos escondidos sob as tábuas. Tudo aquilo se tornou, na verdade, elementos de uma conspiração.
— Quem?
— Não percebeu? Neelima… ela falou de você ao lorde. Quem há de saber que tipos de ameaças sofreu para isso, mas ainda assim, traiu-nos.
— Mesmo depois de tudo que já fez por ela?
Renji deu de ombros e soltou um suspiro cansado.
— Eu suspeitava disso, mas não tinha muita coisa que pudesse ser feita. Já haviam me contado que ela teve mais de uma audiência com o capitão Nazher. Dá apenas para imaginar o teor das ameaças…
Jiten sentiu um misto de confusão e medo. Ele sabia de sua linhagem, mas não entendia porque isso poderia ser um problema para o lorde. Não havia uma ameaça em qualquer linhagem antiga e esquecida. Ele nem mesmo era descendente do ramo masculino daquela família.
Não tinha nada para herdar. O sangue em suas veias não lhe dava poder.
— E agora? — gaguejou essas palavras. Seus olhos pareceram ver no bruxulear da chama quase extinta da lamparina algum tipo de presságio. Ele se levantou para colocar um pouco mais de óleo nela. Como se assim pudesse se acalmar.
— Você sentiu na pele a dor do desafio que representa. Foi isso. Agora, estamos em risco permanente.
Jiten sentiu os dedos vacilarem. Ele segurava nas mãos um frasco com óleo. Seu corpo estava inteiro, ele deveria se sentir grato por isso. Mesmo assim, a mera lembrança da tortura sofrida era tal como receber um novo golpe.
Um golpe que lhe subtraía o fôlego pelo temor da dor que poderia atingi-lo novamente.
— Eu… porque eu? — começou, olhou a luz e teve que piscar os olhos marejados.
Sentiu-se um covarde. Incapaz de lutar para se proteger. Mesmo a submissão que ofertou não fora o suficiente para fazer com que lhe deixassem em paz.
— Não sei. Um homem como aquele não desperdiça o poder quando o vê. — Renji então direcionou seus olhos para Jiten. Sua feição era séria, profunda, as sombras permeavam os sulcos de sua pele lhe conferindo um ar ainda mais sombrio. — Ele ter usado o filósofo… isso não deve ser bom.
Jiten sentiu um arrepio subir por sua espinha. Por um momento lembrou do desprezo na voz do conselheiro e se sentiu humilhado.
— O que quer dizer, mestre?
Renji pareceu ter pensado em alguma coisa, seus olhos se moveram pela sala rapidamente, mas ele balançou a mão no ar, empurrando para longe de si aquela pergunta.
Jiten se incomodou ainda mais pela resposta que não tinha. Ao mesmo tempo, doía ainda ter que revisitar as memórias daquele encontro. Tudo saltava vívido demais em suas lembranças. Lampejos assustadores. Era como se lembrar de um pesadelo.
Sentindo o incômodo físico crescer, apalpou novamente o dorso. Era como se procurasse algum ponto que doesse. Alguma cicatriz, algum tipo de sinal.
— Ele usou Dogma. Havia algo nos olhos dele que… — começou Jiten, buscando sozinho suas respostas. — Por que um filósofo faria isso? Não deveriam ajudar?
As Escolas de Filosofia eram como grandes centros de estudo, retiro e busca de espiritualidade. Os homens da filosofia trabalhavam o desenvolvimento do espírito, do corpo e da mente, para se aproximar do divino.
Todos em um vilarejo já haviam se deparado com sacerdotes vinculados a alguma escola. Os cenobitas eram aqueles que visitavam e ensinavam sobre as virtudes que uma pessoa precisava cultivar.
Mais ao sul ficava o Templo de Sankkeut, protegido por um denso bosque, no qual os cenobitas viviam em seu eterno retiro. Acima dos cenóbios e dos templos, ficavam os Grandes Templos, onde estudavam os filósofos.
Um filósofo raramente era visto, mas todos sabiam o que era necessário para se tornar um. Era necessário um talento fora do comum, além de muito estudo e experiência, para se tornar capaz de executar o Dogma.
O Dogma tornava os filósofos em mensageiros das virtudes do universo.
— Um servo só pode fazer mesmo é servir. — Renji afirmou de maneira enfática. Em sua voz estava contida uma torrente de ressentimento. — Não há como ignorar isso. Viu como todos reagiram ao saber da presença dele?
Jiten assentiu com a cabeça. Ele sabia que naquele vilarejo havia pessoas que nunca sequer chegaram perto de um verdadeiro filósofo. Mesmo que a maioria acreditasse no poder do Dogma, muitos nunca o viram em prática.
Até aquele momento o rapaz nunca parara para pensar naquilo. No Dogma e no que podia fazer. Mesmo assim, quando Nobu esmagou seu corpo sem derramar uma gota de suor, ele soube exatamente o que era.
Aprendeu o medo que um filósofo pode gerar.
Não queria nunca mais ter que lidar com algo como aquilo.
— Mais um motivo para ter medo. — Jiten murmurou, sentindo seus ombros pesados.
Jiten não conhecia nenhum pouco sobre o universo político que cercava Bushimusuko. Mal havia tempo realmente para isso. Ele vivia a política dos Sanghun todos os dias. Sua vigilância, seus símbolos de força e sua brutalidade. Raramente, no entanto, não entendia os verdadeiros motivos.
O mundo apenas era desse jeito.
Jiten verteu o óleo na lamparina. Era sempre um momento delicado fazer isso com ela já acessa. O mero calor podia ser perigoso. No momento, sua preocupação principal era apenas não deixar a chama apagar. Criou algum apego pelo brilho dela.
Quando os dois ficaram em silêncio, Jiten pôde ouvir o som distante dos pássaros. O amanhecer se aproximava. Era como se vivesse uma história de terror próxima de ter uma generosa pausa.
A luz do dia poderia protegê-lo? Tal como nas histórias de espíritos maléficos que atacam somente durante a noite?
Ainda havia dúvida dentro dele. Tentou mantê-la em sua mente, mas podia sentir a agonia se formar sob a língua, desejando que abrisse a boca para perguntar. Dentro dele, no entanto, tinha a resposta.
— Eu só queria viver em paz. — confessou Jiten. Uma frase que lhe trouxe lágrimas aos olhos e ainda mais memórias.
Desde criança convivia com a dor de ter falhado com sua família. Nunca conseguiu se perdoar por isso. Quando aprendeu sobre sua linhagem e tantos outros feitos de seu pai, a dor apenas cresceu.
Essa dor um dia ficou tão grande que não lhe restou muito a fazer além de escondê-la. Como um grande e velho carvalho, crescendo com ele enquanto vivia, suas raízes ficaram tão profundas que lhe preenchiam os ossos. Suas folhas eram vermelhas, alimentadas por uma seiva rica em culpa e luto. Contudo, aprendeu bem a podar os galhos.
Ainda assim, vez ou outra, tentavam-lhe fazer verter a seiva. O destino sempre achava uma forma de o fazer sangrar.
— Neelima nos disse algo perigoso. — disse o velho e aquilo quase soou como uma interrupção. Jiten entendia, é claro. Sua confissão não tinha resposta, ou melhor, tinha apenas uma: não há paz sob a bota de um tirano. — Sugeriu que retirasse você e a espada do vilarejo. Um jovem sem treinamento viajando sozinho com uma espada sagrada? Isso é um engodo. Ele tem você, mas não sabe onde a espada está. Deve precisar dos dois.
— Para quê alguém quer uma espada de vidro? — Jiten resmungou, levou as mãos até a cabeça. Mais uma vez, perguntas cuja resposta envolvia assuntos que ele desconhecia.
Mais uma vez, Renji não se importou muito em responder.
Jiten, então, respirou fundo. Tentava processar o que o velho dizia. Era fato que apenas estava vivo porque ainda tinha alguma utilidade para o lorde. Ele já estava exposto, já estava vulnerável. O que o protegia da morte ou da prisão era a espada.
Teve um sobressalto. Sua memória trouxe de volta aquele embrulho que habitava sob as tábuas da cabana. O embrulho que ele nunca abrira. Linho enrolado com cordões. Uma arma entregue para seu guardada pelo herdeiro.
Seus olhos ficaram cravados no chão.
— Precisamos tirar ela daqui.
Renji se empertigou onde estava sentado.
— Ela quem?
— A espada. — Jiten disse, fitando seu mestre.
— Quem disse que ela está aqui?