Memórias de Jiten

    A vida não pode durar para sempre, a escuridão sim.

    Por tanto, era profundamente perturbador para um ser humano se ver imerso naquilo que mais se aproximava do vazio para si. Silêncio e escuridão. 

    Neste ponto, as lembranças de Jiten já havia passado de uma mera exploração do que havia passado. Enquanto ele estava deitado em sua cama, a escuridão da floresta naquela noite parecia se mesclar com a escuridão de seu quarto. De certa forma, era como adormecer.

    Uma vez no escuro, o menino sentiu muito medo. Não um tipo de medo paralisante, mas aquele que torna tudo que toca em seu corpo em algo hostil. A sensação de que alguma coisa estava a sua volta e ele não podia saber o que era o fez tatear o ar. 

    Essa escuridão completa durou apenas alguns momentos e então, um pouco mais de tempo até que o menino conseguisse enxergar com clareza a frente. A luminosidade parca que surgiu tomou de assalto sua atenção. Pontos reluzentes, ligeiramente embaçados, foram tomando nitidez. 

    Eram vaga-lumes. Centenas deles. Talvez milhares.

    Eles circundavam os galhos das árvores na mata fechada, dançavam seguindo uma harmonia em seu voo. Pareciam ter sido chamados pelo canto de Bjarka, mas talvez sempre estivesse estado ali.

    Sua luz era parca, ligeiramente esverdeada, mas em conjunto formavam uma verdadeira coluna luminosa. Era possível ver a vegetação ao redor e sobre eles, além do chão estar quase que claramente desenhado. 

    — Ele nos quer aqui. — Bjarka anunciou e foi ela mesma quem iniciou dando o primeiro passo. 

    O homem idoso hesitou por alguns momentos, deslumbrado pela visão dos insetos tão organizados em conjunto. Wulan se precipitou para frente e Jiten a imitou. O  restante do grupo voltou a marcha, atravessando a floresta, agora guiados pelos vaga-lumes. 

    Jiten não conseguia entender o nível espantoso daquilo. Não naqueles tempos. Aquela memória era tão parecida com um sonho que agora já era difícil de se diferenciar. Ele era pequeno demais para poder capturar com as mãos qualquer daqueles insetos que voavam sobre sua cabeça. Mal podia enxergá-los como eram, mas seu brilho era nítido. 

    Sua percepção daquilo era recheada de uma certa inocência. Um caminho bonito que parecia ter sido construído apenas para eles pela junção dos animais da natureza. Não reconhecia o quão anti-natural era aquilo e por isso não entendia o quão alarmado estava o idoso que seguia hesitante à frente deles. 

    A floresta era quieta naquela altura. Os sons dos animais pareciam desaparecer em um eco distante. A parca luz gerada pelos vaga-lumes ainda denunciava que o ar que os cercava era como uma espécie de névoa. 

    Aos poucos, o som de um cantarolar foi surgindo. Não haviam palavras, apenas o ressoar de uma melodia. O som era muito parecido com o gerado por uma voz humana, mas era tão rítimico e suave que era difícil de acreditar que não fosse alguma espécie de instrumento. 

    Jiten, então, viu uma pequena chama correr pela vegetação. Seus olhos se enganaram e ele ficou confuso. O fogo corria, mas não estava queimando nada. Passava por cima das folhas sem as incendiar. 

    O menino parou de andar por um momento, atordoado por aquela visão. Wulan notou e estalou os dedos na frente do rosto dele, puxando-o pela gola da camisa para continuar andando. 

    — O que é aquilo? — indagou o menino apontando para uma árvore próxima. 

    — Shiiiiiu. — Wulan o repreendeu. Ela não parecia assustada. Não era a primeira vez que ela estava naquele lugar. — ‘Tamo chegando. 

    Aquela frase fez Jiten se resignar um pouco. Se aquela garota não estava com medo, ele também não precisaria estar. Soltou um suspiro, tentando agir como um garoto mais crescido, ao mesmo tempo que a curiosidade e o medo dançavam dentro de seu estômago.

    Um pouco mais da trilha e ele descobriu o motivo pelo qual a visão daqueles eventos estranhos não eram assustadores. Pelo menos, não perto do deslumbre que podiam criar. As pequenas chamas aumentaram de tamanho, fluindo por entre os galhos como esquilos correndo e então saltando em direção a uma árvore maior. 

    A maior árvore que Jiten já havia visto em sua vida. Era um cedro como nenhum outro. A folhagem dele mesmo no outono não parecia ter sido impactada pela estação. As folhas eram verdes, mas incidiam uma coloração ciano, como se armazenassem nelas a própria cor do céu. Seus galhos eram maiores, mais robustos e se subdividiam em muitas partes. A madeira era escura, mas das rachaduras na casca se via aquela luminescência. 

    As folhas por vezes caíam e logo eram repostas, tal qual representando um rápido passar do tempo. Os galhos agitavam-se mesmo sem a presença de vento. A luz por dentro da madeira oscilava, sumindo e reaparecendo em diversos pontos. 

    Todos esses elementos convergiam em um tronco que se confundia com os próprios galhos. Aquela amálgama de folhas, madeira e luz desciam até se encontrarem na terra. Ao redor do cedro apenas gramíneas cresciam e nada mais, uma clareira inteira natural ao redor daquela árvore. 

    Jiten notou como as outras árvores ao redor, no restante do bosque, estavam ligeiramente curvadas em direção ao cedro. O sinal não era apenas a busca das plantas pela luz, mas se assemelhava com uma reverência permanente. 

    Conforme sua atenção foi direcionada de volta para a terra, notou que havia algo estranho sentado diante da árvore. A princípio, imaginou ser uma extensão das folhagens, mas logo notou que não se tratava da árvore. Bem, não parecia ser parte da árvore. Era algo diferente.

    Então, na mente do menino uma série de imagens surgiram e ele estacou. Sua mente imaginou um monstro, um ser gigantesco, depois imaginou ser apenas uma árvore diferente e então de volta ao monstro. 

    Um toque em suas costas o assustou. 

    — Não tenha medo, menino. Ele quer te ver. — Khanh falou, era a mão dele que o empurrava para frente, para continuar andando. 

    Andaram até um ponto central na clareira. Cada vez mais o ser estranho ao pé do cedro se tornava mais nítido. Sua forma era a de um grande urso, ultrapassando os três metros de altura. Sua pelagem se assemelhava a folhagem seca, escorrendo em direção ao chão e se embrenhando pelas gramíneas. A cabeçorra tinha um formato rudimentar, como se modelada em lama e os olhos brilhavam no mesmo tom ciano da árvore. Era possível avistar chifres de veado surgirem pelas suas costas, como galhos retorcidos.

    Chegando perto daquilo, alguém poderia se deixar confundir ao imaginar ser um monumento ou construção humana, mas logo isto era quebrado. Aquilo se movia. Estava vivo, era um ser consciente e não tinha pudor de mostrar afiadas garras nas patas gigantescas. 

    Jiten estava amedrontado e fascinado. Ele podia ver como aquelas pequenas chamas que observara deslizar pelas árvores agora se agregavam nos galhos do gigantesco cedro. Podia enxergar que não eram como o fogo comum, mas criaturas pequeninas, cuja pele era feita de fogo, mas seus corpos não incendiavam a madeira, apenas reluziam junto a ela.

    — Oh, poderoso Cedro Celeste. Coração do Bosque. Vós que possuís os segredos do passado e a memória da floresta. Pedimos humildemente que nos aceite em sua presença. — exclamou Bjarka, curvando-se até o chão. 

    Todos imitaram o gesto dela.  Jiten ficou confuso por um momento, mas Wulan o puxou para baixo. 

    — Concedo, pela natureza de nosso trato, você tem a liberdade. — A voz que emanou daquela criatura ressoou pela madeira e por entre as árvores. Ecoou de volta e mais uma vez. Parecia vir de dentro e de fora. Era a floresta inteira que falava. — E quem são estes que te seguem. Não os conheço.

    Jiten pôde entender a forma dos adultos reagirem alarmados como um sinal de que aquela cobrança não era boa. Ele não sabia o que pensar, estava estático, assistindo aquela cena. 

    — Estes homens vieram até mim com um pedido que não pude recusar. 

    O ser não respondeu de imediato. 

    Todos sentiram a força da inspeção de sua energia. Não eram apenas os olhos brilhantes da criatura que os observava. Existia algo mais, ramos invisíveis que se embrenhavam ao redor da pele e apertavam as juntas. 

    O ser não apenas os olhava. Ele os envolvia. Ele era o próprio lugar. 

    — Deixem-me vê-la. — A voz do espírito ecoou pelo bosque. 

    Após um momento de hesitação, os homens que carregavam os cadáveres se aproximaram da criatura. Eles depositaram os corpos diante do ser, enquanto tremiam e suavam frio. 

    O temor era verdadeiro, mas Jiten não estava apavorado. Era muito diferente da sensação que experimentara no dia que sua família faleceu. Não era uma força maligna que governava o bosque, mesmo que ainda conseguia entender que aquela não era necessariamente uma força benigna. Ela era o que era. Nada mais. Nada menos. 

    — Ah. — Uma exclamação mesclada a um suspiro saiu do ser. 

    Jiten viu os corpos deixados na relva. Seus olhos não queriam acreditar no que viam. Era como um sonho. Não podia ver o rosto de sua mãe ou de seu irmão. Apenas o tecido no qual ambos foram enrolados. O menino quis se aproximar, mas não ousaria se mexer sem que aquele ser misterioso o permitisse. 

    — Esta é Mitsuki Yanmoshen. Oh, Grande Cedro. Ela manifestou que após seu último suspiro era diante de ti que ela gostaria de descansar. Sobre ela jaz seu filho, ao qual fazemos justiça, pois tão pequeno e tão brutalmente morto, não deveria ser separado da mãe. — Bjarka falou, evitando sequer erguer a cabeça ao pronunciar suas palavras.

    — O que vocês entendem da morte? — o ser respondeu. Uma entonação baixa e grave. Era possível enxergar o brilho fixo de seus olhos etéreos nos corpos diante de si. — Trazem-me corpos vazios. Que monstruosidade profana faria algo assim? A mãe. O filho. — Demorou-se nas últimas duas palavras. Então, seus olhos se ergueram. — Há mais um. 

    Jiten sentiu então o olhar de todos os presentes se voltar para ele. A sensação de estar sendo observado por aquela criatura, todo o envolvimento da energia dela. Tudo aquilo culminou nele. Um arrepio se espalhou por sua espinha.

    Foi quando sentiu que devia se aproximar. Um passo de cada vez até estar diante do cedro. A presença daquele ser era quase sufocante, mas ele não sentia vontade de correr. 

    — Um menino. É isto? Oh, quão grande são esses sonhos perdidos! — A voz do Cedro era de lamento. 

    O menino sentiu seus olhos se encherem de lágrimas. Ele mal conseguia enxergar a criatura grandiosa. Um mundo distorcido consumiu sua visão. Diante dele, os corpos de seus familiares. Seu amado irmão, que ele deveria proteger e sua mãe, a qual o amor ele não era capaz de entender. 

    Seu coração de menino encolheu. Tão pequeno quanto um grão de arroz. Nem podia senti-lo bater.

    — Quanta dor. Quanta dor vocês homens espalharam pela terra que nós os demos. — A voz do ser foi intercalada de soluços. Manifestações quase humanas de sofrimento. Era possível ouvir os sons misturados a uma cascata de lágrimas. — Meus irmãos! Olhem, meus irmãos!

    A terra pareceu estremecer. As folhas caíram das árvores. O céu escuro rugiu um chamado pela terra. Naquele lugar, era possível sentir a pressão aumentando. Pareciam ter sido mergulhados na água de uma única vez. 

    Jiten podia sentir a dor que o Cedro evocava. Ouvia de novo o clamor de sua mãe. Mais uma vez, toda a dor que contemplou atingiu cada milimetro de sua pele, cada junta de seus ossos, cada fibra de músculo que tinha. 

    Tudo havia sido perdido. 

    — Contemplem das montanhas, das colinas, dos rios, dos mares, dos ventos, das nuvens, dos bosques e das florestas, e entre os homens e suas cidades. Contemplem a dor que infligiram a ele, as promessas desfeitas, o Grande Sonho quebrado e o pedaço que lhe arrancaram. — Aquelas palavras espalhavam uma sensação nauseante em todos os presentes. Foi impossível que mesmo o mais amadurecido dos homens ali não chorasse. Lamentavam a perda. — Meus irmãos! O fio segue no tear, mas não há mais o que tecer. Saibam a dor que nos aguarda. Contemplem como é terrível! Como é sombrio o destino dos grandes!

    Jiten ergueu os olhos e então viu que a gigantesca criatura diante de si olhava para baixo. Sua energia reluzia, a coisa mais bela que já viu, mesmo em seu sofrimento. O Cedro Celeste, sagrado entre os mugenjin e entre os antigos. Ele estava curvado. Tudo aquilo era dor? 

    O menino aos poucos se acostumou com o ar. Era infantil em seu olhar, mas algo profundo havia sido amadurecido. Sentiu que já conhecia aquele lugar, que não era tão diferente e então, as lágrimas que desciam de seu rosto pareceram liberar sua visão. 

    O Cedro já tinha os olhos sobre ele. O brilho intenso de seus globos oculares. Mesmo assim, não era com aquelas luzes que ele enxergava. O Cedro enxergava muito além dele mesmo. 

    — Homem Não-Homem, olhos de cristal lhes demos e um coração vermelho como o crepúsculo você escolheu ter. Sozinho. Completamente sozinho. Não há mais sonhos ou ilusões. Apenas o imanente destino nas coisas que se pode tocar. A esperança não irá fazer de você menos que é. Você viverá o sonho partido e experimentará a promessa quebrada. Você não pode fugir da dor.

    Então, Jiten começou a sentir o chão sob seus pés se esfarelar. O chão não era mais confiável. Não havia mais a luz do Cedro e de seus pequenos servos flamejantes. Não havia mais Wulan, Khanh, Bjarka, nem homem velho e seus ajudantes. 

    Não havia mais os corpos. Eles foram engolidos pela terra. 

    A memória se espalhou como nanquim derramado sobre a terra e ao ser absorvido, deixou para trás um sentimento negro. 

    Uma voz se consolidou na escuridão.

    — Você não pode fugir do trato!

    […]

    Então, Jiten acordou de um sobressalto. Agarrado às cobertas com tanta força que seus dedos doíam. Estava ofegante e suado. 

    Podia ver a luz do dia brilhar por entre as ripas de madeira da cabana. Ele estava sonhando. Uma memória antiga e cheia de palavras incertas. Algo mais como um pesadelo. Ergueu-se sobre a cama. Devia ter dormido demais, estava provavelmente atrasado. 

    Lutou contra as imagens em sua mente que tentavam voltar. Renji não o havia despertado e o rapaz podia ouvir pena contra o papel. O velho estava escrevendo? Para quem? 

    Ainda estava nauseado. Sua mente ainda tentava processar tudo que lhe ocorrera no dia anterior e o pesadelo em nada havia ajudado. Apenas sentia cimentado em si uma sensação de opressão. 

    Nesse tipo de situação, só existe um único remédio. Agir como lhe era esperado. Fazia-o desde a infância.  Seu destino estava nas mãos de Renji agora, como sempre foi, quem sabe não era mesmo melhor assim. Era mais fácil não ter que decidir. A dor se tornaria mais aceitável. 

    Afinal, a dor não pode durar para sempre.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota