Capítulo 18 — O Carneiro
Era sufocante.
O ar parecia contaminado. Irritava os olhos, tornava a respiração mais sofrível e causava uma ânsia de vômito que se prendia a parte mais baixa da garganta. Jiten tinha o rosto manchado pelo sangue e os olhos azuis abertos pelo medo.
A vítima foi Reinn. Sua garganta aberta como uma rosa na primavera, mais rasgada do que cortada, seu sangue jorrando refletindo a luz quente da fogueira. O mais velho entre os pastores tinha uma expressão de surpresa, de súbito se vendo diante do último de seus momentos.
Os olhos de Jiten fizeram o caminho até ao que estava atrás dele. Primeiro viu a espada, uma lâmina torcida e quebrada, estava coberta por barro ou alguma outra substância pegajosa misturada ao sangue de Reinn. Na extremidade da arma estava uma mão pálida, anoréxica, com uma pele tão fragilmente apegada aos ossos que se fosse puxada de certo que se desfaria. As sombras mascaravam o corpo, mas o rosto estava iluminado pela luz enfraquecida da fogueira.
Era um rosto não-humano, mas não era de todo animal. As sombras se agarravam à face macabra daquele ser como betume fumegante, tornando incerto onde começava a matéria e onde começava a escuridão. Tinha olhos que brilhavam como os de um predador. Uma espécie de raposa no qual se enxergava um sorriso de dentes retangulares como o de homem.
A aberração levou Jiten em um milésimo de segundo de volta ao passado. Ao dia que viu sua mãe e irmão morrerem. No dia em que seu mundo foi rasgado pelo golpe de um arpão. Ficou paralisado, uma vez mais, incapaz de reagir a uma agressão.
Havia mais do que somente um. Fukusa se jogou no chão ao pé da fogueira para escapar de um golpe de tacape que desceu sobre ele. O segundo mais velho entre os pastores se agachou para agarrar seu bastão e tentou espantar uma terceira criatura para longe com movimentos a esmo e um grito de desespero.
Aquele grito despertou Jiten de seu transe, se abaixou para alcançar seu próprio cajado, mas ao erguer as costas, viu uma lâmina se precipitando contra ele. O rapaz se esforçou para curvar o corpo e compensar o movimento, mas sentiu o corte e o impacto lhe jogarem para trás.
Perdeu o equilíbrio por um momento, sangrou na grama e tossiu tentando recuperar o fôlego. O cajado ainda em mãos e a necessidade de proteger a própria vida. Aquelas criaturas não exigiam submissão, não havia como impedir a morte ali apenas dobrando os joelhos. Ele tinha que repeli-las.
— São eles. São eles. São eles. Vieram devorar nossas carnes e nos levar para sermos servos das trevas — desesperava-se Fukusa, arrastando-se no chão para fugir das criaturas.
Jiten forçou seus músculos para alcançarem a postura correta. Aumentou o aperto ao redor de sua arma quando viu o pastor mais gordinho entre eles ser agarrado pelos braços e receber golpes sucessivos de uma faca cega em sua pança. Seus olhos verdes petrificados pelo horror, fitavam os rasgos nas próprias tripas sem capacidade para processar o que acontecia.
O carneiro. A primeira postura que aprendeu. Um animal pequeno, mas capaz de repelir um adversário pelo impacto de seus golpes. Uma técnica que Jiten dominava apenas parcialmente com o bastão. Mesmo assim, não havia muita escolha.
A postura do carneiro era essencialmente defensiva, focada em contra-golpes e impacto. Adaptava-se bem ao cajado que tinha em mãos. A respiração era essencial, assim como o sentir firme do chão sob os pés. Atraía energia do solo, como um carneiro o faria para impulsionar os golpes para cima. Animais de corpo largo e redondo, a energia fluía de um centro de massa amplo em direção aos chifres, a arma.
Seu corpo inteiro pareceu se retesar. Cada músculo embebido por algum tipo de energia guardada em potencial. Era como derramar óleo sobre uma labareda e observar as chamas subirem. Para tornar o fogo mais forte, só era necessário ar. Então respirou fundo.
Um momento e o ar entrou em seus pulmões. No momento seguinte, ele jogou seu peso para trás. Deixou que um dos monstros se aproximasse para mais uma investida. O peso de seu corpo conduziu os músculos para um golpe com o bastão de baixo para cima. Como um carneiro golpeia seu inimigo. O impacto estraçalhou ossos, metal e carne.
As sombras se espalharam em conjunto do sangue pútrido e os pedaços do maxilar arrancado do monstro se dividiram enquanto voavam pelos ares. Jiten girou o bastão duas vezes para ganhar velocidade e então mais um golpe antes que seu adversário reagisse. Fagulhas alaranjadas se espalharam ao redor dele, quando atingiu com firmeza o centro do peito daquela criatura e o bastão a o rasgou tal qual faria uma lâmina.
A criatura tombou, mas não tinha tempo de ver se ela estava de fato acabada. Importante era colocá-la fora de combate. Seus olhos procuraram pelas que sobraram. Viu Kousou lutando contra duas, atingindo mais ataques no vento do que nelas, mas conseguindo contê-las. Fukusa era perseguido por mais duas e as outras duas ainda torturavam o gordinho com golpes e mais golpes, despedaçando-o.
Jiten então saltou na direção das duas criaturas que perseguiam Fukusa. Uma delas, com uma lança quebrada na metade do cabo, tentou estocar o rapaz que intervinha em sua diversão. Jiten girou o bastão para atingir a arma e desviá-la, mas no meio do acampamento não tinha espaço para um contra-golpe totalmente amplo. Satisfez-se em bater a ponta do bastão contra o centro do peito da criatura para afastá-la.
A outra agarrou a madeira. Tinha feições de uma espécie de ave, lábios quitinosos e afiados, mesmo que dentro da boca figura-se uma sequência irregular de dentes podres. Seus olhos eram muito humanos, congelados em uma expressão que variava entre o ódio e o desespero. A selvageria daquele ser era uma das maiores.
Como se pensasse ser uma ave de rapina, o monstro saltou sobre ele, as pernas saindo completamente do chão e os braços abertos contra o brilho da lua. Este não usava armas, apenas as mãos secas, o osso das últimas falanges dos dedos expostos como garras afiadas.
Jiten precisou se jogar para trás. As garras da criatura atingiram o solo rasgando a terra. Quase perdeu o equílibrio e usou o bastão para se sustentar. Esse segundo de abertura foi enxergado pela criatura rapinante que avançou em sua direção com múltiplos golpes descontrolados.
A imprevisibilidade era tão difícil de lidar quanto a escuridão. A lua brilhava cheia e imponente diante deles, o que deveria ser escuridão era penumbra, mas ainda assim, difícil de enxergar com clareza. As sombras que compunham aquela besta faziam os membros dela desaparecerem e reaparecerem.
O brilho da fogueira era um guia, mas não o salvava. Executava movimentos sucessivos para atrás como se saltasse, mas a postura do carneiro não lhe permitia tanta flexibilidade. Restava-lhe o contra-golpe, empurrando a criatura com o bastão sempre que ela se aproximava demais.
Uma ovelha passou correndo entre os dois arrastando as próprias tripas. O sangue e o terror no balido dela desviou a atenção da criatura por um instante. Jiten se aproveitou para afastá-la com um impacto firme da ponta do bastão, então o girou e debaixo para cima mirou mais duas estocadas. As fagulhas alaranjadas se fortaleceram, modelando-se no ar como chifres recurvos a cada golpe.
Quando o monstro contra-atacou tentando agarrar o bastão, Jiten girou-o para baixo, forçando a criatura a se curvar e então acertou a outra extremidade do bastão contra ela, quebrando o bico afiado. O som que foi provocado foi o de uma panela sendo amassada. As fagulhas giraram ao redor de Jiten iluminando a escuridão.
Ele concentrava a energia em seus músculos, sentindo-a fluir e a adrenalina manter seu coração batendo veloz. Era como se dragasse força da respiração em direção aos músculos e seu peito estufado parecia cheio com pulmões que pareciam duas vezes maiores do que o normal.
Só então percebeu o som alto do balido das ovelhas. O som de carne sendo rasgada. Olhar ao redor só lhe rendeu a visão das ovelhas fugindo e de vultos que por entre elas se moviam.
Ele tinha que proteger os animais, mas dali, ainda via que Kousou estava sendo quase subjugado pelos seres. Ele resistira bravamente. Contudo, era óbvio que não poderia lutar mais. Tinha um dos braços rasgados de forma que era possível ver os ossos sob os cortes e não tinha mais fôlego algum.
Fukusa ainda se arrastava em desespero. Jiten tomou impulso, correndo em direção a ele, mas antes que pudesse chegar o viu cair para trás. Atacou diretamente a criatura que perseguia o menino, deu-lhe um golpe na lateral do crânio e ela revidou em reflexo cortando-lhe superficialmente o braço.
— Mãe! Pai! — gritou Fukusa em direção às planícies, mas não era capaz de gritar mais que uma ovelha.
Jiten precisava resgatar Kousou, mas antes que chegasse nele, o viu subjugado por quatro criaturas. O rapaz caiu em cima da fogueira, puxando os monstros com ele, mas os braços mal podiam segurar um deles. As brasas se espalharam pelo acampamento enquanto o grande rapaz se debatia, apegado aos últimos momentos de vida.
O som dos gritos, do choro de um garoto e o balido desesperados das ovelhas deixaram Jiten atordoado. Quando só havia penumbra sobre ele, pôde ver que os olhos daquelas criaturas brilhavam na escuridão. Elas o olhavam agora enquanto se refastelavam em carne e sangue.
Jiten perdeu a conexão com seu treinamento, abandonou a postura e deu alguns passos para trás. Suas pernas tremiam e já mal sabia como continuar lutando. Fukusa começou a correr, afastando-se dele e aturdido apenas conseguiu o seguir com os olhos.
Viu o mais jovem entre os pastores da vila ser despedaçado em seu bonito robe. O presente que ganhara de seus pais. Tornado em pedaços quando confundido com uma ovelha no meio delas, já que não era muito mais do que isso. Não havia nada que pudesse fazer pelo rebanho. Não os podia defender e a visão de tanta morte de uma vez o puxava ao passado, para um trauma que enterrou e para um estado mental que não podia contornar nem mesmo com seu treinamento.
Restava Jiten ali e os monstros se aproximavam dele. Não gritavam ou berravam, não rosnavam ou uivavam. Tudo que ele pensou é que mesmo que não enxergasse seus rostos dismorfos e animalescos, eles sorriam.
Fez então o mesmo que fizera dez anos antes.
A única coisa que um menino pode fazer. Correu para floresta.
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