Capítulo 19 — O Manto
A floresta o protegeu com um manto de escuridão.
Ele pôde ouvir o som do resfolegar das criaturas entre as árvores enquanto adentrava a mata. Aqueles seres respiravam? O trajeto tortuoso entre as árvores era escuro, os galhos se agarrando ao seu rosto, enquanto o som dos passos e da respiração permaneciam altos.
Esbarrava nos troncos das árvores, tropeçava em raízes e mais de uma vez sentiu o corpo e a cabeça atravessar uma teia de aranha. A folhagem que principiava sua queda no outono formava um colchão para os passos, mas mesmo assim não parecia o suficiente e a corrida apenas parecia aumentar a poeira.
A poeira que o sufocava.
Sem mais poder respirar direito, jogou-se de costas contra um tronco de árvore. Seus olhos já estavam acostumados ao escuro e o brilho parco que a lua podia fazer penetrar a copa das árvores chegava até ele apenas como feixes espalhados.
Esperou por alguns momentos, segurando o cajado de pastor com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos. Seus pulmões simplesmente não pareciam se saciar e seu coração era incapaz de diminuir seu ritmo, mesmo após parar a corrida.
Aos poucos, se deu conta de que os sons que ouvira eram produzidos por ele mesmo. O pisotear das folhas. A respiração pesada. O som dos galhos sendo retorcidos. A floresta só ecoava dentro de sua cabeça.
Jiten conhecia bem a floresta, mas durante a noite era impossível saber direito onde estava. Todas as árvores naturalmente já se parecem e na escuridão elas se tornam presenças assustadoras. Tudo parece muito mais assustador sob as sombras.
Ficar ali parado aos poucos lhe pareceu uma solução possível. Mesmo que não soubesse se era o suficiente. Seu corpo não pareceu querer se mover muito mais. Quanto mais respirava e quanto mais suor pingava de sua testa, menos as pernas tinham disposição de se mover.
A floresta estava em silêncio. Sob a lua, não deveria. Contudo, sua aproximação ali deveria ter espantado uma boa quantidade de animais. Quando uma entidade estranha anda na floresta, ela se cala, pois ninguém quer ser notado no escuro. É por isso que a noite para alguns é tão mais segura que o dia.
Jiten parou por alguns momentos para refletir sobre o que havia acontecido com os outros pastores naquele campo. Conhecia-os há muito tempo. Eram figuras que ele sempre tinha a disposição de sua vista se circulasse pelos campos. Não eram tão diferentes dele, afinal. Viviam como pastores, cuidando de ovelhas, guiando-as e as protegendo de lobos.
Naquela noite não foram elas as presas. Foram eles.
Aquilo eram draugos, então? Como na lenda. A história que os rapazes contaram como um presságio de seu próprio infortúnio? Aqueles seres não pareciam apenas mortos que andavam. Exalavam uma podridão completamente diferente de carniça ou um cadáver. Mesmo a podridão é alimento para alguns animais e outros seres, mas aquela podridão era apenas infecta, nojenta e sombria.
Como algo daquele tipo podia existir?
Jiten sentiu-se pressionado pelos próprios pensamentos. A cabeça queria doer pelo esforço físico ou pela ansiedade que sentia. Teve a impressão de ver uma árvore se mover sob a luz da lua.
Ficou tenso. O corpo enrijeceu. Estreitou os olhos e o coração batendo forte queria lhe dizer que o risco ainda não havia acabado. Seja lá o que aqueles monstros queriam, não tinham se saciado na carne das ovelhas e de seus companheiros.
Queriam devorar seus olhos azuis como cristal.
Ele ouviu o som de metal atingindo madeira. Ao olhar para frente não conseguia enxergar o que estava se aproximando. O som se repetiu mais algumas vezes. A noite silenciosa só servia para compor ainda mais o medo que sentia.
Viu primeiro como sorriso. Sorriso vermelho e brilhante tal qual as lamparinas na fortaleza de Bushimusuko. Não viu olhos, mas não tinha certeza se não estavam lá. A coisa que apareceu entre uma faia e um abeto não era humana, nem mesmo um homem morto como vira antes os draugos. Não era animal, pois ao que podia ver não tinha carne, nem pêlos e nem penas.
Era alguma outra coisa.
— Eu consigo te ver.
A voz era gélida e áspera, parecia arranhar, mas era profunda. Jiten sentiu um arrepio na espinha e diante da concretização do medo, na visão da criatura diante dele, seus músculos pareciam mais dispostos a responder.
A criatura era uma amálgama de sombra e metal. Não tinha uma superfície ou forma que se definia. Parecia tão fundida à noite como o metal se fundia a ela. Sua pele parecia ser feita de ramos secos e negros, agarrados com lâminas de espadas que brotavam de seu corpo em diferentes posições.
Havia alguma tentativa de alinhamento ali. Pernas, braços uma cabeça deformada. A criatura não tinha carne, mas os galhos e as sombras se amarravam de uma maneira que era possível até distinguir músculos. Era como se alguém tivesse usado um ser humano como uma forma, unido espadas, lenha e folhas de outono, então, derreteu sombras como o faz um ferreiro e as derramou sobre o molde.
Além da forma, deu-lhe uma boca. Não era possível ter certeza se para sorrir, falar ou devorar.
Alguma coisa foi aprendida no caminho.
A criatura se aproximou, atravessando o espaço entre eles com mais facilidade do que Jiten podia esperar. Era estranho ver aquele ser se mover, plenamente, imitando um homem.
Desviou no último momento. Um reflexo, não um movimento pensado. Sentiu o arranhar de algumas raízes nos braços quando rolou pelo chão. Quando olhou a criatura ainda estava sorrindo, com o braço enfiado até a metade no tronco da árvore.
Jiten se ergueu e retomou o equilíbrio. Seu coração batia acelerado. Nada do que Renji já lhe havia ensinado se aplicava naquela situação. Sempre imaginara lutar contra homens, vencer a força com a técnica e sobrepujá-los. Aquilo, no entanto, não obedecia essas regras.
— Eu te vejo. — Uma vez mais a voz arranhou e ecoou na floresta.
O rapaz viu a criatura avançar mais uma vez e tentou bloquear com seu cajado o golpe seguinte. Por muito pouco a arma não foi arremessada para longe de sua mão e o som da madeira prestes a quebrar fez aumentar seu medo.
O ataque foi desviado, mas seu adversário rapidamente se recompôs e o acertou na lateral do corpo. As lâminas lhe cortaram, mas o que mais doeu foi o impacto. Caiu entre as raízes e se arrastou para se reposicionar. Os golpes seguintes ele apenas ouviu o som das lâminas acertando as árvores e quebrando suas cascas.
Girou em suas costas e saltou para ficar em pé. Nervoso, uma gota de suor caiu de sua testa. Ele respirou fundo e recobrou a postura do carneiro. As fagulhas alaranjadas se iluminaram ao seu redor, rodopiando como um ciclone de vento erguendo as folhas do chão.
Desviou do ataque seguinte com um passo para trás e golpeou para frente acertando o torso do monstro. O impacto deveria ter quebrado as costelas de um homem comum, mas naquele ser apenas fez um som surdo e espalhou pedaços de madeira pelo chão.
— Consigo ver. — A criatura bradou.
O ataque seguinte veio em direção as suas pernas. Um. Dois. Três golpes. Para cada um deles, Jiten precisou dar um passo para trás. Teve de saltar para o lado quando sentiu que havia uma árvore em suas costas. A velocidade do oponente abria pouca margem para contra-ataque com um bastão. As árvores não lhe davam espaço suficiente para girar a arma e devolver os ataques com amplitude suficiente.
Estava mais fugindo do que lutando, mas não via muito mais opções.
Mais uma tentativa de bloqueio. Queria impedir um dos golpes e estar perto o suficiente para girar o bastão de cima a baixo. Usando sua postura conseguiria acertar a cabeça da criatura, talvez, atordoá-la. Contudo, o cajado não aguentou o golpe. Partiu-se ao meio. O braço da criatura o acertou no peito com o ímpeto restante.
Jiten foi jogado mais uma vez ao chão.
Não tinha mais arma alguma para usar. Enquanto puxava o ar para recuperar o fôlego, viu a criatura se aproximar e envolver sua perna com um misto de corrente, sombra e cipó. Aquela coisa se agarrou ao tornozelo e o apertou com força. Jiten sentiu espinhos perfurando sua pele.
Antes que pudesse se erguer de novo, estava sendo arrastado.
Não conseguia enxergar direito. A floresta o cobria com sua escuridão. A proteção das sombras agora se voltaram contra ele. Seu mundo virado de cabeça para baixo, enquanto era puxado e esfolava a pele nas raízes, pedras e arbustos, conseguia ver a lua.
Ainda tinha um pedaço do cajado de pastoreio em mãos. A criatura se movia tão rápida quanto um homem. Jiten não sabia para onde ela o levava, mas seu corpo sentia o arrastar no solo começando a lhe rasgar a pele.
Enfiou o pedaço de madeira no chão e sentiu a terra ser cavada. Girou seu corpo com toda a força que encontrou e então usou o peso que podia para forçar ainda mais para baixo a estaca. A poeira se ergueu e o cegou, mas em algum momento, a estaca se prendeu em uma raiz.
Ele sentiu a força quase deslocar seu pé. Conseguiu interromper o movimento da criatura que sofreu um efeito chicote para trás. Tinha apenas um momento para agir. Encolheu o corpo e golpeou com a mão esquerda, imprimindo no golpe o tanto de força que poderia lutando com as mãos livres. Foi o suficiente para rasgar uma parte da estranha corrente que o prendia, mas a custa de seu dedo mindinho quebrar.
Um puxão e estava livre.
Cambaleou e correu. Podia ouvir o som metálico que a criatura fazia ao correr atrás dele.
— Eu vejo. — exclamou ela, um som apavorante vindo das costas do rapaz em fuga.
Contornou árvores. Podia sentir o tornozelo ferido, a cada passo doendo mais. Não sabia se aquilo se devia aos espinhos ainda fincados na pele com o resto da corrente ou se ele o havia deslocado.
Foi quando viu o rio.
O Arqueado. Uma massa de água sendo deslocada para baixo. A corrente estava forte. Uma lua disforme brilhava em sua superfície. Como uma lâmina recurva, a luz celeste no rio refletida era quase cegante.
Fosse o que fosse, o brilho da lua o chamou. Lançou-se ao rio. Ouvindo o metal estalar perto de seus ouvidos. A água o recebeu fria e foi como um golpe derradeiro lhe acertando todo o corpo. Um golpe tão mais parecido com um abraço gelado que ele não saiu de debaixo da água até que seu fôlego estivesse quase no fim.
Foi carregado pela corrente.
A luz refletida no rio então o protegeu, como um manto luminoso.
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