A neve nunca cai de uma única vez. 

    O frio sempre cresce de maneira gradativa. Conforme se aproximavam do inverno, mais frio se tornava a região. Não se viam mais os pássaros com a mesma frequência que em outras estações, as árvores já haviam deixado uma boa parte de suas folhas caírem e as chuvas diminuíram de frequência.

    Era como sabiam que o inverno se aproximava. Como quase tudo na vida, só poderiam ter certeza quando já estivesse sobre eles. 

    Assim viviam os aldeões. 

    Jiten naquela tarde, pela primeira vez em muito tempo, havia se distanciado de sua casa. Sabendo que o frio só aumentava, mesmo tão pequeno, já tinha consciência que logo ficaria preso em sua casa sem poder se distanciar muito. Parecia algum desperdício não aproveitar os últimos rastros de vegetação visível.

    No fim, poderia coletar um pouco de madeira e levar para sua mãe, como um pedido de desculpas. 

    Sempre lhe disseram que não deveria andar sozinho na floresta. Apesar disso, o menino olhava para as altas coníferas e não conseguia temê-las. Olhava o piso verde e ocre que cobria a floresta e não conseguia deixar de sentir a maciez ao pisá-lo.

    Geralmente, ali, haveria o som de pássaros, mas naquele dia quase todos pareciam em silêncio. No fundo, um sentimento de paz, sob um céu azul de muitas nuvens em que todas as árvores pareciam gigantes.

    Naquela oportunidade, aproveitou para pegar alguns galhos pelo chão. A lenha era um recurso valioso para as noites cada vez mais geladas. Quase sempre, sua mãe pagava pela lenha, já que preferia isso a deixar seus meninos pequenos sozinhos. Jiten sabia estar errado em passear ali, mas tinha certeza que ela o perdoaria.

    Na pior das hipóteses, ficaria trancado em casa de qualquer maneira.

    Não foi até que tivesse os braços cheios de galhos partidos, que Jiten notou a poeira. Tal qual o monstro que levou seu pai, havia uma névoa de poeira viajando por entre as árvores. Podia senti-la, muito mais perto do que jamais estivera.

    Podia sentir a poeira entrando em seus olhos, em seu nariz, em sua boca e se grudar na pele. Observou os espinhos, ornados de estandartes vermelhos e a massa amorfa sob eles avançar. A mãe dos monstros havia retornado. 

    Correu. Largou os galhos ao chão e correu o mais rápido que pôde. Entre as árvores, ele se confundiu com o caminho, tentando evitar ter de cruzar com aquilo que havia visto.

    Próximo de um riacho, tropeçou em uma pedra e se molhou na água fria. Seus olhos estavam cheios de lágrimas, mas a água lhe restaurou em parte a consciência. 

    Precisava voltar para casa. Quem sabe, seu pai pudesse estar entre todos aqueles homens. Já fazia meses desde que partiram, era mais do que a hora de ele voltar.

    Se o pai retornasse e Jiten não estivesse lá, cuidando de sua mãe, o que ele poderia pensar? Que aquela breve fuga representava todo o seu comportamento durante a ausência dele. Logo, Jiten seria punido muito mais duramente. Sim. Ele precisava voltar. 

    Jiten apenas encontrou o caminho de volta ao vilarejo quando avistou as colunas de fumaça. Torres negras cortando o céu sobre um vilarejo, erguidas por incêndios nos telhados de palha e madeira das casas. A poeira, os espinhos e a massa de homens se misturava com os gritos, o som de metal e as estruturas residenciais do lugar em que nasceu.

    O menino corria morro acima, diretamente para sua casa. Alguns camponeses corriam na direção oposta, fugindo da investida dos inimigos. 

    Jiten não parou para olhar no rosto de quem fugia, mas viu entre eles, homens estranhos de armadura. Só, então, entendeu que aqueles homens estavam perseguindo os fugitivos. O menino chegou à vila, pulou um cercado e se esgueirou por entre as casas.

    A poeira agora fazia parte de tudo e cobria tudo ao seu redor. Era como entrar em uma tempestade, mas nenhuma gota de chuva refrescante caía sobre ele. Sua mente se fundiu ao cenário, não havia o que pensar, apenas correr para casa.

    Alguém lhe agarrou pela blusa, puxando-o para um beco. 

    — Aqui, menino! Menino! 

    Sequer reconheceu a voz ou o rosto. Não olhou para cima, apenas bateu com força no braço que lhe agarrava e mordeu a mão que o prendia. Emitiu um grito estridente de raiva e desespero. 

    — Foda-se, também!

    Largaram-no e ele rastejou pelo chão de terra batida. Um impacto diante dele o fez parar e levantar a cabeça. Era uma flecha, fincada a menos de um metro dele. Olhando ao redor, via alguns homens se digladiando ao final da rua.

    Lutavam com forcados, lanças e bastões. Outros usavam espadas e com movimentos rápidos derrubavam e cortavam aqueles que os impedia de avançar. Os espinhos altos e os estandartes vermelhos eram fincados por todos os cantos. 

    O menino encontrou sua casa pelos fundos e escalou a janela de seu quarto. 

    Apenas quando já havia pousado os pés sobre as tábuas de madeira foi que sentiu o frio. Foi aquele abraço gélido que o fez perceber o quão quente estava o lado de fora. Mesmo com os agasalhos de linho e lã, ainda sentiu o ar congelar sua pele. 

    Subitamente, era como se já estivesse morto. 

    Ouviu um choro abafado e logo reconheceu a voz de sua mãe. A mulher balbuciava palavras a esmo, quase como se falasse outra língua. Foi a voz dela que fez com que Jiten voltasse a se mover, ajoelhado no chão, ele engatinhou até que tivesse visão da sala. 

    Por uma porta entreaberta, enxergou o terror. Sua mãe ajoelhada no chão estava diante de guerreiros sombrios. Não podia ver os rostos deles.

    Por mais que os olhasse, pareciam amorfos, como sombras. Jiten soube que não eram humanos, mas que também não eram animais. Vestidos como homens, mas eram alguma coisa muito mais sombria, como uma distorção oriunda de uma mente perversa. Assim, mesmo que não pudesse ver seus rostos, ele tinha certeza que sorriam. 

    Um deles, então, se destacava pela máscara. Era com aquele que Mitsuki falava. Era possível notar que os lábios dela tremiam pelo frio e seus braços tentavam debilmente manter o filho protegido.

    O irmão de Jiten estava imóvel, grandes olhos azuis, como aqueles cristais na lâmina do viajante, estavam muito abertos, capturados pela visão da máscara. 

    Era como o rosto de um demônio esculpido em marfim. Dentes afiados, chifres projetados e curvos. Os olhos e  a boca brilhavam com uma luminosidade parca de carmim e deles escapava uma névoa que dançava pelo ar.  Este demônio humanoide tinha nas mãos uma arma semelhante a um arpão, amarrado a uma corrente e a arma vibrava emitindo um som assustador. 

    Jiten quis se mexer, mas não pôde. Tinha os braços e as pernas pregados no chão. O corpo parecia tão pesado como uma bigorna e não lhe obedecia, nem mesmo para correr. Apesar do frio que lhe envolvia, sentiu calor descer por suas pernas e a vergonha de ter se urinado diante do perigo.

    Mesmo assim, era como estar diante da morte iminente. 

    Paralisado, Jiten nada pôde fazer para ajudar sua mãe e irmão.

    Desta maneira, foi parado que assistiu ao movimento repentino do ser mascarado  e seu golpe armado diretamente contra o peito de seu irmão. A arma não pareceu perfurar a carne, mas Jiten soube que ela havia penetrado profundamente no corpo do pequeno.

    Um som ensurdecedor de metal rasgando carne e então, o grito gutural de sua mãe. Foi como piscar os olhos, mas agora, Jiten além de parado, também tremia-se como o galho de uma árvore em uma ventania. 

    Ele sentiu como se seu próprio sangue tivesse congelado. Os tímpanos doíam. O coração batia tão alto que ele podia ouvi-lo como se fossem golpes nas tábuas de madeira. Os olhos não piscavam, incapazes de se desvencilhar da monstruosidade que era forçado a contemplar. 

    Mitsuki, sua mãe, segurava o filho agora desfalecido nos braços. A boca aberta em um urro de dor, que seria abafado por tantos outros gritos. Não havia sangue, nem sinal de ferimento, mesmo assim, Jiten soube que seu pequeno irmão já não estava mais vivo.

    A mulher segurava o pequeno corpo com tanta força que afundava a pele do pequeno. Aquele choro não era de uma única mulher. Era o choro de centenas de milhares de mães, quiçá milhões delas, em um único coro diante de uma ferida que se abriu.

    O sangue começava a circular novamente pelo corpo de Jiten. Sua respiração acelerada buscava por mais ar e não o encontrava, mas ele sentia que poderia se mexer. Começou a mover o corpo para se levantar da posição que estava. 

    Não houve tempo para mais nada, um segundo golpe cortou o ambiente como se rachasse a própria realidade em dois. Jiten caiu de bunda no chão, pálpebras abertas e as pupilas trêmulas diante da visão de sua mãe caindo sem vida, ainda agarrada com sua criança de colo.

    Toda a força de Mitsuki havia se desfeito, nas mãos daqueles monstros, o antes severo semblante que ela ostentava tornara-se em um sereno vazio. Ela despencou no piso de tábuas olhando para o alto, sem mais nada enxergar. 

    Então, o abismo escarlate dos olhos do mascarado se voltou para Jiten. Era como se tivesse adivinhado ou farejado sua presença ali. A paralisia do corpo de Jiten foi quebrada em algum tipo de impulso inexplicável.

    Por um momento pensou que se ergueria para enfrentar o monstro, mas seu corpo o propulsionou em direção à janela. Jiten agarrou o umbral e se projetou para cima com tanta força que seus músculos quase se rasgaram. Ele ouviu tábuas sendo destroçadas atrás dele, mas não ousou olhar para trás. 

    Correu. Os pés chafurdando em lama, água e sangue. O mundo envolto em fuligem e gritos de vítimas. Madeira, aço, fogo e tecidos rasgados. Em algum momento sua mente passou novamente por seu pai, procurando-o entre as árvores.

    Depois, voltou para a mãe e o irmão, buscando seus rostos entre os refugiados. Era como sonhar um sonho de memórias. 

    Assim, correu até esquecer e continuou correndo, até acordar. 

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