Capítulo 23 — Âmbar
Ficou um tempo entre o estado de sonhar e estar acordado. Tinha que escolher um dos lados.
Os vagalumes dançavam em uma procissão rítmica. A trilha de luz seguia por entre as árvores, iluminando um caminho familiar. O ar era denso ali, como se estivesse dentro de uma névoa. Estava difícil enxergar, mas era possível sentir.
Sentia o formigamento em seu peito. Uma corrente invisível amarrada em seu plexo solar o endireitou e puxou em direção ao espírito primordial que habitava naquela floresta.
Era o Cedro Celeste.
Jiten se arrastou pela terra, o braço esquerdo estava quebrado, era difícil respirar porque imaginava que um dos lados de seu corpo doía além do que deveria ser normal para apenas um hematoma. Sua perna esquerda agora mal queria se mover, dormente pelo impacto que ele sofreu ao esbarrar na pilastra. A dor subia pela coxa lentamente, mas ela vinha.
Olhou para trás e não conseguiu enxergar a criatura que o perseguia. Não podia mais vê-la além da cortina da noite, mesmo que a lua brilhasse no alto. Estava salvo? Ou seria parte do jogo?
Fez o que já sabia fazer. Como não podia voltar, continuou em frente, seguindo os vagalumes como uma vez o fez.
O caminho parecia não ter fim. O que outrora pareceu tanto um sonho, agora, preenchido pelas dores de seu corpo agora parecia um momento profundamente real. Havia uma determinação dentro dele que apenas agora realmente encontrava. Queria viver. Tanto mais do que qualquer outra coisa.
Pareceu que uma hora ou mais se passou até que o pudesse ver. O Cedro Celeste, erguido no meio de uma clareira, tão grande como sempre foi, cercado pelas luzes e as fagulhas ciano que choviam embrenhadas nas folhas, vazavam pela casca da árvore e iluminavam o ambiente uniformemente.
Não viu, no entanto, o urso. A grande criatura que defendia e falava pelo cedro. No lugar da pedra onde no passado aquela besta estava, agora havia uma jovem sentada, distraída com as pequenas criaturas de fogo que a cercavam.
Jiten não compreendia de fato o que via, mas se arrastou até o Cedro. A garota o ignorou até que ele estivesse perto o suficiente para vislumbrá-la de fato.
— Você… — Sussurrou, estendendo a mão direita para ela. Notou que havia sangue escuro no dorso da mão.
Finalmente, os olhos dela o encontraram. Se fingia não vê-lo, ela desfez o teatro com um sorriso largo. Se assemelhava a garota com a idade de Jiten, mas era com certeza mais velha do que aquilo. Ela era o Cedro, por algum motivo, o rapaz não teve dúvida ao colocar seus olhos nela.
Os cabelos eram dourados, encaracolados e bagunçados, volumosos como era a lã de ovelha no fim do inverno. O rosto era dócil, seus olhos eram âmbar como favos de mel. Tinha a pele cor de oliva, como era a do povo antigo, como se muito tempo tivesse passado sob o sol. O sorriso era o brilho da face, grande e expressivo, como o de uma garota travessa.
Sua nudez era coberta por um tecido fino de seda, que não parecia ter passado jamais por um tear, mas sido criado daquela forma por um milhar de dedicadas aranhas. Ela tinha um corpo forte, mas era tão delicada quando se movia que se podia dizer que era frágil.
— Ainda o chamam Jiten? — Ela indagou.
O rapaz não soube o que responder. Apenas assentiu com a cabeça, deslumbrado e espantado, tinha medo de tentar racionalizar aquilo. Não fez a pergunta óbvia. Não perguntou se aquilo tudo era um sonho, porque tinha medo que ao questionar ele se desfizesse.
— É um prazer revê-lo. Achei que seria melhor me vestir assim para te encontrar, para você não correr como da última vez.
Jiten não se lembrava do que aconteceu. Naquele sonho estranho com a árvore ancestral, a grande criatura semelhante ao urso fez um clamor agonizante e ele apenas se esqueceu de quase tudo que veio depois. Não passavam mais de lampejos. Mesmo que tentasse com força se lembrar.
— Como? — Jiten perguntou, fazendo força para se erguer sobre o braço direito e tentar sentar sobre a relva.
— Você entrou no meu bosque. Não queria me ver?
— Estavam me perseguindo.
— Ah, aquilo. Eu o vi. Ele foi embora quando viu onde você estava. Não são todos que me desafiam dessa forma, embora o número tenha aumentado nos últimos tempos. Está um pouco cedo, isso era para acontecer depois. Você sabe o porquê de estarem aqui?
Jiten se colocou sentado, balançando a cabeça em negativa. Sentia a dor ainda irradiar pelo corpo, mas na presença do Cedro ela parecia ter sido aliviada. A figura de uma garota, a voz humanizada, o ambiente calmo e iluminado apesar da noite, tudo isso parecia apaziguar algo dentro dele. Sentia-se confortável ali.
— O que era aquilo? — O rapaz indagou, respirando pesadamente. Seu corpo começava a ser tomado de alguma espécie de torpor. Nunca tinha experimentado aquilo. Era exaustão? Ou perdeu sangue demais?
— É engraçado te ver assim. Não sabe nada mesmo. — A garota soltou um risinho. — Olha, não sei como os chamam nessa era. Na última vez que os vi, chamavam-os de Arukage.
Jiten balançou a cabeça negativamente. Naquele momento sua mente não conseguia trazer à tona quaisquer lembranças sobre alguma lenda em que aquele nome fosse citado. Já havia muito tempo desde que passara a não prestar atenção nas histórias ou a olhá-las com ceticismo o suficiente para sua mente não se apegar demais.
— E você, o que é? — Os olhos de Jiten se ergueram para encontrar os da garota.
— Nessa era, chamam-nos de Reikakushi.
Jiten assentiu. Sentia o corpo pesado e era difícil manter seu equilíbrio. Sua consciência não parecia clara e quase não podia discernir o ponto onde aquilo não se misturava com sua própria imaginação. Sabia, no entanto, que a dor era real.
— Você não vai aguentar muito. — A garota saltou da pedra em que estava sentada, andou graciosamente ao redor de Jiten. O rapaz sentia em sua pele a inspeção. — Não vai morrer, mas tenho quase certeza que não chegará ao fim. Não sem ele.
A garota se abaixou na frente de Jiten, agachada, deixando o rosto dos dois na mesma altura. Jiten conseguia ver que os olhos dela não eram verdadeiros. Não eram olhos de garota, nem de mulher. Eram mesmo gemas polidas e brilhantes. Podia se ver refletida nelas, mas sabia que não era por elas que a garota o observava.
— Pense em mim, garoto dos olhos de cristal, até que a mim possa voltar. Toda a verdade que vale a pena se guarda nas vísceras. Por isso os homens se cortam nos campos de batalha e as mulheres dão à luz. — A garota falou e passou a mão pela bochecha de Jiten. Ele podia sentir, o toque dela não era quente.
— Sinto dor — murmurou e seus olhos se fecharam.
— Não se apegue demais a dor. Ela está apenas começando.
— Minha mãe… Meu irmão… — O garoto desorientado tentou esticar a mão. Sentiu na ponta dos dedos o toque de casca de árvore. Ele sentia o corpo pesado. Era o Cedro que fazia aquilo com ele? Por que o chão parecia estar desabando?
— Pobrezinho. Não se preocupe. Já vai acabar e será muito bom ver tudo acontecer. — A voz dela foi ficando cada vez mais distante. — Afinal, você é o último.
O chão desapareceu e então nada mais amparava o corpo.
Caiu de vez para o outro lado.
E sonhou.