Sua companhia era o crepitar das chamas. 

    Estava ainda muito debilitado para conseguir ajudar no trabalho do campo e continuar perseguindo Wulan com suas perguntas seria inadequado. Comeu um pouco mais de carne seca e permaneceu com uma caneca de água diante da lareira. 

    As pedras enegrecidas no fundo, atrás das chamas, cheias de fuligem, pareciam seduzi-lo tanto quanto a própria chama. O carvão que se desfazia em poeira cinzenta, a brasa que alimentava um brilho vermelho como sangue. Tudo era tão sedutor quanto o próprio fogo. 

    Dentro de sua própria mente, Jiten era inundado por pensamentos que tocavam hora a culpa, outra hora o medo. Uma sensação quase paranoica se apoderara dele, de forma que seus olhos abertos refletiam o fogo no campo azul de sua íris, como um sinal da própria destruição dentro dele. 

    A lembrança de como sempre corria. Como tudo que deixava para trás era desfeito. Tudo aquilo fez cair sobre seu rosto uma sombra tão escura como as pedras escurecidas da fuligem. 

    Imerso em sua angústia, não percebeu quando Bjarka e Khanh chegaram a cabana. Devia estar perto do fim da tarde, talvez tivesse dormido enquanto esperava, seu corpo ainda doía bastante, quase como se toda a dor que deveria sentir ao longo de meses se condensasse em um tempo muito menor. 

    Ouviu chamarem seu nome e então olhou para trás. 

    — O que ela te disse? — Bjarka questionou, olhando-o de lado, alternando entre o rapaz e sua filha. 

    — Só falei que ele não ia ficar aqui. — Wulan falou, ela tinha um pergaminho nas mãos, não pareceu querer olhar diretamente para a mãe, mantendo o queixo um pouco levantado. 

    Bjarka ficou em silêncio por um momento. 

    — Você falou que ele não pode ficar aqui — afirmou a mulher e deixou ao lado um manto trançado com folhas que ela havia usado em sua expedição pela floresta. Khanh vestia o mesmo.  

    — Encontramos grupos de patrulha na floresta. O mais próximo há três quilômetros do limite. Sanghun deve estar te procurando. — Khanh se dirigiu a Jiten e se aproximou da lareira ao lado dele. 

    Não era difícil entender porque ele era chamado de o Homem Verde. Ainda com seu traje de folhas, ele se assemelhava a uma grande criatura da floresta. No meio da floresta, provavelmente, deveria permanecer indetectável ou ser confundido com algum predador de grande porte. 

    Eles haviam identificado as patrulhas, mas era certeza que não foram identificados. 

    — Antes de vir para cá, encontrei Chen. Ele me disse que Sanghun está procurando por batedores e que atribui o ataque aos pastores aos seus vizinhos do norte. — Jiten explicou e voltou os olhos novamente para o fogo.

    Os ataques, na verdade, não aconteceram por inimigos humanos e nem pela vontade deles. Jiten estremeceu diante do pensamento de que alguma força inexplicável o perseguia e a culpa o deixava ainda mais cabisbaixo. 

    — Uma explicação conveniente para comprar briga com os homens do norte. — Khanh afirmou e pareceu reflexivo. 

    — É para lá que tenho que ir, de qualquer maneira. — O rapaz deu um gole na água. Queria encontrar um jeito de fazer os dois mais velhos falarem mais sobre seu destino. 

    Nenhum dos dois respondeu. Havia alguma energia estranha no ar. 

    — As defesas estão fortes ainda. Verificamos os limites. Aquilo que te atacou não conseguirá chegar até aqui. Esperemos que os soldados de Sanghun também não, pelo menos por essa noite. Então aproveite para descansar — a mulher falou e fez menção de se ocupar com alguma coisa. Aquilo serviu como algum código, porque Khanh se afastou da lareira. 

    Queriam evitar o assunto. 

    — Quem está vindo do norte? — Jiten questionou. 

    Bjarka suspirou e Wulan deu de ombros ao ser fulminada pelo olhar da mãe. 

    — Não sabemos. Renji nos avisou que mandaria alguém.  

    — E por que o norte? 

    Bjarka trocou olhares com seu marido. A mulher se sentou sobre um banco. 

    — Renji te protegeu demais. Ele tentou te ensinar o que pôde, mas em algum momento deve ter desistido de dizer o que você tinha que fazer com o que ele te ensinou. — A mulher ajeitou os cabelos, fazendo uma pausa, talvez procurando as palavras. — Ele não fez o certo. Você deveria ter sido levado para o norte. Treinado como devido. Agora, é tarde, mas ele deve acreditar que ainda há tempo. 

    Jiten pousou a caneca com água sobre uma mesinha ao lado de onde estava sentado. O calor da fogueira ou alguma outra coisa o esquentava além do que o normal. Sentia a pele do pescoço mais quente em um nervosismo incômodo. Quando pôs a mão no peito para ajeitar as vestes, sentiu algo pendurado no pescoço. Era esférico, mas não se ateve a isso. 

    Sua mente agora passava pelas memórias que tinha com Renji e o treinamento que recebeu. Ele sempre havia mantido seu disfarce como pastor de ovelhas, mas sempre utilizava a espada em seu tempo livre. Era mais forte e habilidoso que qualquer outro garoto de seu vilarejo, mas mesmo assim, os dois adultos ali enxergavam aquela situação com algum desânimo. 

    Não podia julgar, afinal, seu embate com o monstro na floresta lhe demonstrou que não estava mesmo pronto. Sobreviveu por sorte, isso era um fato. 

    — E o que eu deveria esperar? Mais monstros como aquele me caçando até que eu encontre o unmeiko? 

    — Aquilo… aquilo era inesperado, na verdade. — Bjarka pareceu estremecer com o mero pensamento daquela criatura vagando pela floresta. — Eu não entendo tão bem sobre os costumes dos mugenjin, esperava que quem quer que esteja vindo do norte te explicasse melhor. Se a versão que eu conheço está correta, você terá que ir até a Cordilheira Infinda e então, tudo se torna algo mais associado a lendas. Falam que é necessário conhecer o futuro com uma profecia, então vai saber onde a criança surgirá e então poderá encontrá-la. 

    Jiten se recordou de algo na conversa com o viajante que levou a espada até sua casa quando tinha apenas seis anos. Podia se lembrar do homem atravessando o lamaçal, das coisas que disse a sua mãe sobre o dever. Aquele parecia ser um fardo familiar.

    Entendia que recebeu o fardo como herança, porque recebeu também os olhos azuis. 

    — Mas é mais do que achar. Você precisa proteger a criança até ela ter idade e muitas pessoas podem querer ter influência sobre ele para controlar em que direção o destino correrá. — A mulher continuou, mas era uma das poucas vezes que Jiten a via falando de forma tão vaga. Era fato que ela não se preocupou em aprender sobre a lenda. 

    Na verdade, Bjarka parecia nervosa de sequer citar aquela história. O desconforto estava patente em seus músculos tensos e a expressão rígida na face. 

    Jiten partilhava daquele nervosismo. A história tinha tantos elementos lendários que parecia algo que ele não deveria seguir à risca. Mesmo assim, nos últimos dias enfrentou coisas saídas diretamente de lendas. Não podia subestimar o significado daquelas coisas, principalmente, porque aqueles mais velhos ao seu redor não a subestimavam. 

    Os mais velhos contam histórias e lendas para crianças para educá-las. Para ensinar sobre coisas que não estão ditas explicitamente nas lendas. Ou seja, muitos dos mais velhos transmite a tradição por trás de um código a ser decifrado pela vivência. Naquele caso, no entanto, contavam histórias lendárias como quem fala sobre um desfiladeiro perigoso perto de uma estrada. 

    O risco não é apenas assumido. É real. Para muitos, fatal. 

    — Não sei se posso fazer isso. — falou em um suspiro o garoto. Todo aquele peso caía sobre seus ombros de uma única vez.

    Diante de seus olhos, as memórias de sua corrida em direção à floresta lampejavam. Como relâmpagos em uma tempestade, a cabeça turbulenta insistia em rever todas as vezes que fugiu e deixou para trás pessoas mortas. 

    — Isso não importa mais. 

    — Eu posso ainda treinar, posso aprender. 

    — Eu sei. A viagem precisa ser feita durante o inverno… e mais, a tradição nos diz que última lua desse inverno será um eclipse. Um eclipse é sempre um sinal. Está conectado a esta história mesmo antes da chegada do seu povo a essa terra, quando ainda esperávamos o retorno de nosso Primeiro Rei.

    Bjarka suspirou. O rapaz notou como os olhos dela o evitavam e sua última frase pareceu carregada. Era alguma dor ancestral da qual aquela mulher se compadecia. 

    — Me desculpe pelas perguntas. Não quero abusar da hospitalidade que me ofereceram. — Jiten se viu falando para a mulher, quase por reflexo, uma marca de uma série de culpas que carregava. Ele havia arrastado para dentro da casa dela um problema que não pertencia a ela. Havia patrulhas de soldados hostis à porta dela e uma criatura maligna vagando pela floresta da qual ela retirava suas ervas e seu sustento. 

    — Não. Não tem necessidade disso. Você sempre foi muito querido por nós, menino. Estou feliz de poder te ajudar — a mulher respondeu e nos olhos dela, Jiten conseguia ver um brilho verdadeiro de empatia. 

    — Há uma coisa. Uma coisa que queremos pedir. Mesmo que ainda seja cedo. Mesmo que você não esteja pronto. Não como retribuição, mas como garantia de quem você é — Khanh falou em uma voz mais alta. Seu tom era sério, suas palavras muito bem dosadas e seu olhar transmitia o aspecto de um carvalho antigo, resoluto e inabalado. — Se você chegar ao final dessa sua jornada. Se encontrar esta criança. Se encontrar este unmeiko. Jure, jure por tudo que sempre amou que ela não se voltará contra o nós. O povo antigo é agora muito menos do que já foi, o último de vocês abençoado pelo destino nos massacrou até quase nos lançar ao esquecimento e construiu seu império sobre os ossos de muitos homens mortos. Isso, Jiten, filho de Hinokuma Ryusuke e de Yanmoshen Mitsuki, te pedimos. Não permita que esta criança ceife tantas vidas quanto ela terá o poder de fazer e que não destrua esta nossa terra.

    Jiten se apoiou debilmente sobre a cadeira que estava. Sentia ainda as fortes dores que lhe afligiam o torso, a perna e o braço. Pôde sentir os músculos estremecerem, mas mesmo assim os forçou a ficar em pé. Tinha nos olhos a imagem de luas gêmeas. 

    Não estava pronto para fazer juramentos.

    Não estava pronto para abrir o caminho que precisaria para tornar verdade as suas palavras.

    Não estava pronto para o que lhe esperava.

    Mas isso não importava mais. O vento gelado do inverno se aproximava.

    — Eu juro. Pela minha mãe, pelo meu pai e pelo meu irmão. O passado não irá se repetir. — E sentiu um calafrio na espinha. 

    Khanh assentiu com a cabeça. 

    Não houve mais muita coisa a se dizer. 

    Jiten voltou a sentar. Sentiu naquele momento que nem as chamas o acompanhariam. Não importava quem estivesse ao seu redor. Ele estaria sozinho. 

    Nota