Uma chuva fina cobria a floresta. 

    O sol estava coberto, mas a camada de nuvens que o segurava era frágil. Olhar para aquele céu fazia doer os olhos tanto quanto olhar para o de um dia ensolarado. A floresta como um todo parecia mergulhada em uma névoa quase transparente, o tipo de situação que a tornava silenciosa e apenas alimentava seu mistério.

    Jiten apenas podia ver por detrás de uma janela. As dores haviam aumentado naquela fase de sua recuperação, mas dentro de si sabia estar perto de melhorar. Não era nada comparado aos resquícios que tivera da ginsênia vermelha. 

    Podia dizer com razão que havia passado por coisa pior. 

    Ainda precisava comer muito. Seu estômago se retorcia de fome, puxando o esôfago e a boca em uma sensação que se difundia para cima. Era difícil saciá-lo. 

    Khanh cuidava dos animais no fundo da casa. Wulan aproveitara o clima ruim para realizar a terceira ou quarta tentativa de preparar um unguento que não fizesse a pele arder quando administrado. Bjarka havia se encarregado da comida. Jiten se sentia grato por isso. 

    Ainda pensava sobre o juramento que fizera no dia anterior. Ainda pensava nos garotos que morreram enquanto ele corria. Ainda pensava em seu mestre lhe mandando embora, evitando lhe contar sobre o que teria que fazer. 

    Ainda tinha coisas para resolver dentro de si. 

    Por isso, achou que talvez falar alguma coisa fosse uma forma de afastar esses pensamentos. 

    — Em que isso ajuda no tratamento?— Jiten indagou para Bjarka, mostrando para ela um colar pendurado em seu pescoço. 

    Ele o havia encontrado de fato naquela manhã, quando foi se lavar. Era um colar com um cordão simples de cânhamo trançado e amarrado a um pingente que era uma esfera de âmbar puro. Era rústico e, ao mesmo tempo, muito belo, quase como se preparado nos mínimos detalhes para ser simples. 

    A mulher direcionou os olhos para ele, ela comprimia uma massa de pão com as mãos. Ela pareceu confusa por um instante e então deu de ombros. 

    — Estava com você quando Wulan te trouxe aqui. 

    Jiten olhou novamente para o colar, tentando entender de onde ele poderia ter vindo. Não se recordava de Renji ter lhe dado nada, mas podia ter perdido a memória em algum ponto do processo. Pensou em tirá-lo do pescoço, mas alguma coisa dentro de si achou melhor não. 

    Antes que pudesse pensar mais sobre aquilo ou que achasse mais perguntas para se distrair, Khanh escancarou a porta e fez uma lufada de ar gelado entrar na casa. 

    — Tem alguém vindo. — O homem disse com seriedade e por um momento, todos ficaram paralisados. 

    Khanh deixou um saco com alguns produtos animais dentro da casa e fechou a porta, ficando ele mesmo para o lado de fora. Bjarka abandonou a massa e se dirigiu para a janela. A luz de fora deixou bem iluminada a expressão de preocupação dela. Wulan franziu o cenho e procurou algo em meio a alguns tecidos. 

    Jiten engoliu o que estava mastigando, começando a se ajustar na cadeira diante da seriedade da situação. Pôs-se em alerta. A dor o impediria de lutar se fosse necessário? Seu coração queria acelerar, podia sentir a agonia se construindo no peito. 

    Wulan jogou para ele uma espada. Era a mesma com a qual lutara com a criatura. Ela ainda estava suja de terra, mas tinha as marcas dentadas e arranhões que seu pai havia deixado na arma, além da marca distinta do ferreiro na base da lâmina ainda afiada.

    A garota não disse nada e se direcionou para a janela. 

    Aquela espera trazia uma lembrança onírica para Jiten. Naquela época, Bjarka o tinha nos braços, mas ele não era maior do que meio homem. O sonho ou lembrança carregava tanto peso que mesmo misturados reciprocamente ainda podia conectá-los pela mesma sensação.

    A floresta apresentando o desconhecido. 

    Não conseguia enxergar a frente da casa de onde estava sentado. Levantou-se, a perna esquerda ainda mancando e o flanco apertando a dor como se alguém espetasse suas feridas com um vergalhão. Arrastou-se até a janela, mas antes que pudesse entender o que via, Bjarka saiu da casa em passo acelerado.

    A chuva a cobriu como orvalho e ela ficou ali, do lado do marido, observando um grupo de homens e mulheres se aproximando. 

    Não havia cavalos, pelo menos não ali com eles, muito menos bois e carroças. O grupo tinha alguma diferenciação do que vestiam, mas todos compartilhavam das mesmas cores. Dourado em meio ao negro. 

    Eram seis deles, duas mulheres e quatro homens. Um homem estava a frente, Jiten notou que ele tinha duas espadas presas na cintura, um sinal de nobreza. O cabelo era uma mistura de mechas ruivas e negras, como se lhe tivessem vertido sangue por sobre a cabeça. Seus passos eram confiantes, esmagando as folhas que povoavam o chão sem emitir um único som. Parcialmente protegido por uma armadura, os braços eram defendidos por aço forjado em placas, umas sobre as outras, presas a uma camada grossa de pele de urso. Seu peito estava descoberto e nele se liam os símbolos ancestrais do povo mugenjin, gravados na pele em escarificações preenchidas de um material negro e dourado. 

    Era o líder, mas parecia um dos mais jovens entre eles. 

    Na verdade, não parecia mais velho que Jiten. 

    — Bruxa! — Chamou o líder e abriu os braços. 

    Bjarka hesitou por um momento, mas logo correu ao encontro dele. Abraçou-o com força e dedicou a ele um olhar prolongado, brilhante de orgulho. Os outros companheiros dele mantiveram suas posições, observando a cena um tanto menos surpresos do que Jiten. 

    — Você cresceu tanto. — Bjarka disse e passou os dedos pelos cabelos ruivos e cheios do rapaz. 

    — O tempo passa mais rápido no norte, senhora. Estou feliz que posso vê-la mais uma vez. 

    — Senzai Toshiro. Então foi a você que Renji chamou. Eu deveria ter previsto. — Khanh exclamou, aproximando-se do rapaz e o cumprimentando com um sorriso no rosto. Em seus olhos havia um lampejo notável de respeito. — Você e seus companheiros são bem-vindos em nossa casa por quanto tempo quiserem. 

    O ruivo assentiu e com um sinal, indicou ao seus que o seguissem. Khanh o conduziu até a porta.

    — Lamento, velho Khanh, mas não poderei permanecer o quanto quero. Bem sabem que é o dever que me traz aqui — respondeu, antes da porta ser aberta. Foi Wulan quem a abriu, os olhos dela tinham uma surpresa parecida com a de Jiten, mas ela entendia muito melhor do que se tratava. — Wulan? — O convidado indagou com um sorriso surpreso que ia se formando no rosto lentamente. — Parece que o tempo não passa rápido apenas no norte. — Ele abriu a boca para mais um comentário, mas a fechou, desistindo dele e deixando apenas o sorriso no lugar. 

    Jiten observou a timidez de Wulan diante daquele convidado e se empertigou no lugar que estava. Ficou observando o rapaz e seus companheiros passarem pela porta. 

    As duas garotas foram as primeiras a entrar e não tinham nada de semelhante entre elas. Uma era loira, sua cabeça ornada com um diadema de aço do qual emergiam chifres. Ela tinha um olhar altivo e não disfarçou sua expressão de desprezo pelo que via dentro da cabana. Vestia uma armadura de couro e aço, coberto por pele de animais selvagens e unindo tudo, cordames grossos de coloração azul com contas de madeira enegrecida por um banho de betume. 

    A segunda garota tinha uma postura rígida, desconfiada, mas não parecia incomodada com o ambiente mais do que com o que havia além da cabana. Seus olhos ficavam mais tempo na floresta que os cercava do que dentro da cabana em si. Ela se vestia de forma mais rústica, um grande manto de peles cobrindo armadura de couro batido rebitado de aço. Seu cabelo era escuro, com tranças que pendiam para fora e se acomodavam em seu torso. As tranças eram decoradas com contas feitas de pequenas sementes de abeto. Os olhos eram verdes como as folhas de um pinheiro maduro e tinha uma cicatriz no rosto com um símbolo misterioso, tal qual seu líder.

    Jiten distraiu-se por um momento analisando a aparência diferente daquelas mulheres. Trazia-lhe alguma lembrança, pois apenas havia visto mulheres paramentadas para combate quando era criança. Em algum momento, imaginava, o lorde Sanghun devia ter abolido aquele costume, mas ele nunca havia se lembrado do decreto. Talvez, só não fosse tão comum ao sul do Arqueado. 

    — Então, é este. — A voz de Toshiro chamou Jiten de volta para ele. Ele estava a apenas alguns passos e o olhava com um sorriso distinto. Seus olhos o fitavam em um exame minucioso. 

    — Sou Jiten.

    O sorriso aumentou de tamanho. 

    — Imaginei que fosse. 

    A garota loira se aproximou, os passos dela fizeram um som metálico contra o chão, as pontas da bota eram revestidas por uma fina camada de metal. 

    — Parece um pastor de ovelhas, para mim. Até cheira igual a um.

    Jiten franziu o cenho.

    Toshiro riu e deu mais um passo para frente. Curvou-se um tanto na direção de Jiten.

    — Olhe para os olhos, Mayumi. Eles nunca mentem — disse fitando Jiten com confiança. 

    Jiten devolveu o olhar, mas era difícil. Sentia um incômodo profundo em enfrentá-lo, como se apenas não o devesse fazer. Sua resistência durou alguns momentos, mas ele abaixou os olhos antes que o confronto ficasse evidente, assim como a inevitável derrota que ocorreria. 

    Era estranho imaginar que aquelas pessoas estavam ali por causa dele. Não. Estavam ali pelos olhos dele. Pela lembrança que traziam de uma linhagem ancestral que ele detinha. O sangue que corria em suas veias lhe servia agora como uma corrente que o atrelava a um dever ao qual ele sabia não estar pronto para fazer.

    Aqueles estranhos estavam ali para o levar ao norte e então, uma vez que deixasse a cabana de Bjarka, nada mais seria como antes. Não estaria mais cercado de pessoas que conhecia. Haveria apenas aqueles estranhos e um caminho imprevisível pela frente. 

    Esses pensamentos o fizeram engolir em seco. Tinha medo. Não um medo digno. Era medo verdadeiro, como aquele que dá forma a covardia. 

    — Não parece tão forte também. — A garota loira, ao qual o rapaz chamara Mayumi, aproximou-se mais, ela o olhava como se quisesse ver melhor seus olhos. Jiten reagiu desviando o rosto em silêncio. — Você é algum idiota?

    — Deixe-o em paz. — Toshiro puxou a garota pelo ombro para afastá-la de Jiten. Isso rendeu uma troca de olhares hostis entre os dois. 

    — Eu garanto que ele é um Yanmoshen. A mãe e o irmão dele estão enterrados sob o Cedro Celeste. O espírito não teria garantido isso a quem não pertencesse a uma linhagem sagrada. — Bjarka interviu, seu tom um pouco mais alto. Mesmo que ela parecesse contente em ver Toshiro, não parecia dedicar a nenhum dos outros uma postura relaxada, toda sua movimentação e seu olhar estavam permeados de uma desconfiança sutil. 

    — Então, essa é a prova que temos? — Mayumi disse, com um sorriso de deboche. 

    — E a palavra de um Senzai. — O rapaz ruivo disse e dessa vez seu olhar para a garota foi firme o suficiente para ela desistir de seu questionamento. 

    O ambiente permaneceu em silêncio por um momento. Jiten não sabia exatamente que tipo de relações havia entre aquelas pessoas e sua inquietação diante daqueles estranhos o fazia querer permanecer em silêncio. 

    Estava diante de algo imprevisível e nos últimos dias sua cabeça havia tido coisas demais para processar. 

    — O que foi que aconteceu com o garoto? — Ouviu-se uma voz mais grave e profunda. Era um homem mais velho, era um ou dois palmos mais alto do que todos os outros. O homem tinha uma barba espessa e longa, cinzenta, com contas negras e douradas prendendo duas tranças feitas nela.

    — Foi atacado na floresta quando vinha para cá. — Khanh interviu rapidamente, antes que Jiten respondesse. — Draugos.

    O homem olhou para Jiten. Um de seus olhos estava tampado por uma bandana enrolada no rosto. Não era um ferimento recente, aparentemente, mas ele não parecia ter se preocupado em colocar nada sofisticado demais para tampar um dos olhos perdidos. Apesar do olhar dele ser apenas sério, Jiten se incomodou, como se um olho estivesse sob a bandana. 

    — É verdade isso, garoto? — Questionou o homem e trocou olhares com Toshiro. 

    Jiten assentiu com a cabeça. Admitir que uma criatura saída de histórias de terror lhe havia atacado no meio da noite não lhe deixava confortável. Podia imaginar o que estariam pensando dele. Entendeu que Khanh quis tomar a frente e falar para evitar uma mentira que ele diria. 

    — Já viu um, mestre? — Toshiro questionou ao homem mais alto. 

    As relações entre eles aos poucos ficavam mais claras para Jiten. 

    O homem mais alto também deveria ser o mais velho. Deveria também ser aquele que ensinara aos mais jovens. A indagação de Toshiro não foi desdenhosa ou debochada, apenas curiosa. 

    — Já vi muitas coisas. — A resposta do homem foi curta e simples, mas propositalmente vaga. 

    — Ele tem força dentro de si. Não são todos que podem dizer que lutaram com os mortos, não? — Toshiro deu um sorriso amistoso para Jiten. — Entende o porquê de eu estar aqui, Jiten?

    — Você veio me levar para o norte. 

    — É uma forma de ver isso. — Um olhar confiante veio na direção de Jiten. — No final das contas, Jiten, quem vai nos levar para o norte será você. 

    Nota