Capítulo 29 — Despedida
Sentia a ameaça e a vontade de fugir.
Jiten havia compreendido que aqueles homens e mulheres que vieram do norte para buscá-lo tinham nele uma expectativa que ele não sabia ser verdadeira. O corpo deles tinham os traços nas vestimentas e na pele que denotavam que estavam conectados com uma religião antiga ou alguma superstição de seu povo. Podia imaginar que apenas pelos olhos viam nele alguma notabilidade.
Não parecia ser o suficiente. A cor dos olhos não deveria ser o suficiente para fazer homens e mulheres viajarem distâncias tão grandes e levar um pastor de ovelhas. Ele se questionava que tipo de fé ou que tipo de crença qualquer que fosse os levava aquilo.
Perguntava a si se havia realmente necessidade de viajar. Jiten esperava ser guiado, mas eles queriam um guia. A contradição naquilo só se sustentava pelo fato de que Renji havia armado tudo.
O velho escreveu cartas e enviou para Bjarka, Khanh e para os Senzai. Um aprendiz deveria acreditar em seu mestre, mas agora não tinha como saber realmente qual era a vontade dele. Não podia perguntar de novo. Renji estava em Bushimusuko, sob o olhar do Lorde Sanghun e, portanto, inacessível.
Apesar das dúvidas, se preparou. Bjarka lhe cedeu algumas roupas de frio, até que pudesse chegar em seu destino poderia ocorrer alguma tempestade e não podia ficar ao relento. Sua escolta nortista não pareceu interessada em ajudá-lo no processo, mesmo que estivessem ali por ele. Deveriam acreditar que cada um faz o que acha certo e se prepara como quer se preparar. Não seriam confundidos como servos.
Precisavam partir antes da noite, então tudo foi acelerado o máximo possível.
Wulan reuniu para ele um punhado de suprimentos, o suficiente para o fim da viagem. Ela os enrolou em múltiplos mantos de tecido, entrelaçados com nós e cobertos por uma bolsa de couro rígido. A ideia é que ficasse mais difícil da água molhar os alimentos se chovessem.
— Tem certeza que quer ir? — Wulan questionou, mas não em um lugar em que os outros pudessem ouvir.
— Tenho certeza que não posso ficar.
E era verdade. Ficar ali era um perigo para a família deles. Era um perigo para ele. Mais do que isso, aquelas pessoas não poderiam ficar esperando até que ele se sentisse pronto. O inverno se aproximava e quando chegasse ele teria que estar pronto para enfrentar a montanha. Tantas coisas pareciam depender dele de uma hora para outra.
Não queria decepcionar ninguém.
— Você continua com dores. — Wulan pareceu entender o que ele queria dizer. Ela não o confrontou diretamente, mas ofereceu a ele argumentos, como um ato de gentileza.
— Terei que andar mais lentamente, mas logo melhora. Terei tempo para me recuperar depois que estiver longe do alcance de Sanghun — afirmou o rapaz com confiança, mas dentro de si havia dúvidas. A dor era intensa em algumas partes do corpo. Por vezes ela o fazia arfar e em outros momentos parecia drenar suas energias como se perfurasse com uma faca um saco de areia.
— Você é teimoso.
Ele sorriu, soltando o ar pela boca. Respirou um pouco do ar frio da floresta.
— É o que eu quero ser — disse em um tom de confissão.
Wulan olhou ao redor. Sua mãe e pai conversavam com os viajantes, provavelmente tentando descobrir mais do que estava acontecendo do outro lado da fronteira. Os viajantes que não estavam envolvidos na conversa, permaneciam envolvidos consigo mesmos, polindo suas armas, ajeitando as roupas ou fazendo uma refeição antes de partir.
— Você volta? — A pergunta dela soou sincera e gentil.
Jiten precisou de um momento para pensar. Não que hesitasse com a vontade de retornar, mas porque sua mente estava evitando sequer tocar nesse assunto. Parecia já problema demais pensar em como seria a ida, ainda mais como seria para retornar.
Olhou para ela, tentando entender que resposta ela gostaria. Decidiu que o que ela queria ouvir era melhor do que a verdade.
— Sim. Eu cresci por essas bandas. Não vou me esquecer. Quero poder rever Renji, Chen, as crianças do vilarejo e… — olhou para ela escolhendo bem a palavra que usaria — vocês.
Wulan abaixou os olhos por um momento e assentiu com a cabeça.
— Bom que não se esqueça — alertou a garota com um sorriso no rosto.
— Quem sabe, chego até o fim do inverno e poderemos ver a primavera. Lembra que…
— Está bem. Tudo bem. Vai ser legal — interrompeu-o com frases rápidas. A garota deu um sorriso difícil, cujo rosto não parecia obedecer. — Tome cuidado.
Jiten assentiu com a cabeça e a observou se afastar.
Prendeu a sacola de couro ao redor do corpo. Erguer os ombros era um pouco difícil, mas ele estava se esforçando. A espada pendia solta demais da cintura. Suas roupas eram as de um pastor de ovelha, remendadas as pressas com uma camada de linho e sobre as quais havia uma manta de pele de animais, tais qual as que usava Khanh. Cobriu a cabeça com uma touca simples de lã que tinha o cheiro de algo que foi guardado por muito tempo.
Sentia-se mais um pedinte do que um guerreiro. Naquele momento, era mesmo aquilo.
Quando anunciou estar pronto. Todos se organizaram rapidamente para partir. Havia uma ansiedade latente para pegar a estrada. Queriam acabar logo com aquilo. Retornar para sua fortaleza.
Jiten podia entender. Estavam cercados de soldados de Sanghun fazendo patrulhas por todos os lados. Ainda havia a ameaça de criaturas estranhas pela floresta, o que poderia deixar até um descrente nervoso. As florestas eram lugares perigosos o suficiente para motivar superstições e mesmo que apenas lendas, toda história tinha um fundo de verdade.
— Obrigado. — Jiten disse para Khanh e Bjarka antes de partir. Curvou-se para eles em sinal de respeito. Um ato que por si só era dolorido.
— Lembre-se do que nos jurou. Fará tudo valer a pena. — Bjarka mencionava seu juramento no dia anterior.
Jiten assentiu com a cabeça, antes de dar as costas para eles.
Sentiu que o olhavam se afastar e todas as sensações de insegurança pareciam se consolidar finalmente. Ele estava indo embora, deixando para trás de vez sua terra e todos que conhecera. Algo naquela resignação, no aceitar de seu destino, tornava a dor do corpo menor, mas fazia o coração mais pesado.
Mesmo que fosse a primeira vez que deixava aquelas terras. A sensação era familiar.
Estava fugindo. Mais uma vez.