Abriu os olhos em um campo verdejante.

    Uma brisa fresca varria a imensidão diante de Jiten. Sentado sobre uma pedra, observou o horizonte inspirando profundamente, como se fosse a primeira vez. Cercava-lhe o balido das ovelhas e a brancura da pelugem crescida delas, como se estivesse sobre as nuvens. 

    Em sua mão, um bastão de madeira que usava para guiar os animais pelo campo. Aos seus dezesseis anos, Jiten havia se tornado em um pastor de ovelhas até que bastante capaz. 

    Aprendia muitas coisas com elas, enquanto as guiava pelo pasto e o trabalho havia lhe tornado um tanto dócil. Da selvageria que tinha na infância, não lhe restou muito. O mundo era um lugar mais simples agora. 

    A Cordilheira Infinda surgia à distância. Muitos quilômetros a leste, a muralha que defendia o Império Mugen contra seus vizinhos mais agressivos podia ser vista já com os topos nevados. 

    Olhando-a dali, era fácil entender porque os mugenjin haviam escolhido aquele lugar para viver. Seria impossível atravessar aquela muralha com uma grande horda sem levar anos para isso. Naquela região, ainda, era benéfica a altitude maior para as ovelhas durante as épocas mais quentes e conforme o clima esfriava, era necessário direcioná-las para os campos mais baixos.

    Faltava pouco para o outono acabar e logo desceriam aos pastos do vale, onde a grama seria mais nutritiva para elas. Jiten assistia o passar do tempo, uma lua atrás da outra, contemplando o trato daquelas criaturas mansas, vivendo sob seu cuidado, ele tinha nisso algum nível de satisfação. 

    Haviam outros pastores como ele, que cuidavam das ovelhas do senhor daquelas terras e em troca disso, recebiam um pagamento ao final de cada semana. 

    Jiten deixou as ovelhas se espalharem por um amplo campo. Elas baliam e andavam de um ponto a outro, mas mesmo que as deixasse livres, elas não se afastaram demais do grupo. Uma ovelha, tal qual os homens, apenas fazem aquilo que sabem fazer. 

    Os olhos azuis como um céu claro do jovem pastor de ovelhas, enquanto migravam da placidez dos animais em direção ao horizonte, foram interceptados por uma visão assustadora. Por trás de formações rochosas, um predador havia surgido. 

    A mera forma de seu corpo fez com que Jiten ajustasse sua postura imediatamente. Segurou o bastão com força, posicionando-o diante do corpo.

    Era um urso, mas não era como os demais. O corpo coberto por pelos negros, a cabeça era um crânio branco com chifres de veado marcado com runas em argila vermelha. Havia couro rebitado com metais ao longo de seu corpo, protegendo torso, antebraços e canela. 

    Não tinha mais do que um metro e setenta, apesar de robusto. Escondida debaixo de todo esse aparato, estava uma garota.

    — Você é medroso, hein? — Wulan abriu um sorriso largo e caminhou calmamente. 

    As ovelhas abriam o caminho em corrida, assustadas e confusas.

    — Você as está estressando. — Jiten a saudou, correspondendo apenas com um meio sorriso. 

    — Eita! A carne delas fica ruim assim? Será que o açougueiro vai reclamar quando você as levar para serem massacradas? 

    Jiten bufou. 

    O jovem pastor era apegado às suas ovelhas. Não gostava do pensamento de que apenas as criava para que fossem devoradas. Preferia pensar que as protegia e em troca elas lhe forneciam comida, mas não parecia muito uma troca tão justa assim. A verdade, no fim, era apenas uma. 

    — Cada um faz sua parte. — Ele deu de ombros e cavou a terra endurecida para deixar seu cajado melhor apoiado. 

    — Até ser a sua pele em jogo, bobo. — A garota escalou a pedra e se sentou sobre ela. — Bela vista, hein. Não dá para enxergar aquele seu vilarejo nojento daqui. Ainda bem!

    — Não é tão ruim assim. — Jiten respondeu, mesmo que quando falava isso sentia uma pontada de culpa por mentir. 

    Alguma coisa no vilarejo lhe gerava um incômodo, mas ele não sabia o que era. Quanto mais velho ficava, pior se tornava aquele sentimento negativo. Era como se estivesse sendo constantemente observado. 

    Recentemente, ele começou a ter pesadelos frequentes. Quase sempre ele andava pelo vilarejo deserto, quase sempre havia monstros, mas sempre havia lua cheia. 

    — Você não sabe das coisas que eu sei. — Wulan falou subitamente mais baixo, um tom mais sombrio, como quem conta um segredo mórbido.

    — Sabe mais que eu? Eu moro lá. — Jiten chutou um pedregulho para longe. — Os senhores da guerra não são respeitados por sua bondade. Eles são rígidos, mas se a sabedoria do imperador lhes concedeu essa terra, deve haver um motivo.

    — Ah, não. Para com isso, Jiten. Eles são uns nojentos. — Revirou os olhos. — Está começando a pensar como uma dessas suas amiguinhas. — Então, ela riu. Jiten fechou a cara. — Ah, bem. Meu pai diz que desde que os Sanghun tomaram essa terra tudo está pior. Os espíritos se perturbam com a presença deles. O jeito sanguinário deles atrai tudo que tem de ruim. 

    O pai de Wulan era um sábio da floresta. Um povo antigo que habitava Oradobuk antes da chegada dos mugenjin. Seu povo tinha a pele de um tom mais escuro, cabelos sempre longos e trançados. 

    Eles se vestiam como feras, marcando o corpo com runas que faziam os espíritos os enxergarem como um deles e, portanto, os deixavam em paz.

    Foi sob os cuidados do pai de Wulan que Jiten permaneceu quando sua mãe e irmão foram assassinados. O massacre que encerrou sua família também foi o dia que os Shanghun tomaram o vilarejo, instalando muitos dos seus próprios soldados e povo na proteção da colina. 

    Mais tarde, com a vitória do Imperador Daiken, eles receberam aquela terra como espólio. 

    Jiten apenas permaneceu junto à família de Wulan por alguns meses. Com o fim da guerra, ele voltou para o vilarejo para esperar seu pai retornar, o que nunca aconteceu. 

    — Não sei nada de espíritos. Sei que não é honrado praguejar contra seu senhor. 

    A garota se ergueu, levantando um pouco o elmo de crânio de veado. As marcas nele remetiam a uma linguagem ancestral, anterior à própria escrita. O povo antigo aprendeu a desenhar o símbolo dos espíritos antes de desenhar as palavras. Os olhos dela eram heterocromáticos, um negro como ônix polido, outro como uma nefrita, sendo que ambos juntos emitiam uma aura de constante investigação.

    — Essa é mais uma daquelas besteiras de kumokai? — ela disse. Deixou transparecer um sorriso debochado.

    Jiten bufou mais uma vez. Wulan sempre desprezava aquele tipo de tradição. Ela não tinha noção de ordem, era uma cria da floresta e se encaixava muito mais em um estilo mais livre de vida. Tudo em Wulan refletia isso. O jeito selvagem de se vestir, de agir e de falar. 

    — Não é besteira. É como um guerreiro deve pensar. — Jiten disse e desviou o olhar do rosto dela para as montanhas distantes e seus picos nevados. — Você veio aqui só me encher o saco? 

    Ela riu. Alguma coisa nele a divertia.

    — Na verdade… — Ela começou, retornando a um tom mais sério — meu pai me mandou aqui. 

    — Eu disse que ia visitar vocês antes do inverno. Então…

    — Não é isso, bobo. — Wulan desceu da pedra, escorregando por ela e pousando no chão com uma certa graça. Ela deu passos largos até ele, Jiten pôde sentir um cheiro herbal das plantas que ela carregava em pequenas bolsas defronte ao torso. — Tem alguma coisa estranha acontecendo. 

    — Sempre tem, você mesmo diz que os espíritos sei lá o quê…

    — Não. Preste atenção. Alguma coisa está vindo para cá. Meu pai encontrou rastros estranhos na floresta. Clareiras abertas com árvores e plantas mortas. Um corredor inteiro da floresta completamente livre de pássaros. — ela sussurrou. 

    Jiten sentiu um arrepio ouvindo aquilo. Não entendia o porquê de Wulan sussurrar. Ela quase sempre não tinha pudor, mas agora parecia ter medo de ser ouvida. Ele havia convivido o suficiente com ela e a família dela para saber sobre esse tipo de entendimento da vida na floresta. 

    As coisas não morriam de repente. Não era o ciclo natural. Eles sabiam observar os animais certos para saber quando um ambiente estava mudando, quando alguém estava extraindo coisas demais, destruindo coisas demais. 

    — Alguns pastores disseram que viram ursos cercando os rebanhos. No outono eles caçam e comem desenfreadamente. — ele respondeu à garota. 

    Quis oferecer palavras tranquilizadoras. Talvez, tranquilizar a si. 

    Wulan deu um soco de leve no peito dele. 

    — Você não está ouvindo? Isso que eu te disse parece um urso? 

    — Não sei o que pode ser. Talvez, um grupo de bandoleiros ou algum batalhão atravessando a mata. Existem alguns boatos sobre conflitos na fronteira com o clã Kinyuki.

    Foi a vez de Wulan bufar. 

    — Só quero te dizer… tome cuidado. 

    Aquele tom pressagioso fez Jiten se inquietar, jogando o peso do corpo de uma perna a outra e encolher os ombros. 

    — Eu vou me cuidar.

    Jiten duvidava de si. Quando pensava naqueles presságios e eventos sinistros, seu corpo se arrepiava e uma parte de sua mente era transportada de volta para o passado. Lembrava-se de quando falhou com sua irmã e irmão. 

    A dor daqueles eventos passados ainda eram um buraco escavado em seu peito. 

    Ele desconfiava ser capaz de cuidar de qualquer coisa. Mesmo que as ovelhas, com seus balidos repetidos e olhares perdidos, não pudessem reconhecer. 

    Nota