Capítulo 30 — Rastreio
Caminhar era doloroso.
Jiten conseguia sentir os lugares de seu corpo que haviam sido mais afetados por sua luta com o errante. Podia sentir a perna esquerda, as laterais do corpo e até o braço, que não estava diretamente envolvido na ação do caminhar, latejando conforme avançava.
Era um desafio de resistência, ao qual ele havia se dedicado por inteiro, segurando qualquer impulso para reclamar ou realizar alguma exclamação de dor. Estava cercado por pessoas que não conhecia, seguindo para um destino desconhecido. Parecia prudente conter a dor, tentar se acostumar com aquilo.
O grupo não era grande e todos pareciam comprometidos com o silêncio. Nada além do murmúrio das folhas sendo pisoteadas e o farfalhar de arbustos se escutava na passagem deles. O estado de atenção era notável, mesmo que cada um não parecesse fazer nada de muito diferente.
O sentimento que levara Jiten até aquele lugar estava vestido de um manto de incerteza. Sentia-se em um constante estado de fuga. Nenhuma das decisões foram plenamente suas, nenhuma realmente racionalizada para obter algum resultado que ele desejasse. Era como ser uma peça em um tabuleiro, mas só agora ele começava a imaginar que o tabuleiro era muito maior do que ele pensava.
Apesar disso, o sentimento, mesmo que sob roupagem suspeita, era o de que tinha um dever, algo que o conectava com sua família perdida e a necessidade de permanecer vivo para cumpri-lo. Ainda não entendia completamente o que estava acontecendo, mas tinha consciência de que o que fazia era o certo.
Nenhuma daquelas pessoas parecia ser como ele. Todos estavam bem armados, vestidos à sua maneira com uma personalidade muito própria. Chamava sua atenção, o metal e o couro trabalhado nas roupas que eles usavam, parecendo terem vindo de algum artesão mais habilidoso. O caminhar, a postura rígida e os movimentos que faziam interagindo com a floresta. Tudo fazia Jiten imaginar a si cada vez mais como um mero pastor de ovelhas.
Era alguém do campo, não da guerra. Isso não seria o suficiente para dispensá-lo?
Toshiro fez um sinal para eles pararem. Trocou algumas palavras com uma das mulheres, a garota de cabelos escuros trançados e vestes rústicas. Ela assentiu com a cabeça, olhou ao redor e começou a retirar algo de sua bolsa.
Aquela garota era a que mais se aproximava dele. Não se vestia como uma camponesa, mas também não era exatamente uma guerreira. Suas vestes se aproximavam muito mais com as que Bjarka e Wulan usavam, o que a tornava mais fácil de entender. Era alguém da floresta, habituada a estar naquele ambiente que para a maioria era apenas uma transição entre um vilarejo ou outro.
— Amara é a melhor rastreadora que conheço. — Toshiro falou com os braços cruzados observando a garota.
Jiten demorou a entender que ele falava com ele. Como resposta, assentiu com a cabeça. Olhou ao redor, para ver se algum dos outros respondia algo, mas apenas um dos homens olhava vagamente para a dupla, sem muito interesse na conversa.
Amara examinava o chão com enorme atenção. Procurava ao redor, na casca das árvores e até mesmo no líquen aderido às pedras alguma coisa. A respiração dela estava forte. Uma inspiração. Uma expiração. Era possível perceber que ela sentia algo que os outros não poderiam.
— O que ela está fazendo? — questionou Jiten, aproveitando o tempo que paravam para se apoiar em uma das árvores. Quem sabe aquilo acalmasse as dores.
— Está viajando com o vento. Percebe a brisa?
Toshiro ergueu a mão, sentindo o vento bater na palma dela. Jiten podia sentir, de leve, um sopro que vinha pela direita em seu rosto. O vento era uma carícia tão suave que passaria despercebido pela maioria, especialmente quando protegidos por roupas pesadas ou armaduras de couro.
Assentiu mais uma vez.
— É um jeito antigo de se navegar pela floresta. Conseguem sentir onde o vento toca. Dizem ser algo parecido com velejar. Só que é velejar com o espírito. — Toshiro explicou e sorriu.
— Nunca vi isso.
Jiten sentia um estranhamento, conversando diretamente com Toshiro no meio dos outros, enquanto todos permaneciam em silêncio. Era como ser o centro das atenções. Admitir que não conhecia certas coisas que para os outros não parecia impressionante, era quase como atestar o quão inexperiente era.
— Não é tão comum. Ao menos não no sul. Seu vilarejo, Bushimusuko, ele opera quase sob a cultura sulista, mesmo que esteja tão ao norte. Quanto mais ao norte, mais comum vai ficando, mas se for demais ao norte, então o vento não é mais seu aliado.
— Há muitos viajantes por lá, mas usam o rio ou as estradas. Nenhum deles gosta de estar tão dentro da floresta — explicou Jiten, lembrando das histórias que contavam sobre a floresta na qual estavam.
O mito dos draugos era o menos comum. Falavam mais de outros espíritos que nasciam na copa das árvores ou sob as raízes, que não sabiam sair, encurralados pelas árvores. Alguns contavam que havia muitos criminosos infiltrados ali, clãs que foram desterrados e se recusaram a submissão. Muitos desses clãs, diziam, roubavam os viajantes e provocavam os espíritos que viviam ali para atormentar os arredores.
Em Bushimusuko, havia alguns que viviam da caça e a retirada da madeira era agressiva, já que Sanghun queria erguer uma verdadeira cidade ali nos próximos anos e construía seus barcos sem se preocupar se haveria madeira para o inverno depois.
— Bushimusuko é mesmo um novo reduto de viajantes, a maioria medroso demais para subir além no Arqueado. — Toshiro disse, refletindo por um momento, fitando o chão. — Você conheceu seu lorde, não é?
Jiten engoliu em seco. Assentiu.
— Como ele é?
— Alto — disse em uma mescla de convicção e receio. Sua passagem na fortaleza agora surgia em lampejos de sua memória. Uma memória amarga. — E forte.
Toshiro riu.
— Ele deve ter causado uma impressão em você, não? Renji nos contou que ele o estava caçando. Surpresa ter demorado tanto para captar a sua linhagem ali. Deve ter precisado do Dogma para confirmar.
Jiten olhou para o outro rapaz um tanto que espantado. A lembrança de Nobu e sua tortura o deixava nervoso. Mais do que isso. Perceber que Toshiro sabia muito sobre o que havia acontecido também o deixava nervoso. O quanto Renji havia contado para ele?
— Não se preocupe. Sanghun é mesmo uma figura intimidadora. Por muitos anos ele foi o mais sanguinário dos generais do imperador. Ganhou muitas terras pelo que fez.
Jiten ia levantar uma questão, mas Amara deu um baixo assobio, chamando a atenção de Toshiro. A garota já estava em pé, ajeitando as roupas e retirando a folhagem que grudara nos joelhos. Ela segurava na mão uma pedra marcada com algum símbolo desconhecido.
— Está difícil demais. Tem muitos. A maioria está para lá. Estão se aproximando rápido. — A garota apontou para o que deveria ser sudoeste.
— Vamos pegar um caminho mais longo. — Toshiro coçou a cabeça ruiva. — Estamos perto demais da trilha. Podem estar a cavalo.
— Não acha que é um bom rastreador? — Jiten questionou. Os outros o olharam com alguma estranheza.
— Você mesmo disse. Eles não gostam da floresta. Não devem ter muitos lá que sabem como viajar por dentro dela.
— E se tiver? — questionou de novo, olhou para atrás, sem saber o quão perto estavam os inimigos, podiam estar logo atrás dele.
— Então, não haverá jeito. Vamos seguir o caminho mais longo. Eliminamos uma hipótese. Vamos.
O grupo se colocou a andar. Jiten, voltou a sentir dores.