A floresta tinha um jeito tácito de prenunciar o pior. 

    Aquele lugar era como um grande santuário e quanto mais profundamente adentravam nele, mais poderoso ele parecia ficar. Mais a mente era envolta em um manto de tecido étereo costurado com galhos, troncos e arbustos. Os animais viviam naquele tecido e a energia deles apenas alimentava ainda mais a sensação.

    Jiten olhava ao redor, tentando perceber por entre os galhos ou no soprar discreto da brisa vespertina aquilo que a caçadora Amara havia percebido. Não tinha ideia como era possível obter aquele nível de percepção, mas o fato era que todos seguiam seu caminho levando em conta a verdade daquilo. 

    Toshiro era aquele que guiava o grupo com as palavras. Ele era jovem, mas parecia indômito. Jiten não conseguia entender como alguém tão jovem quanto ele podia ser tão diferente. Nenhum dos rapazes da vila realmente o havia superado. Alguns podiam ser um tanto mais fortes, outros possuírem um pouco mais de conhecimento, mas nenhum chegava tão longe como Toshiro. 

    Era como um abismo aberto entre eles. Jiten teve a impressão que esse abismo era do tamanho suficiente apenas para caber um rio. 

    O caminho pela floresta era longo, sendo que tiveram que andar por toda uma tarde até chegar em lugar nenhum. Tudo parecia igual. Até mesmo as pedras. Jiten não se lembrava de ter se afastado tanto de uma trilha. Bem, não desde que sua família morreu. 

    — Vamos acampar aqui. — Toshiro emitiu a ordem. 

    Uma espécie de sentimento de alívio surgiu onde Jiten nem sequer tinha notado a tensão. Todos os seus companheiros de viagem pareciam tranquilizados. Inspecionaram o solo, procurando por formigueiros ou por árvores infestadas para que não tivessem o desprazer de dormir perto de um desses locais. 

    — Sem fogueira. — Mais uma vez uma ordem partida de Toshiro. 

    Dessa vez foi o protesto silencioso que se tornou perceptível. Trocas de olhares desanimados, mas ninguém poderia dizer que estava errado. Mesmo durante o dia, no meio de tantas patrulhas, uma fogueira podia ser algo arriscado. 

    — Precisa de ajuda? — O líder indagou à Jiten. 

    Jiten percebeu que ele era o único que ficara parado enquanto todos os outros já se mobilizaram para montar o acampamento. Todos o olhavam. Sua reação foi arregalar os olhos e fazer um sinal negativo com a cabeça. 

    Um pouco atormentado pelas dores, organizou o lugar em que iria dormir. Nada mais do que um tecido de couro estendido no chão e uma manta de linho para lhe proteger do sereno. Havia trazido mais um manto menor para cobrir o pescoço e as orelhas. Tudo aquilo havia sido lhe dado por Khanh, mas estavam limpos, com a única coisa mais perceptível sendo as marcas de desgaste e o odor erval que parecia para sempre impregnado em tudo que Khanh possuía. 

    A noite se aproximou deles. Sorrateira. Se esgueirou do oeste para o leste. 

    Nenhum deles se dedicou a conversar. A refeição foi silenciosa, com exceção de algumas palavras trocadas entre Toshiro e seu mestre em segredo. O líder mal deu atenção ao resto das pessoas. Tudo que Jiten percebeu foi um conjunto de sussurros e expressões preocupadas. 

    Decidiu que era melhor não pensar demais. Sua mente estava muito incomodada de qualquer maneira. 

    Tinha aquele sentimento negativo. A sensação de que algo o observava. Achava que aquilo acabaria quando saísse do ambiente opressivo que era Bushimusuko. Quando saísse de baixo dos estandartes vermelhos e as estátuas de pedra lisa. Aquilo continuava. 

    Um mau pressentimento. 

    Antes que noite caísse completamente, Toshiro se aproximou de onde Jiten estava sentado. 

    — Folhas — disse e se abaixou ao lado de Jiten, que notou que ele carregava uma boa quantidade de folhas nas mãos. — Vamos, se deite. 

    Jiten obedeceu, sem entender muito bem. 

    — Não precisa se preocupar com a vigília. Você precisa se regenerar. Está ainda muito ferido. Vou reservar uma porção maior de desjejum para você. Preciso que esteja bem.

    — Está nos atrasando — disse Shio, quase que do outro lado do acampamento. 

    Jiten franziu o cenho. 

    Toshiro olhou para trás e repreendeu a garota com um olhar. 

    — Aproveite e durma. Se acordar, permaneça deitado. — O líder então despejou as folhas sobre o corpo de Jiten. Não era o suficiente para cobri-lo por completo, mas deveria se assemelhar mais com o chão quando visto de longe. Toshiro, então, retirou um cantil de seu cinto e o entregou a Jiten. — Beba. Não mais do que três goles. 

    Algo no jeito que ele falava transmitia segurança. Jiten obedeceu. Levou o cantil aos lábios e o líquido amargou em sua boca. Depois, sentiu queimar a garganta e os olhos. Era alcoólico, amargo e picante.   

    — É raiz de harpago. Vai te ajudar. 

    Jiten assentiu. Acabou por se recostar no chão e Toshiro terminou de lhe cobrir com as folhas. O antigo pastor de ovelhas ficou ali deitado, observando a floresta. Os troncos de árvores erguidos um após o outro, as copas unidas em uma abóboda natural. Podia enxergar longe, mas não o suficiente. 

    A noite ia tornando tudo mais escuro. Fora do ambiente de proteção que Bjarka havia criado, ele conseguiria sobreviver? Era difícil dizer. Seus olhos ficaram fitando as sombras. Imaginando quando uma delas se moveria, como o errante que o atacou na noite que fugiu de Bushimusuko. 

    Seu coração, no entanto, não conseguia acelerar muito. Aos poucos, ele foi sentindo o corpo pesado. A escuridão foi tão completa que não havia muito mais para procurar por entre as árvores. Só enxergava a lua, que já começava a mudar em direção a sua forma minguante. 

    O sono foi pesado. Os sonhos foram confusos. 

    Acordou de um sobressalto. Alguém o havia chutado. Ergueu os olhos para ver Shio se afastando. 

    Afastou as folhas de si e começou a guardar suas coisas. Novamente, ele era o último. Aquele que mais estava demorando para se organizar entre todos. Toshiro, contudo, não chamou sua atenção. 

    Podia dizer que a noite de descanso havia lhe feito bem. Quando voltaram a andar, não estava mais tão dolorido quanto antes. Sua fome, no entanto, estava tão grande que parecia que haviam lhe roubado o estômago e tudo que tinha dentro de si era um vazio. 

    Era difícil se concentrar tão faminto. Mesmo assim, entendeu que deveriam deixar o desjejum para mais tarde. Haviam passado tempo demais parados no acampamento. Aquilo deveria custar algum preço e não queriam pagar por ele. Não chegou a ver se Amara navegou com o vento assim como antes. Contudo, era certo que o ritmo deles parecia acelerado e preocupado. 

    A mente de Jiten ficava dispersa entre lembranças de sua vida antes da viagem, lembranças da cabana de Bjarka e no desejo constante por comida. Sua rotina nunca foi muito farta em alimento, no geral, mas nunca lhe havia faltado uma refeição que fosse. Andar por tanto tempo daquele jeito era uma forma quase que nova de tortura. 

    Talvez, por isso, não tenha notado quando o grupo estacou. Olho para o lado e viu que um dos homens que o acompanhava havia tropeçado em um cadáver. 

    Jiten deu três passos para trás. O defunto estava inchado e com os olhos diretamente nele. A experiência agourenta o deixou nervoso e ofegante. Olhou ao redor para entender o que acontecia. 

    Toshiro tocou os lábios com o dedo indicador. Silêncio.

    Agora, notava o quão silenciosa estava toda a floresta. Não haviam pássaros piando sobre as árvores. Nem animais em nenhum lugar que se pudesse ver. Era possível notar um pouco adiante uma estradinha de pedras que levava para algum lugar no oeste. 

    Para a surpresa do rapaz, o grupo começou a seguir naquela direção. Ele deu mais uma olhada para o cadáver. Agora que havia saído de perto dele, notou que este não olhava para absolutamente nada. Tinha os olhos tão vazios quanto o corpo estava de vida. Parecia vestido com alguma túnica branca e uma faixa amarela vibrante na cintura. Era um monge. Provavelmente, um neófito. 

    A estradinha de pedras que começava em um marco da floresta, um pilar de pedra, deveria ser um passeio idílico antes. Tudo que a cercava eram as árvores em uma parte mais fechada da floresta. A estradinha subia um longo barranco, não muito íngreme e os galhos das árvores haviam sido decorados com faixas e contas amarelas. Notavam-se também algumas lanternas penduradas nos galhos, mas a maioria estava quebrada ou já caída no chão. 

    Toda aquela disposição de elementos fazia Jiten se recordar no santuário na floresta onde encontrara Chen. Não era tão diferente assim em posição, mesmo que a arquitetura e os símbolos remetessem muito mais ao povo do norte do que aquele. Runas gravadas na pedra iam se multiplicando e subindo pela colina, podia-se ver pilastras decoradas com bonitas fitas de tecido e com bases de flores multicoloridas.  

    Jiten sentiu o estômago, mesmo vazio, embrulhar. 

    Corpos mutilados estavam espalhados pelo santuário. Não haviam apenas sido mortos, seus corpos foram rasgados e os restos arrastados pelo chão. O sangue estava cheio de poças de sangue ressecado e podre, com moscas voando para todo o lado. Apenas não haviam sentido o fedor porque o vento soprava a favor deles. 

    O templo era feito de uma mistura de madeira e pedra, como se escavado no interior da própria rocha e se completasse com uma estrutura feita pelas mãos humanas. Jiten teve dificuldade para se aproximar mais, mas todos os seus companheiros o fizeram e sacaram as espadas já em alerta. 

    Os dois homens, que Jiten ainda não conhecia o nome, adentraram o interior do templo e inspecionaram o lugar. Era possível notar que os pés deles estavam cheios de cinzas quando saíram de lá. O sinal deles negativo indicava tanto a ausência de inimigos, quanto de qualquer pessoa viva. 

    — Isso… isso foi Sanghun? — Jiten tomou coragem para perguntar. 

    Toshiro se voltou para ele com um olhar sério. 

    — Sim. Minha família não atacaria monges. 

    Jiten assentiu com a cabeça. Não havia sido o que queria dizer. Diante da ameaça daqueles seres estranhos que o atacaram e se foram as coisas mortas que estiveram ali, como estiveram no campo no dia da lua cheia. 

    — Aquele maldito. — Shio praguejou, como Jiten, ela não queria se aproximar muito mais de qualquer elemento daquela cena grotesca. 

    — Tanta brutalidade. — O mestre de Toshiro se inclinou e inspecionou um dos corpos que já tinha começado a se decompôr. — É um aviso. 

    — Acha que ele quer convencer os Hizashi a se juntar a ele, mestre? — indagou Toshiro, procurando ele mesmo algum sinal que demarcasse a presença de homens de Bushimusuko ali. 

    — Não. Ele acaba de destruir o templo deles. O aviso é de que ele vai exterminar Hizashi. 

    Toshiro suspirou. 

    O mestre indicou com a mão e mostrou algo nos ferimentos ao seu aluno. Toshiro pareceu mais alarmado do que já estava. Jiten não conseguia entender o que poderia ser mais grave ainda do que aquilo. Nem queria ter que entender. Quanto mais olhava, mais repulsivo toda a cena se tornava.

    — Jiten, escute! — Toshiro chamou a atenção dele. — Em Bushimusuko, qual era dos homens de Sanghun que era mais temido?

    Jiten olhou para baixo e então para os lados. Sua memória passou por muitas situações múltiplas de abuso que vira muitos dos tenentes de Sanghun realizarem. Humilhação e espancamentos eram comuns na vila, mas só um homem despertava um medo verdadeiro e sincero em todos.

    — Capitão Nazher. Era o pior de todos — respondeu e a menção daquele nome lhe causou um calafrio.

    — Reconhece o nome? — Toshiro indagou ao mestre e este lhe respondeu de imediato chacoalhando a cabeça em uma negativa. O líder pensou por um momento e ergueu os olhos de volta para o rapaz. — Jiten, a máscara dele. Qual animal que era? Os soldados de Sanghun usam máscaras, não é? Raposas, corvos, cães e outros. Esse capitão, qual animal era? 

    Jiten não precisou de muito tempo para responder. Todos sabiam.

    — Leão da montanha. 

    Toshiro engoliu em seco. Seus olhos escanearam a cena rapidamente e então ele sorriu. Não era um sorriso de felicidade, mas um sorriso de alguém que está perto de enfrentar uma situação de verdadeiro perigo. Como olhar um homem próximo de saltar de uma cachoeira, sabendo que as pedras não lhe matarão. 

    — É uma das bestas. 

    — O quê? — Jiten pareceu o único realmente confuso. Aprendera a odiar Nazher desde muitos anos antes por tudo que ele havia feito, mas aquelas pessoas pareciam conhecê-lo como um animal ou criatura feroz sem nunca tê-lo visto. Aquilo o deixou empertigado. As pessoas do vilarejo não falavam muito sobre seu senhor, com medo de represálias, mas Renji já havia lhe dito que Nazher era muito mais perigoso do que parecia. — Ele é um monstro?

    Toshiro piscou os olhos algumas vezes e começou a olhar nervosamente ao redor. 

    — É um tipo de monstro diferente das lendas. É um monstro humano. 

    — Não conhece sobre eles? Tem certeza? — O mestre de Toshiro interveio. — As Bestas de Sanghun… Ah, claro, no sul eles não devem contar a história desse jeito. — O homem alisou sua barba refletindo por um instante. — Sanghun foi um dos mais sanguinários generais do imperador na última grande guerra. Na época ele não era lorde de nada, apenas o chamavam Zhan Sanghun, caçula do então lorde Sanghun. Ele tinha um grupo de homens que o seguiam e faziam todo tipo de obscenidade no território de Oradobuk. O que ele fez com o clã Mizuhashi é algo que o sul quer fingir que nunca aconteceu. 

    — E o que foi? — Jiten indagou, um pouco espantado, mas não realmente surpreso com toda aquela escuridão circundando o clã de Sanghun. 

    — Estão aqui! — Amara gritou e retirou o arco das costas. 

    O estômago de Jiten deu uma cambalhota. Susto ou apenas o pressentimento ruim em seu peito se tornando mais e mais intenso. Ele sentiu um calafrio. 

    Olhou ao redor. Os olhos abertos por tanto tempo que já ardiam. Não conseguia ver nada. A floresta estava em silêncio. Era o jeito dela de prenunciar o pior. 

    Nota