Capítulo 33 — Mais uma vergonha
O mundo ficou fora de sintonia por um momento.
Uma lança bateu contra sua cabeça, um golpe lateral da lâmina, sem o corte, mas cujo impacto do metal foi tão intenso que fez Jiten cair com um dos joelhos no chão. Tudo tremeu diante de seus olhos e seu ouvido zuniu forte.
Tateou a relva, procurando se apoiar para continuar fugindo. Suas pernas não quiseram obedecer. Pareciam trêmulas e o corpo pesou como se ele estivesse com muito sono. Acabou por se arrastar mais alguns metros e se encostou em uma árvore. Ouvia risadas e via dois vultos vermelhos ao seu lado.
Tentou olhar para cima. A visão embaçada e a luz do sol não permitiu identificar seus rostos. Apertou os punhos, queria lutar ainda, se desvencilhar e fugir, mas não tinha mais sua espada. Onde ela havia ficado? Por quanto tempo havia corrido? Tinha realmente corrido ou só caminhou?
A mente no momento tinha lacunas. As coisas não se encaixavam.
Apertou os olhos com força e quando um dos vultos colocou a mão em sua roupa, ele o atingiu com o punho. Não era o suficiente para nocautear, mas espantou o homem que o largou. Em seguida, veio a resposta, um chute direto contra as costelas.
— Temos que levá-lo até o capitão — o soldado afirmou ao outro, apontando em alguma direção que Jiten não conseguia localizar. — Você consegue entender o que está acontecendo?
— Tem muitas árvores no caminho. Ei! — o soldado exclamou, enquanto Jiten tentava se arrastar para longe deles.
Renji não o havia ensinado sobre aquele tipo de situação. O Shanguo parecia uma técnica que exigia calmaria por dentro e por fora. Exigia a capacidade de manter a respiração coesa e a mente bem equilibrada. Simplesmente, não parecia possível se concentrar adequadamente com tantos ferimentos pelo corpo e em um estado tão abalado de espírito.
Mal sabia o que fazia, mas a confusão o havia tirado de uma posição estável. Renji já o havia alertado sobre isso. Em situações de conflito, algumas pessoas não sabem exatamente como agir. Quando não fogem, morrem. Uma tormenta de espadas e um banho de sangue precisa de resistência para se tolerar. A mente não é aquilo que se espera dela.
Incapaz de usar suas habilidades de combate, Jiten apenas se esforçou para chutar seus captores para longe. Cada tentativa de afastá-los era recebida com chutes e socos. Em certo ponto, tomou tantos golpes que sua carne pareceu se anestesiar. Mesmo assim, continuava a se agitar e a tentar se desvencilhar.
Enquanto tentavam arrastá-lo, Jiten sentiu o cordão em seu pescoço se quebrar. Pouco depois, viu a pedra de âmbar cair no chão. A gema preciosa parecia olhá-lo, como se assistisse sua luta, caída sobre as folhas e quase perdida entre os arbustos. Por um momento, sentiu que precisava pegá-la e em uma cotovelada que deu em um dos soldados, tentou esticar a mão até ela.
A mão ficou suspensa no ar e então, ele caiu no chão. Liberto.
Envolveu os dedos ao redor da pedra. Arrancando tufos de grama junto com a mão. Apertou-a com força e jogou suas costas cada vez mais para longe dos soldados.
Quando viu os homens, estavam ambos caídos no chão. Jiten viu uma ave alçar vôo e deixar um rastro brilhante para trás. Acompanhou a visão luminosa de energia retornar até uma garota com um diadema ornado de chifres. A ave se metamorfoseou de volta à aljava.
Era Shio avançando em passos rápidos em sua direção. Ela estava atenta às ameaças ao redor, mas não tinha um semblante muito amigável. Jiten não se lembrava quando é que ela havia parecido amigável alguma vez no último dia.
O jovem se sentia quebrado, surrado pelos golpes que recebeu, abaixou a cabeça por alguns momentos para tentar se desligar do mundo ao redor.
Foi surpreendido pelo seu cabelo sendo puxado, forçando sua cabeça a se levantar.
— Ei! Está acordado? — ela o chamou, os cabelos loiros próximos do rosto do rapaz e o cenho franzido contrastando com o rosto jovial, ela era intimidadora.
Jiten assentiu.
— Que merda você estava pensando, camponês estúpido! — ela gritou com ele, largando sua cabeça.
Jiten rastejou um pouco para trás. A mão apertou a pedra âmbar com força. Ele olhou ao redor, a floresta parecia erma e calma. Era estranho aquilo. Uma batalha havia acabado de acontecer, havia soldados mortos no chão e as árvores continuavam ali, com suas folhas sendo levadas serenamente pelo vento.
— Eles estavam tentando me levar. — Soou ainda mais estúpido e sabia disso.
— É claro. Você está aqui por um motivo. — Ela olhou para trás, se concentrando em silêncio por alguns momentos. A garota usava um arco feito de um material que Jiten desconhecia. Não era metálico, mas parecia uma madeira muito diferente. Havia algo como pedras azuis incrustradas em um padrão que remetia a círculos. O arco era longo e grande demais, não parecia ter sido desenhado e construído para mãos femininas. — Toshiro já deve ter encerrado a luta. Você é mesmo um estorvo. Tentou nos largar para trás.
— Eu…
— Cala sua boca. Eu não sou igual a ele. — A garota olhou fundo nos olhos do rapaz. Era possível sentir seu desprezo, algo que transcendia apenas sua posição e classe social. Era difícil discernir o que havia por detrás do rosto, além da hostilidade. — Consegue andar? Vem logo.
Jiten não argumentou. Simplesmente se arrastou pela terra e se levantou. Podia sentir que ficaria com mais alguns grandes hematomas pelo corpo, mas diante do desafio do desprezo daquela garota, sentia ainda menos vontade de pedir qualquer auxílio.
Em silêncio, ignorou a dor e a seguiu, mancando mesmo.
Estranhou pelo fato de ter demorado alguns minutos para chegar até os outros. Havia alguns corpos de soldados espalhados pelo caminho. Não mais do que uma dezena, mas nem todos haviam sido abatidos por flechas. Isso ele sabia, porque no caminho de volta, Shio passou por cada um que ela matou e retirou do corpo deles os projéteis que disparou.
Quando alcançaram o grupo, Jiten os viu organizando as coisas sentados sobre uma pedra. Todos estavam ali, alguns mais feridos, com cortes e arranhões, além de sujos de sangue e lama.
Toshiro tinha alguns rasgos na roupa e Amara fazia o curativo na região de suas costas. Ele não parecia especialmente feliz ou descontente quando viu Jiten se aproximar, parecia mais ocupado com sua própria dor física.
— O capitão fugiu. — anunciou Toshiro. Um sorriso desafiador em seu rosto. Parecia contente consigo mesmo. — Aquele era Nazher?
Jiten assentiu com a cabeça em resposta.
— Acredito que ele tenha só entendido quem você é e o garoto já não estava mais lá, para justificar a luta. — Foi o mestre que falou, o homem alto e corpulento alisou as contas presas à barba. Elas estavam sujas de sangue, assim como o espaço entre a unha e a carne dos dedos, como se ele tivesse lavado apenas superficialmente as mãos.
— Não tire meu mérito, mestre. Eu com certeza o assustei.
— Nem todos nós somos camponeses indefesos. — Shio falou com um tom de desprezo.
Jiten notou que Shio e Amara trocaram olhares hostis por um momento. A garota loira então prendeu o arco nas bolsa que carregava nas costas e deu de ombros. Havia nela uma aura de superioridade, um andar e olhar de quem estava acostumado a não ser contestada.
Os outros dois viajantes que ainda não haviam se apresentado ajudavam um ao outro. Um deles parecia mais gravemente ferido, seu dorso enrolado por uma faixa que o outro homem havia feito. Este homem mais ferido nada falava, apenas olhava para o chão e era muito parecido com o que cuidava dele. A diferença primordial era a arma. Não notara antes, mas o homem usava uma espécie de cajado, com adornos misteriosos na ponta. Parecia-se com uma lança bidentada, mas não havia metal na ponta, apenas uma espécie de material ósseo que foi esculpido e entrelaçado de forma misteriosa à madeira.
Não era possível que não tivesse visto aquele artefato antes. Tinha que ser algo novo, mas devia ter sido retirado de algum lugar que Jiten não poderia deduzir. Não parecia apropriado perguntar e se ninguém mais parecia se incomodar com aquilo, quem sabe ele não tivesse motivo para estranhar.
O homem que cuidava era mesmo muito parecido com o outro. Seu rosto era um pouco mais fino, era mais magro e os cabelos mais desgrenhados, mas deviam ter algum grau de parentesco. A espada dele estava presa a cintura, mas ela tinha todas as características de uma arma de um soldado comum.
— Você está ferido? — Toshiro indagou.
Jiten piscou os olhos e sua atenção se voltou para o líder. Só agora reparava que sua postura não estava ereta. Estava curvado em direção a perna esquerda que além de ferida de sua luta anterior, agora havia sido atingida novamente. Não discernia perfeitamente de onde vinha toda a dor. Podiam ser cortes, podia ser apenas a dor de ser surrado. Não havia nada em suas roupas que mostrasse algum sangramento.
— Um pouco — minimizou, franziu o cenho e ajustou sua postura. — Só tomei alguns golpes mais do que deveria.
— Eu o encontrei apanhando de dois soldados. — Shio interviu. Debochava dele, mesmo que seu rosto ficasse ainda sério.
Jiten dirigiu um olhar direto contra ela. Não sentia confiança, no entanto, para sustentar o olhar por muito tempo. Sentia-se péssimo por abandonar o grupo para trás e tentar se salvar. Além disso, era ainda mais humilhante que em sua fuga tivesse sido capturado e arrastado para longe, enquanto o grupo venceu o combate. Ele sentiu um sorriso maldoso vindo da garota loira.
— Sua espada. — Toshiro exclamou.
Quando Jiten voltou os olhos para ele, o viu retirar a arma de trás de um tronco caído e jogar para ele. Com dor, aparou a arma com as mãos, tentando não se ferir com a lâmina. Respirou aliviado quando seu punho se fechou ao redor do cabo, mas uma onda dolorosa ecoou por seu corpo. Um preço pequeno por uma vergonha a menos.
— E agora? — indagou Jiten, sua respiração um pouco descompassada.
— Mestre, o que acha? — Toshiro direcionou a pergunta ao homem mais velho.
— Nazher escapou, além de alguns de seus homens. Sabem que estamos na floresta e sabem que temos o garoto. Não dá para usar o caminho mais curto. — O semblante do homem era sério e seu único olho descoberto demonstrava uma intensidade no olhar. Devia estar repassando o pior pela mente.
— É. Foi o que pensei. Que pena. — o líder lamentou e seus olhos tinham também uma expressão mais séria. — Há uma opção.
— Não! — Shio exclamou. Ela caminhou meia dúzia de passos até estar cara a cara com Toshiro.
O rapaz respirou fundo e olhou para ela como se já soubesse tudo que ela tinha para dizer. Respirar fundo não pareceu uma ação fácil para ele. Amara colocou a mão sobre o ombro de Shio, tentando-a manter afastada do rapaz enquanto terminava os curativos. Mais uma vez as duas trocaram olhares hostis.
Jiten podia sentir a tensão. Tentou desviar o olhar para longe, mas estava interessado demais naquele conflito.
— Eu não vou — a garota loira anunciou.
— Eu não perguntei a você.
— Seu… — Shio falou entre os dentes, um sibilo feroz.
— Chega vocês dois. — Amara exclamou. — Toshiro, apenas dê a ordem. Todos vieram aqui te ajudar e isso inclui fazer coisas que achamos que estão abaixo de nós.
Toshiro emitiu um suspiro e afastou a mão de Amara. Endireitou as costas. Seu olhar incorporou uma densidade que Jiten não havia visto antes.
— Nós vamos para Soramaru
Jiten assentiu. Os outros também. Quando Toshiro falava, tudo parecia mais em sintonia.