Capítulo 35 — A Estalagem
A guerra tem suas marcas
Uma delas estava em Soramaru. Mesmo dez anos depois. Não era do tipo de marcas que uma pessoa pode definir de maneira específica. Ali havia uma dezena, talvez uma centena de marcas diferentes. Enquanto o tempo passa com crueldade para a maioria, muitas vezes, para alguns o tempo apenas para de passar.
A vila já havia sido um local importante da economia local. Era um ponto de parada importante para viajantes. Erguida próximo a uma nascente que corria por dentro da cidade até o Rio Arqueado, a maioria dos habitantes haviam se acostumado com água fresca e uma agricultura pungente. Ela era o centro de uma grande planície descampada, ainda próximo suficiente da floresta para garantir acesso fácil de madeira.
Quando Jiten a viu, sentiu um incômodo. Um sentimento na boca do estômago, como o de virar em um beco e dar de cara para uma parede ou o de estar longe demais de casa quando começa a escurecer. Algo estava errado, mas não era assustador, apenas não parecia que daria em algo bom.
A cidade era protegida por muros de pedra, mas não eram tão grandes quanto podia se ver em outras regiões. Os portões de madeira estavam abertos e os viajantes passaram por eles sem grandes problemas. Alguns guardas os observavam, mas não havia o mesmo controle exigido que em Bushimusuko. Ali, não pareciam mais querer fingir que podiam controlar quem entrava ou saía.
Os guardas pareciam homens comuns, como os membros de uma milícia camponesa, sem muito treinamento ou forma física que justificava sua posição. Alguns pareciam velhos demais, outros barrigudos demais e havia outros que simplesmente pareciam não estar prestando atenção em nada além do ambiente.
As pessoas na cidade não fizeram alarde com os viajantes. Na entrada havia um pecado mercado com alguns vegetais murchos sendo oferecidos, um funileiro e um carpinteiro vendendo produtos ou esperando por encomendas. A movimentação era pouca.
Jiten observou as ruas estreitas, marcadas por vincos, alguns pedaços de madeira, restos de construções como um todo se acumulavam em alguns cantos. Não devia haver força de trabalho disponível para fazer a remoção de tudo.
As casas tinham um aspecto deplorável, mas o rapaz não demorou para entender que aquilo se devia ao fato de terem sido apenas abandonadas. Enquanto a tendência da maioria das vilas próximas ao Arqueado era de crescer, aquela, simplesmente murchava.
O grupo foi até a estalagem que havia sido sugerida pelo velho na estrada. Poderia até ter soado como uma indicação ruim, mas a realidade é que o lugar de todo o resto da cidade parecia um dos mais aprazíveis.
O chão era de pedra, paredes e teto de madeira, com alguma capacidade de isolamento térmico, pois o lugar parecia bem aquecido, mesmo que a lareira ao centro parecesse já ter sido desligada há pouco mais de uma hora.
Entraram no salão, com suas mesinhas bem distribuídas ao redor. Poucas, provavelmente diminuídas em quantidade para facilitar a limpeza. Havia uma sensação se espalhando pelo lugar. O barulho do grupo entrando havia preenchido tudo por completo.
— Preferia que já estivessemos em casa. — Shio comentou, sem que ninguém lhe tivesse dirigido a palavra.
— Prefiro ficar viva — foi Amara quem rebateu.
Shio reagiu apenas olhando pela janela.
— Esse lugar está um lixo. Merecido.
Toshiro franziu o cenho. O rapaz colocou os braços sobre a mesa e Jiten percebeu que alguma coisa o deixava profundamente pensativo.
— Não consigo me sentir contente vendo o estado dessas pessoas. — Toshiro disse e seus olhos ficaram em Shio, mesmo que não houvesse uma expressão de reprovação no que dizia.
— Foi o caminho que escolheram para elas.
Jiten se questionou se essa última fala de Shio não podia ser aplicada aos habitantes de Bushimusuko. O vilarejo crescera, ao contrário de Soramaru, mas tudo foi feito sob a mão de ferro de um lorde sanguinário. A quantidade de vidas que haviam sido somadas à população de Bushimusuko foi acompanhada de uma quantidade absurda de vidas oferecidas em sacrifício diante de uma lei rígida.
O jovem pastor de ovelhas se perguntou se aquele vilarejo não havia sofrido do contrário.
— E que caminho é esse? — Jiten questionou.
Sentiu então queimar nele os olhares de todos os membros do grupo. Ele havia permanecido em silêncio por uma boa parte da viagem. Pensou ter falado algo errado, mas logo as atenções se voltaram novamente para Toshiro.
— O Lorde Soramaru abandonou o culto dos nossos ancestrais. Converteu-se à religião do sul.
— Alguns dizem que foi forçado. — O mestre falou, olhando de maneira introspectiva.
— Outros dizem que o fez para ganhar vantagem sobre os senhores do norte. É um bajulador. — Shio se pronunciou e o tom de desprezo dela se manifestou sem nenhuma restrição. — Todos aqui são um bando de cúmplices. Que morram de fome.
— Não é de espantar que estejam assim. Foram isolados pelos outros senhores e Sanghun o pressiona de maneira predatória. Não o permite comércio ao sul se não passar por Bushimusuko. — Toshiro falou e se recostou um pouco para trás. Jiten podia perceber que ele é quem detinha maior conhecimento sobre a situação política. Talvez, o mestre dele deveria tê-lo ensinado. Renji não havia lhe ensinado tanto sobre política. Não em aspectos tão práticos. — Talvez, abandonar as crenças antigas os tenham prejudicado. Contudo, Sanghun é o protetor do Templo Sankkeut e prospera mais do que muitos dos nossos. Dizer que isso é culpa da crença é um pouco demais, não acha, Jiten?
Olhou para Toshiro, podia ver uma sugestão de sorriso em seu rosto. Apenas assentiu.
— Não acho que é justo culpar a crença — respondeu um pouco tímido — mas há algo errado aqui.
— Não é justo ignorar a tradição. — Shio olhou-o com uma reprovação, projetou o corpo para frente e tinhas as mãos fechadas sobre a mesa. — Sanghun não era um dos nossos. Sempre foi nosso inimigo. Os Soramaru traíram os seus. Esse é o preço. Não tente eu fazer parecer irracional na frente do garoto.
Jiten se espantou com a última frase dela. Ele não era um garoto. Quase certeza que tinha a mesma idade deles. Pensou em abrir a boca para retrucar, ela estava tentando ofendê-lo. Toshiro apenas estendeu a mão e Jiten ficou quieto.
— Não seja rude — direcionou a fala a ela, olhou de esguelha para Jiten e voltou novamente para ela. — Não precisa fingir que seu ódio pelos Soramaru é pela tradição.
A tensão quase se solidificou entre eles. Até mesmo Jiten se viu sem respirar, contaminado pela forma como Shio olhou para Toshiro com uma raiva absoluta.
— Eu vou tomar um ar. — A garota se levantou e empurrou Amara no caminho para fora.
Toshiro a seguiu com os olhos e esperou que ela estivesse do lado de fora. Colocou o indicador sobre os lábios, com algum sinal para que Jiten permanecesse quieto. Um sinal que os outros também acataram.
Um minuto depois, alguém atravessou uma cortina atrás do balcão. Era uma mulher idosa, olhos esbranquiçados, quase cristalinos. Sua pele tinha um aspecto ressecado, os cabelos grisalhos organizados parcamente, um pouco desgrenhados junto a cabeça. Ela usava roupas de pele já bem antigas e se sustentava no andar com uma bengala que era feito de um material que Jiten imaginou ser uma espécie de osso.
A presença da idosa transformou o lugar de um ambiente aconchegante para um antro misterioso. Jiten não podia entender o que ela possuía, mas com certeza havia nela uma aura diferente.
— Olá. — A voz da mulher era rouca e um pouco esgarçada como um tecido velho que se usa além de seu limite. — Sou Yuwa… Minha neta está vindo… por favor, fiquem a vontade, crianças.
A idosa apenas tomou uma posição qualquer próxima do fogaréu. Mantinha a cabeça alta. Devia apenas enxergar na parte debaixo de sua visão. Os olhos estavam consumidos por uma película viscosa. Jiten já havia observado os sinais da idade consumirem Renji, mas aquela mulher parecia ter envelhecido bem mais do que ele. Era notável os vincos enrugados em sua pele e a forma como se mexia denotava uma energia muito baixa.
O silêncio permaneceu entre os membros do grupo. Eles não estavam exatamente tensos, mas a figura da idosa mudou o comportamento de todos eles. Jiten olhou melhor para ela, notou que ela carregava junto ao corpo um colar com três crânios de corvos fundidos em um único osso. O pássaro que originou aquele item devia ser algum tipo de aberração. Uma aberração em cem mil.
Uma outra mulher surgiu. Essa carregava uma criança pequena no colo. Era mais jovial, os cabelos encaracolados, uma pele notadamente mais escura, tal qual a oliva. Os olhos dela eram verdes, profundos, emoldurados por olheiras bastante carregadas. Jiten notou algo de semelhante na fisionomia dela e a de Bjarka. Não o tipo de semelhança de irmãs. Era semelhança de povo.
O povo antigo.
— Peço perdão pela demora. Meu menino não está bem de saúde. — A mulher ajeitou a criança sobre o balcão. Devia ser mesmo doloroso ter que cuidar de uma criança pequena em um cenário desesperador como o daquela cidade. Uma morte lenta a qual os pequenos nada podem fazer além de assistir. — Sou Erhi. Querem quartos? Temos vagas… quase todas na verdade. Posso servir alguma coisa para vocês agora?
— Chá. Nada alcoólico. — Toshiro se manifestou. — Queremos quartos sim. Pagaremos adiantado.
A mulher fez uma reverência com a cabeça.
— Acenderei o fogo para vocês. Fiquem à vontade.
Toshiro foi quem iniciou a conversa. Jiten permaneceu de canto. O resto do grupo falou sobre amenidades, algo sobre o clima, outros pontos mais vagos quanto à viagem. Nada parecia relacionado ao lugar onde estavam ou a missão que haviam ido cumprir. O mestre de Toshiro começou a contar alguma história sobre os tempos antigos. Eles pareciam tentar se distrair.
Jiten estava incomodado. A idosa ao pé do fogaréu parecia observá-lo. Ele percebia que ela era cega e não sabia como alguém podia enxergar o mundo através de olhos tão danificados, mas a calmaria silenciosa dela o deixava mais inquieto do que aliviado. Ele podia ver que ela respirava pesadamente.
Erhi retornou de trás das cortinas. Trouxe lenha, uma madeira escurecida, mas seca o suficiente para alimentar o fogo. Quando as chamas começaram a crepitar, o lugar foi tomado por uma luminosidade mais alaranjada e se encheu de um sentimento de vida. Era interessante notar como o fogo podia mudar tanto um ambiente.
— Erhi. — A voz de Toshiro foi alta o suficiente para interromper a história de seu mestre e para chamar a atenção da mulher que cutucava as chamas com um espeto metálico. — Sua mãe é uma curandeira, não é?
A mulher hesitou por alguns momentos.
— É minha bisavó.
A velha emitiu uma sequência de ruídos agudos. Jiten deduziu que aquilo era risada.
Toshiro respondeu com um sorriso.
— Ela ainda pratica a cura?
Erhi suspirou.
— Como entende disso? — Erhi perguntou. A ponta do espeto de metal deixada no braseiro ia se tornando vermelha.
— Quando era pequeno, fui curado por uma dessas senhoras. Estive muito doente e foi apenas o trabalho dela que me permitiu estar aqui. Reconheci o amuleto e a energia que me curou daquela vez.
— Não são todos os mugenjin que admitem terem sido curados por uma anciã do meu povo. — a mulher replicou, mas a guarda dela pareceu baixar um pouco. — O que você quer?
A idosa sorriu, dessa vez em silêncio. Jiten imaginou que algo a divertia naquela conversa.
— Meu amigo aqui foi envenenado. Está ferido e andando torto a maior parte do caminho. Não temos as ervas que ele precisa e falta um longo caminho para casa.
Jiten não conseguiu olhar para Toshiro, enquanto o rapaz comandava a situação. Ele havia escondido sua ferida a maior parte da viagem, sem que Amara pudesse fazer muita coisa por ela. O expurgo que Bjarka fez não foi completo e ele não entendia o porquê. Mesmo assim, cada dia que passavam na viagem a dor aumentava ao invés de diminuir. Deixava de ser uma dor aguda, mas ainda era uma dor constante e persistente.
Não imaginou que teriam que seguir tão longe. Sem poder comer livremente seu corpo também não se recuperava.
A resposta que a Erhi deu foi um olhar para sua bisavó. A velha permaneceu parada por alguns segundos, contemplando o fogo. Então, ela se levantou, apoiando-se sobre a bengala e começou a andar em direção às cortinas atrás do balcão.
— Deixe o menino vir, minha filha. — A idosa comandou.
A estalajadeira fez um gesto para Jiten segui-la. O jovem pastor de ovelhas olhou de volta ao grupo, procurando nos olhares deles algum tipo de conselho, mas nada havia.
— Não precisa ter medo, Jiten. Essas mulheres fazem isso desde séculos antes do primeiro mugenjin pisar aqui nesta terra. Ela vai apenas te oferecer um chá e alguns vapores. — Toshiro lhe fez um sinal positivo, mas em seus olhos havia alguma seriedade.
Jiten entendeu que ele na verdade estava preocupado. Aquele tempo que escondeu a dor de suas feridas. Cada vez mais encolhido em sua fraqueza, Toshiro o observava. Era óbvio que para cumprir a missão eles precisavam levá-lo vivo para o norte. Suas feridas podiam impossibilitá-lo de continuar. Era uma questão estratégica.
O rapaz aceitou. Seguiu a idosa. Já não tinha mais direito de recusar.
Olhou para trás mais uma vez antes de passar da cortina de contas. Aquele lugar estava marcado pela guerra, mas não era só o lugar.
A marca estava nele. Estava em todos.