Era como entrar em uma dimensão diferente.

    Jiten pôs os pés no interior da sala e se sentiu mudado. Algo dentro dele ressoava com aquele ambiente, enchia-o com a percepção de familiaridade misturada a surpresa de encontrar elementos tão incomuns que um único passo pareceu muito mais poderoso do que já imaginara. Seu coração bateu mais forte.

    Yuwa, a senhora curandeira, já estava lá dentro e o jeito que ela o olhava era apenas um dos elementos que geravam inquietude. Ali, a forma como ela se vestia era quase um complemento daquela sala pequena, como se a sala em si fosse uma parte estendida dela. Ela sorriu um sorriso vermelho e negro, quase sem dentes, mas com um grau de simpatia que não o tornava assustador.

    A sala estava cheia de ervas penduradas, cogumelos selados em potes, ossos de animais e esculturas feitas em madeira que remetiam a figuras humanóides incompreensíveis. Jiten já havia visto coisas semelhantes na cabana de Bjarka e Khanh. Mesmo sendo um pastor de ovelhas de uma vila comandada por um lorde do sul, não o assustava aquele costume antigo. Havia ainda uma diferença central, concentrada em uma escrita antiga que havia sido marcada com fogo nas paredes de madeira. Símbolos que ele jamais vira Bjarka manipular e que somente havia visto em templos destruídos.

    — Eu o esperei por muito tempo — a velha murmurou.

    Jiten imaginou que ela estivesse confusa, mas não quis contrariá-la. Sabia que os idosos tinham jeitos estranhos de se expressar, quanto mais velho, mais vagas e curiosamente mais sábias são suas palavras. 

    — Onde dói, criança? 

    Aquela pergunta pareceu mais direta, mesmo que ele tivesse a impressão que não fosse assim tão específica. Muitas coisas lhe doíam e agora desgarrado de sua casa, estava solitário.

    — Apenas quero ficar bom. Estou atrasando eles. Preciso ficar bom. — Palavras convictas, sabendo que a situação em que estava não era fácil. 

    Deixou a sobreveste de pele cair e ergueu a camisa de linho. Ao redor da ferida estava uma amálgama de cores distintas. A pele estava arroxeada e manchas escuras se espalhavam como se betume tivesse sido respingado sobre a pele. Em diversos pontos, veias estavam saltadas onde nem mesmo deveria haver vascularização. Era como uma raíz se expandindo dentro da terra. Os ferimentos não tinham cheiro, como uma enfermidade que se dá direto na alma.

    O outrora sorriso negro da velha converteu-se em uma linha dura e reta de seus lábios. Ela fez um gesto para que o rapaz se aproximasse e tocou seus ferimentos com a ponta dos dedos calosos. Uma análise silenciosa e séria.

    — Um único expurgo não seria suficiente. Apenas traz para a superfície — a velha explicou, como se já soubesse o que tinha acontecido com Jiten. 

    — O que é isso? 

    — Uma maldade que lhe fizeram

    Jiten se viu em uma posição estranha, nunca havia feito nada para merecer qualquer maldade que fosse. Nada além de aprontar com alguns dos rapazes nos campos e fugir de seu mestre quando era ainda criança. Todas as coisas pareciam banais demais, nenhuma era digna de fato desse tipo de lesão. Tudo era por causa de seu nome e do que disseram que seu nome podia fazer. Não parecia justo. Nada recebera daquilo além do abandono e da necessidade de fugir. A única reação que  coube a ele executar foi um suspiro longo e pesado. 

    — Eu tomo o que precisar. Temos que viajar ao norte e não quero atrasá-los.

    — O norte… — A mulher apenas repetiu.

    Yuwa não demonstrou muita reação. Sua mente parecia contemplar algum tipo de realidade própria. Talvez, ela tentasse depreender que tipo de maldade era aquela. Jiten quis perguntar o que se passava na mente dela, mas seu encontro com o errante na floresta seria a única resposta. Os ferimentos causados por ele, todos os ferimentos, pareciam muito mais difíceis de se curar do que os normais. Bjarka lhe havia dito que sua recuperação era mais rápida, mas algo naquela aura sinistra que enfrentara parecia lutar contra sua recuperação. Podia sentir isso drenando suas energias. Era como uma infecção estabelecida. Sem febre. Apenas dor e fraqueza.

    — Isso as ervas não ajudarão. Não julgo a mulher que tentou salvar antes. Já há muito tempo que o conhecimento se desfez. — Yuwa começou a falar como se contasse uma anedota ou causo muito antigo, não parecia falar sobre ele, naquele exato momento. Jiten olhou para sua ferida e começou a sentir seu coração acelerar um pouco. Aquilo era tão mais grave do que ele imaginava? — Não é algo simples, não. Tem maldade verdadeira. Como você sobreviveu a um deles? Um dos filhos dela? 

    — Filho de quem? — A pergunta saiu de sua boca de forma imediata. 

    — Aquele que te feriu. Como você sobreviveu? 

    — Fugi. Corri. Me joguei no Arqueado e escapei. 

    A idosa deu um meio sorriso. Jiten havia omitido uma boa quantidade de informações dela e ela parecia saber disso. Todos sempre pareciam saber mais sobre ele ou sobre aquele mundo. 

    — Você precisa viver. Sabe que precisa. 

    Jiten sentiu o ressoar daquelas palavras e não pôde contestá-las. 

    — Não posso continuar fugindo. 

    A idosa não respondeu, os olhos dela varreram a sala ao redor, mas ela mesma não parecia estar passando pelos elementos diante dela, mas sim ao redor de algum tipo diferente de visão. Jiten entendeu que ela repassava o passado, pensamentos antigos que deviam ter ficado perdidos em algum lugar de sua mente senil. 

    — Essa ferida vai continuar enfraquecendo você. O conhecimento para isso se perdeu, então mesmo alguém como eu não posso te ajudar. — A mulher absorvida em suas lembranças ergueu os olhos, procurando o rapaz em algum lugar de suas vistas. — Eu sei, no entanto, quem pode. Com isso, você fará o bem para outros… Um pouco de bondade em sua história, quem sabe.

    Jiten respirou fundo. Mais de uma vez ele se via pego em uma conversa que ele mal compreendia. Os significados mesclados, como uma dezena de histórias que deixou de ouvir, pegavam-no em um turbilhão de confusão que só crescia, quanto mais ele procurava sair. Não teve muitas palavras para dizer, como em outras vezes, era melhor escutar.

    — Essa ferida vai me matar? — Restou a ele uma pergunta importante para fazer.  

    — Não foi feita para matar, não. Ninguém vive quando enfrenta um monstro daquele. Tem vezes que também não morrem. 

    — E como sabe o que me atacou?

    — Não é a primeira vez que vejo uma ferida assim. Não é a primeira vez que me pedem ajuda para curá-la. — A idosa falou e Jiten notou um certo tom de resignação. 

    A mulher começou a caminhar em direção a um armário com portas de madeira que já haviam sido tomadas por algum crescimento de uma planta trepadeira. Ela vasculhou as prateleiras em um ritmo que tornava ainda mais difícil para Jiten se sentir confortável. Sua pele estava fria, não tanto pela temperatura do ambiente, mas por se sentir um tolo naquela situação. Se sentia alguém que não podia ser ajudado.

    — Não quero mais atrapalhá-los…  Estão se arriscando para me levar ao norte. Tenho que fazer alguma coisa. — Jiten vestiu novamente as roupas, escondendo aquela ferida de si mesmo.

    Suas palavras naturalmente vinham de um lado ferido de seu coração. Havia muita culpa dentro dele e mesmo que tantas vezes tivesse fugido, sua verdadeira natureza, aquilo que sempre quis, foi se sacrificar. 

    — Eu sei, criança. Eu sei. 

    Uma vez que ela retirou uma caixa do armário, a idosa acendeu um recipiente com incenso. Ela se movia de maneira vagarosa, o cheiro dos fumos foi ficando mais intenso, substituindo o fedor de madeira queimada por um buquê de ervas. Jiten manteve os olhos na idosa que mesmo lenta, tinha uma aura de imprevisibilidade. 

    Yuwa abriu a caixa de cânhamo e como quase tudo que Jiten estava interagindo desde que aquela viagem começou, era como se o conteúdo ali o tivesse esperado para isso. Ela retirou uma ânfora, um vidro não maior que uma jarra comum, condensação acumulada em suas paredes internas. 

    Dentro da ânfora viu um caule no qual havia algumas frutas, eram do tamanho de amoras, mas não eram vermelhas e sim verdes. Uma casca lisa e reluzente, envolvendo seu formato redondo um pouco deformado. Jiten não se importou em primeiro momento de contar quantas eram.

    — Se não quer mais fugir, então precisa aprender a seguir. — A mulher falou e observou as frutas ela mesma. Mesmo que a aparência das frutas fosse banal, ela as olhava com algum fascínio. — Os homens não fazem seus próprios caminhos. Eles seguem. Às vezes estradas de cascalho ou terra, outras vezes seguem as luzes ao anoitecer. 

    — E o que isso quer dizer? 

    — Que ninguém é dono do próprio destino. Nem mesmo você. Muito menos eu. — Yuwa permaneceu parada por um momento. — Para se salvar você vai precisar enxergar um pouco do que o mundo é. Um jovem sem sabedoria em uma empreitada tão perigosa é uma loucura. Essas frutas vão te fazer enxergar melhor. 

    — E como isso vai me salvar dessa ferida? Ou impedir que eu atrase os outros?

    — Poder. É isso que elas mostram, mas quando queimadas ainda verdes elas mostram só o que não os homens não querem ver. Você precisa dos dois… e precisa fazer algo para mim. 

    A menção ao poder chamou a atenção de Jiten. Nunca viu Bjarka querer dividir sequer o conhecimento rudimentar do Dogma que ela tinha. Agora, encontrava uma mulher que lhe oferecia um poder que derivava de frutas. Não era tão estranho se pensasse o que os chás que o Povo Antigo usava eram capazes de fazer, mas era estranho pensar que alguém oferecia a outro poder acessível tão facilmente. 

    Poderia ter recusado e ser cauteloso, mas naquele momento seu sentimento de impotência era tão grande, que não importava muito de onde vinha o conhecimento. Queria pelo menos ser capaz de fazer alguma coisa. Não queria ser mais um peso curvado com sua própria vergonha. 

    — O que eu preciso fazer? — A pergunta era inevitável.

    Yuwa assentiu.

    — Ajudar um amigo meu. É a única coisa que te peço. Devo avisar que esta será uma tarefa que te exigirá muito por alguém que não irá parecer valer a pena, mas você a fará, não por ele, mas por si mesmo. Se você tiver sucesso, eu juro que vocẽ terá o restante das frutas. 

    — E quem é seu amigo?

    — Velho, velho amigo. As pessoas da cidade estão apavoradas. Muitos têm desaparecido, a floresta engole os perdidos e uma coisa agora habita a floresta, disputando o espaço com monstros da noite. Meu velho, velho amigo está preso por esta criatura. Tire-o de lá e então, cumprirei minha parte. 

    Jiten refletiu por um momento. Imaginou que sairia dali com algum chá ou algum emplastro, mas na verdade, tinha agora uma tarefa a cumprir. Teria que dar um jeito de fazer isso sem os outros e com seu corpo ainda ferido. 

    O que a idosa lhe disse foi que teria que salvar um amigo de uma criatura, mas como fazer isso sem morrer? Sem se colocar em risco? Começou a sentir uma profunda agonia, uma ansiedade que surgia de seu peito. A mente se enchendo de dúvidas.

    Yuwa tomou algumas das frutas e as lançou no pote que queimava o incenso. Ela estava alheia às dúvidas ou aos questionamentos que Jiten poderia ter. Fagulhas saltaram e a coloração delas não era vermelha, mas púrpura brilhante, como uma cor que não existia em outro lugar da superfície da terra, se não no interior daquelas frutas.

    Os fumos agora subiam com um novo odor, mais frutado, mais cítrico e então preenchido pelo calor amargo da planta queimada. Yuwa aproximou o pote do rosto de Jiten e em um ato de confiança ele se dobrou para frente e inspirou profundamente. Não sentiu absolutamente nada, mesmo quando repetiu o processo por mais de uma vez. Apenas conseguiu distinguir mais claramente os odores das ervas e a fruta que queimava doce, com um fundo amargo.

    Yuwa se afastou e deixou os fumos continuarem a preencher o ambiente. Pegou de uma gaveta uma tira de um tecido rígido e envolveu o caule com as frutas nele. Um breve sorriso preencheu o rosto dela. Uma corda de fibra enrolou tudo junto e ela deu um nó, um pouco concentrada em seu próprio devaneio. 

    Invés de entregar o embrulho para Jiten, ela estendeu apenas sua mão enrugada, contendo uma única fruta na palma de sua mão.

    — Coma quando for necessário.

    — Não sei se vou conseguir fazer isso. 

    — Você pode simplesmente fugir, abrindo mão do caminho que te ofereci. Esse é agora o nosso trato, criança. 

    — E o que acontece se eu comer essa fruta?

    — Você não terá mais vontade de fugir. 

    Aquela discussão em si causava algum incômodo em Jiten. Todas aquelas dúvidas e o medo que tinha de se arriscar, agora pareciam lutar diretamente com a vergonha de estar constantemente curvado diante dos desafios. Sua mente hesitava, mas sua mão se estendeu e pegou a pequena fruta. Colocou-a em um bolso da sobreveste. 

    — O quanto eu preciso te pagar por essa ajuda?

    — Ah, criança, você já pagou pelos meus conselhos. Considere o nosso trato uma coisa a parte… — Yuwa abriu seu sorriso negro, ela balançou a cabeça enquanto dava um riso contido na garganta. — Agora serei eu a pagar o preço. Todos os que te ajudam, pagam o preço.

    Jiten franziu o cenho, sua atenção se redobrou, conseguia ouvir passos do lado de fora do cômodo em que estavam. Podia ouvir uma voz feminina exaltada, mas não depreendeu as palavras. Olhou para trás, mas uma mão raquítica puxou seu rosto de volta. 

    Yuwa agora estava muito mais perto. As mãos dela sobre suas bochechas, segurando seu rosto na direção do dela. Tão perto, ela parecia muito mais velha, uma verdadeira relíquia de pele e osso, quase sem carne ou sangue. Seus dedos eram muito gelados ao toque e os olhos opacos eram mais assustadores de perto. 

    — Ah, minha avó dizia que antes do Primeiro Rei a lua era mais brilhante. Minha mãe dizia depois dela. Agora eu sei que é verdade. Eu sei que é verdade. — Ela começou a rir, Jiten tentou dar um passo para trás, mas ela o segurava com firmeza. Poderia repeli-la com mais força, mas não podia fazer isso com uma idosa. Os fumos concentrados dentro da sala, o coração acelerado, os grandes olhos opacos, tudo aquilo o deixou zonzo. — Que benção você me deu, criança. Finalmente, acabou. 

    Jiten sentiu um incômodo feroz e quando fez força novamente, a idosa o soltou e ele cambaleou para trás. Estava enjoado e tonto, virou-se para o lado de fora, mas não deu mais do que dois passos. 

    Seu reflexo foi acionado pela luz sendo refletida em uma lâmina. Era a ponta de uma lança. Mais de uma ponta de lança. Todas apontadas para ele. Na outra extremidade das lanças, ele viu rostos desconhecidos, mas a indumentária que já havia se acostumado a ver. Eram guardas. Soldados.

    A visão dos soldados o arrastou de novo para sua verdadeira dimensão.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota