Lúgubre foi o caminho até a fortaleza de Soramaru.

    A cidade que cercava a fortificação tinha o aspecto de deterioração infiltrado no próprio ar. Como a maresia corrói o metal, a estranha aura ali presente na própria atmosfera havia criado algum jeito para consumir parte  das edificações. 

    O próprio espírito do povo parecia corroído. Alguma coisa dentro deles havia sido quebrada. 

    Jiten estava zonzo quando os guardas o retiraram da presença de Yuwa e ele foi levado a se juntar ao resto do grupo. Apesar da rudeza inicial, uma vez que se juntou a Toshiro e aos outros, a maioria dos guardas já não se dirigiram a ele de maneira hostil.

    Mesmo assim, a marcha do grupo até a fortaleza não foi algo como uma recepção amigável. Havia sim uma hostilidade pairando entre o grupo e os guardas, mas não havia sinal daquele conflito se tornar aberto. 

    O jovem pastor de ovelhas fez o trajeto de cabeça baixa, assombrado por uma memória recente. Toshiro, no entanto, mantinha a cabeça erguida sem titubear diante do que via ao seu redor. 

    A fortaleza era muito diferente daquela que havia sido construída em Bushimusuko. Uma paliçada a protegia, mas não parecia tão resistente quanto a da cidade ao sul. O chão era de terra batida, poucas pedras, utilizadas na construção, senão para as partes mais importantes das edificações, como o salão central. 

    Jiten nunca havia visitado outros senhores, muito menos mais ao norte. Podia notar que havia lanternas ou bandeirolas que tentavam imitar o mesmo que havia em Bushimusuko, mas a arquitetura era muito mais simplória. Era uma fortaleza rústica que nunca se atrevera a ser muito mais do que foi construída para ser. 

    O grande pátio de terra batida antes do salão principal tinha marcas negras no chão. Muitas delas. Jiten passou com seus pés por sobre algumas. Sua cabeça baixa o fez evitar chutar alguns montes de cinzas, mas não conseguiu evitar que elas ficassem grudadas nos seus calçados. 

    Os servos que transitavam pela fortaleza pareciam mais com espectros. Eram figuras pálidas e doentias, mas quase todos tinham os braços ou as pernas enfaixados com trapos. Nenhum se furtou de olhar o grupo que chegava. 

    O castelo do lorde era muito maior do que uma residência comum, mas era pequeno para uma edificação senhorial. Não tinha mais do que três andares e era demasiado limitado em suas dimensões. Construído completamente em madeira, chegou a ter algum acabamento algum dia, mas tudo foi retirado, deixando apenas as paredes externas nuas. Seu aspecto era o de um homem flagelado. 

    Os soldados conduziram o grupo até o interior do castelo, passando por um primeiro cômodo muito mais parecido com uma antessala e então, até o salão principal. Os guardas se espalharam pelos cantos. O grupo foi deixado no centro do salão, contemplando um trono de madeira esculpida com muitos detalhes. Atrás do trono, estava um grande e largo estandarte, com o símbolo de Soramaru.

    Jiten sentia uma claustrofobia gritante. Mesmo que o espaço ao seu redor fosse muito maior do que o de uma casa, seu coração batia acelerado. Mais de uma vez, olhou para trás, procurando algum jeito pelo qual poderia escapar daquele lugar. Notou, então, que dessa vez, ele tinha uma espada.

    Não haviam confiscado as armas do grupo. Por quê?

    Antes que pudesse refletir sobre a resposta, ouviu o barulho de sinos. Eles tocavam um som agudo, as ondas sonoras se misturando e sendo entrecortadas por uma batida surda no piso de madeira. A visão do homem veio depois. 

    Um cenobita de cerca de trinta anos de idade apareceu. Vestia trajes de linho grosso e branco e um manto amarelo, descendo-lhe em um único tecido até próximo dos pés. Em sua mão, um cajado que se encerrava em um T, com sinos pendurados em cada uma das extremidades laterais. Sobre a cabeça, usava um capuz que cobria sua cabeça. No topo da cabeça, estava gravado o símbolo de um círculo amarelo. 

    Jiten já havia visto cenobitas antes, mas nenhum deles usando um cajado como aquele. Aquilo significava um ponto mais alto na hierarquia, ele sabia disso. Aquele homem deveria pertencer à mesma ordem de religiosos mortos no templo pelo qual passaram. Talvez, por isso, tenha notado nele um olhar tão duro. 

    — Visitantes! — saudou-os o cenobita. — Chamai-me de Mochiaki, sacerdote-mestre do Único. O Senhor da Mônade. — O sacerdote então fez um gesto com o cajado e de sua ponta uma chama brotou do nada. Ela fez um som grave, contrastando com os sinos que tocaram ao longo do movimento. O fogo não durou mais do que um segundo, mas era uma visão fascinante. 

    Jiten conhecia as manifestações do Shanguo, todas muito mais físicas, mas nunca vira algo elementar como aquilo. As chamas foram verdadeiras, não eram mero truque de luz. Em sua mente, uma lembrança de quando Nazher lutou com raios na ponta de sua lança acabou surgindo. Não era uma associação agradável. 

    — Até nós vem o lorde de Soramaru. Notável é o poder de seu sangue! Grande é a sua linhagem entre as linhagens! — O sacerdote então apontou o cajado em direção ao mesmo lugar do qual ele havia saído. Dessa vez, sem pirotecnia. 

    Alguns momentos constrangedores de espera e surgiu um rapaz. Não deveria ter mais do que catorze anos, com bochechas cheias e o cabelo negro muito oleoso. Estava cercado de duas servas, essas muito mais bem cuidadas do que qualquer outro membro daquele castelo. Ele vestia seda com as cores de seu clã. Sobre a cabeça um chapéu cerimonial, um pouco grande demais para sua cabeça. Seu caminhar era duro e os passos muito curtos, de forma que sua entrada demorou bem mais do que seria conveniente. 

    Jiten não achava que era daquele jeito que se vestia um lorde do norte, mas ele também não via nele a semelhança de como se vestia Sanghun. A seda e o recorte delicado de suas roupas parecia trazer uma semelhança com alguns dos comerciantes mais elegantes que vinham do sul. O recorte mais elaborado, no entanto, em nada combinava com a arquitetura simplória da fortaleza, muito menos as cores vivas pareciam condizentes com o estado decadente daquele domínio. 

    Quando o jovem lorde finalmente sentou sobre seu trono, todos os servos, soldados e o sacerdote-mestre se ajoelharam diante dele. Jiten, por impulso, fez menção de se curvas, mas Shio o segurou com tanta força pelo colarinho que ele imaginou que ela fosse o arremessar até o teto. A garota sequer olhou para ele, mas Jiten entendeu que ninguém do grupo havia se ajoelhado. 

    Alguns momentos de silêncio hostil, até que o lorde o quebrou.

    — O que veio fazer em meu território, Senzai? — A pergunta foi feita com um tom de desdém, preenchido com um tédio fingido. — Por qual motivo não se apresentou diretamente até mim? Se acha bom demais para atravessar os territórios de um senhor sem prestar seus respeitos?

    Toshiro deu um passo à frente.

    — Grande Senhor de Soramaru, eu sinto muito pela minha descortesia. Não era minha intenção ofendê-lo com minha discrição. Apenas não quis causar alarde com minha chegada. Eu e minha escolta tínhamos por intenção recompor nossas forças e levar o assunto até vós quando a noite caísse.

    O lorde se empertigou em seu trono. O sacerdote aproveitou para cochichar algumas coisas em seu ouvido. 

    — Certeza que não queria apenas passar despercebido sob meus olhos para me ofender? 

    Toshiro respondeu sacudindo a cabeça e respondendo com um tom grave.

    — De modo algum faria algo para ofendê-lo. Se assim o fiz, ofereço minhas escusas mais sinceras. Apenas julguei que a notícia que eu trago não deveria ser escutada pela população comum. Pelo menos, não da minha boca. 

    Mochiaki, o sacerdote, se projetou mais uma vez até os ouvidos do lorde. 

    — E o que é de tão importante assim? — O lorde indagou, fazendo um gesto impaciente com a mão. 

    — Preferia ter uma conversa a sós com o senhor.

    O lorde olhou para seu sacerdote, esperando mais instruções e as recebeu com apenas o movimento dos lábios do homem. 

    — A conversa será agora. 

    Toshiro olhou ao redor. Jiten não percebeu se ele tinha incerteza no olhar, mas parecia ter seus olhos direcionados para Shio. A garota apenas o olhou de relance. Havia algo ali que não haviam lhe dito. Jiten estava quase sempre perdido acerca do que acontecia à sua volta. Ele havia deixado de prestar atenção em alguma coisa?

    — Sinto lhe informar, senhor de Soramaru, que o templo sob sua proteção ao sul, foi completamente destruído. 

    Jiten sentiu alguma coisa mudar no ar. Como se tudo tivesse ficado potencialmente mais denso. Quase conseguia enxergar isso. A energia que pulsava das cicatrizes que Toshiro tinha em seu corpo. Uma energia difusa emanando do sacerdote. Era quase como se ele tivesse sido capaz de ver uma profusão de cores, mas em um piscar de olhos tudo se tornou nada além de ilusão de ótica. 

    — Isso não é possível. — O sacerdote interpelou, dando alguns passos para frente. Em seu rosto se mesclava raiva e descrença. 

    — Te asseguro que não vim até aqui para mentir diante do senhor de Soramaru. — Toshiro deu mais um passo para trás e impôs sua afirmação. — Encontramos em nosso caminho o templo já destruído. 

    — Moshiaki! Moshiaki! — O lorde se levantou, chamando por seu conselheiro, olhando para os arredores, mas todas suas servas não ousavam olhar para ele nem para lhe prestar conforto. — Isso pode ser verdade? Quem poderia fazer algo assim?

    — Não. Não pode ser verdade, senhor. — O sacerdote direcionou um olhar raivoso em direção a Toshiro. — Mesmo assim, enviaremos alguém para o templo. — O sacerdote fez uma breve pausa, respirando fundo, processando seus pensamentos. — Sabe quem poderia realizar algo assim, herdeiro de Senzai? 

    O ar pareceu uma vez mais denso, as luzes quase cintilantes. 

    Jiten semicerrou o olhar e percebeu que não havia se dado conta de que Toshiro era alguém importante. Pelo menos, não de quão importante ele podia ser se comparado com outros lordes. Deveria ser ele o motivo de nenhum dos membros do grupo ter tido suas armas confiscadas e também nenhum deles ter se ajoelhado.

    Ficou por um momento um pouco atordoado pensando que as pessoas que o cercavam eram verdadeiros desconhecidos. Mesmo que soubesse seus nomes e já  tivesse visto alguns de seus traços de personalidade, era notável que naquele mundo, fora de Bushimusuko, as regras ainda não estavam completamente claras.

    Seu coração batia mais forte, quanto mais se focava nesses pensamentos. A pele das suas bochechas, pescoço e orelhas esquentava. 

    — Eu não sei. Os cenobitas não foram roubados. Apenas mortos. — A resposta de Toshiro foi ainda mais direta. Até mesmo neutra. 

    Jiten não entendeu o motivo de ele não ter falado sobre Sanghun. Era claramente uma obra do cruel senhor de Bushimusuko e de seu exército. Por que agora fingia não saber de nada?

    — E para onde ia o tão nobre herdeiro de Senzai para testemunhar essas coisas? — O sacerdote mais uma vez impôs a dúvida sobre Toshiro.

    — Para casa. Apenas decidimos seguir até sua cidade após termos visto a tragédia. 

    — Então, é nisso que devemos acreditar? Chegou aqui apenas de boa vontade e então se hospedou na residência de uma bruxa? 

    — É essa a verdade. — Toshiro falou com convicção. Seu tom de voz sempre amistoso agora havia se transformado. — Eu e minha escolta apenas procuramos uma boa estalagem. — O jovem guerreiro então retirou uma de suas espadas da bainha. O som do metal foi como o crocitar de um falcão sobre uma multidão de ratos. Os soldados se espantaram e mesmo o sacerdote o mediu com um olhar espantado. — Se duvida tanto assim do que eu digo, teste minhas palavras.

    A tensão se tornou intensa. Jiten piscou os olhos com força. Mais uma vez, uma luminosidade estranha parecia preencher o ambiente inteiro. Por alguns poucos momentos, teve a impressão de ver uma nuvem cintilante ao redor de Toshiro e de alguns de seus companheiros de viagem. As imagens se dissiparam tão facilmente quanto se formaram. 

    O sacerdote continuou a medir Toshiro, seu rosto havia se contorcido de maneira que ele parecia pelo menos dez anos mais velho. Jiten percebeu que o homem deveria estar mais perdido do que realmente fazendo um jogo. 

    — Vocês, cães do norte, um dia terão o que merecem. Está tudo nas mãos do Único. Seus costumes um dia serão julgados diante do tribunal do próprio Sol. 

    — Não esqueça, sacerdote Mochiaki, que a convivência de nossas crenças é garantia do próprio Imperador. Cuidado com as ofensas e promessas que faz em nome de seu deus. 

    O sacerdote apertou o cajado com força. 

    — Suas palavras serão sim testadas, Senzai, mas não nos moldes dessa sua crença. Aqui é Soramaru. Aqui seguimos o Mônade. O fogo é nosso juiz. — Mochiaki cuspiu as palavras, mas apesar da bravata, nada fez além de se retirar. 

    O som dos sinos continuaram o perseguindo, até que estivesse longe o suficiente. 

    O jovem lorde de Soramaru, deixado sozinho em seu trono esculpido, sem seu conselheiro, apenas afundou na cadeira. Respirava pesadamente. O que antes era uma tensão quase  sólida, tornou-se uma aura de constrangimento. 

    Toshiro embainhou sua espada e o som agudo pareceu despertar no outro rapaz a vontade de falar algo. 

    — Nada nunca vai dar certo para mim? — A voz do rapaz foi entrecortada por uma respiração pesada. 

    Jiten notou que os olhos dele lacrimejavam. Podia imaginar que isso se dava ao fato de terem recebido uma dura notícia, seguida por uma cena bastante tensa, mas não parecia ser apenas isso. Aquele rapaz soterrado em seda, cujo o povo mal tinha o que comer, estava observando sua incapacidade de resolver as situações impostas. 

    Os monges sob seus cuidados haviam sido massacrados. Sua população definhava. Ainda assim, ele pensava nele. 

    — Senhor de Soramaru, visto que já cumpri meu papel, solicito que me forneça estadia ou que me permita seguir até uma estalagem. — Toshiro se pronunciou mais uma vez, ignorando as palavras do rapaz. 

    — Tanto faz. Podem ficar. — Ele agitou os braços com as mangas de seda um pouco fora de medida esvoaçando pelo ar. — Vou arranjar quartos para vocês…s-separados. 

    Jiten notou que os olhos úmidos do rapaz se fixaram em Shio e depois voltaram a Toshiro. Não demorou mais do que alguns momentos para que o rapaz se sentisse atingido por alguma ofensa invisível e se levantasse de seu trono. 

    Seus servos marcharam de maneira lúgubre atrás dele. 

    O constrangimento ficou. 

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