Capítulo 38 — Palavras à mesa
O pastor de ovelhas estava com um mau pressentimento.
Era aquele tipo de sentimento que se apoderava dele quando ouvia o uivar dos lobos dentro da floresta. Quando sabia que seria uma noite de vigília. Dessa vez, ele não tinha um rebanho para proteger. Na verdade, seu último rebanho foi exterminado. Agora, ele só precisava mesmo era proteger a si mesmo.
Imaginou que os outros deviam ter recebido quartos melhores. Ele foi deixado em um aposento que mais parecia uma cela de prisão. As paredes de madeira estavam mofadas, parte dividida em ripas e mal cuidada. O cheiro que emanava delas era mais repulsivo do que o aspecto.
Foi-lhe dada uma esteira e ele teve que ficar alguns longos minutos se certificando que ela não estava cheia de percevejos. Aquelas pragas mordiam durante a noite e ele precisava muito dormir. Estava acontecendo coisas demais com ele. Uma noite inteira de descanso era essencial.
Não pôde gastar muito tempo para se ajeitar em sua cama. Não lhe ocorreu a necessidade de trocar de roupas. Tudo o que fez foi deitar e olhar para o teto de madeira velha, tentando processar todas as coisas que vira naquele dia. Tinha esperança de conseguir pegar no sono logo.
Apenas não conseguiu. Pensou ter passado apenas alguns minutos, mas quando uma serva veio chamá-lo para o jantar, notou que já estava escuro do lado de fora.
Seguiu as indicações que deveriam levá-lo de volta ao salão principal.
A visão do dito jantar não era muito animadora. Já havia visto festas simples em sua vila com muito mais comida do que aquilo. Duas mesas haviam sido dispostas de maneira paralela. Havia algumas panelas escuras com algum líquido ainda borbulhante ao lado de cada uma das mesas. Havia sobre cada mesa duas travessas com aves assadas e um arroz de aspecto cinzento.
Em uma das mesas podia ver Shio, Amara, Toshiro e seu mestre. Jiten se juntou a eles, mas os outros dois irmãos que os acompanhavam na viagem não haviam aparecido. Nenhum dos membros do grupo parecia muito animado, recebiam a comida que era servida por servas pálidas e agradeceu de maneira lacônica.
Jiten recebeu seu prato de barro, com arroz cinzento servindo de cama para pedaços de legumes cozidos em um caldo ralo. Toshiro rasgou um pedaço de carne para Jiten, cortando o peito de uma das aves com uma faca. Jogou-o em seu prato.
— É assim que se compra lealdade: carne — disse o líder do grupo e sorriu.
Sua brincadeira mascarava a profunda percepção que ele tinha daquele lugar. Jiten olhou ao redor, percebendo que toda aquela estrutura estava em pé por muito pouco. A maior parte do que mantinha aquilo coeso era a existência daqueles soldados que protegiam a fortaleza e tratavam de administrar a justiça do lorde. Mesmo estes, não eram tantos, mas provavelmente eram uns dos poucos que tinham acesso à proteína.
Jiten sabia que assim como ele era um pastor de ovelhas que cedia a carne dos animais que criava ao seu senhor, aquelas aves foram caçadas e fornecidas por um camponês como ele. Alguém cujo o trabalho foi roubado sob pena de morte.
Sentiu perder o apetite.
— Não vai comer nada? — Toshiro o indagou, seus olhos inquisitivos sugeriam que ele percebia sempre mais do que transparecia.
— Estou esperando o apetite.
— Com essa comida nojenta, é difícil mesmo sentir vontade de comer. — Shio comentou, o olhar dela de desprezo quase fazia Jiten sentir pena de quem tinha preparado aquela refeição.
— Deveria comer um pouco. Ele não para de te olhar. — Toshiro comentou e mordiscou a pele gordurosa de uma coxa da ave.
Jiten olhou ao redor e só então percebeu que o lorde estava em sua cadeira ornada. Ele comia algumas frutas de uma bacia perto de si, mas de fato, sua atenção estava concentrada no grupo de viajantes.
— Quero ir embora. — Shio comentou.
Jiten notou no rosto dela o desprezo se mesclar de maneira confusa com uma tristeza. Era algo na flexão das sobrancelhas ou no delinear dos lábios.
— Iremos amanhã. Prefiro que partamos antes que confirmem as mortes no templo.
— Irão nos acusar de qualquer jeito. — Shio retrucou.
— Eu sei, por isso eu achei que era vantajoso que viéssemos aqui. Um sinal de boa vontade. Isso enfraquece a palavra de Sanghun contra mim.
— Planejou isso desde o início? — Shio ergueu o tom de voz.
Jiten notou a inquietude crescer dentro dela. Quase podia ver uma aura brilhante se formando ao redor do corpo dela, como se ela se preparasse para algum conflito. Mais tensão. Ele ficou um pouco mais tonto, o estômago se revirou em um misto de fome e enjôo.
Toshiro não respondeu, endireitou as costas e manteve seu olhar por alguns momentos em seu prato, antes de o direcionar para Shio. Dizia muitas coisas naquele olhar. Jiten só conseguia entender uma parte. Uma dessas partes, com toda certeza, a dizia para não continuar.
— Não havia escolha. Uma vez que o viram manifestar uma Runa, esse movimento se tornou o único possível. — Foi o homem mais velho que afirmou, enquanto ainda mastigava. Ele era aquele que mais havia comido da carne que estava disposta e talvez o que mais parecia entender tudo o que acontecia.
— O que significa manifestar uma Runa? — Jiten despertou seu interesse pela conversa, mais uma vez, um termo que não conhecia.
Toshiro e seu mestre se entreolharam por um momento.
— Renji nunca deve ter falado. A dele foi marcada na perna. Por isso ele a arrancou. — Toshiro evitou a resposta, jogando as palavras a esmo.
Jiten se espantou por um momento. Sempre ouviu a história de que seu mentor havia perdido a perna para um animal feroz do mar. Foi difícil manter o foco em qual pergunta fazer a seguir.
— Não se preocupe. Ele deve ter tido os motivos dele. Aquele velho sempre devorou mais mistérios do que conseguia lidar, não é de se espantar que ele tenha passado muito pouco de tudo que sabia — O mestre de Toshiro interviu. — Mesmo assim… bem, manifestar uma Runa é uma forma de usar o Shanguo. Você conhece as posturas, não é? As runas são outra forma. Você vai saber mais quando estivermos em casa. Aqui não é lugar e nem hora para falar disso.
— Não acha que esse ato de boa vontade está saindo muito barato não? — Shio perguntou.
— Não vai sair barato. — Toshiro arrancou mais um pedaço de carne e o mastigou com vontade. — A questão é qual de nós vai pagar.
Os olhos do Senzai se ergueram até Jiten. O rapaz sentiu a preocupação formada por trás das íris. Era a segunda vez naquele dia que ouvia sobre o pagamento de um preço. Um mau pressentimento percorreu seu corpo inteiro.
— Não fique nervoso, Jiten. Provavelmente será eu. — Toshiro sorriu, mas suas palavras não amenizam por completo o que havia atrás de seus olhos. — Nem o sacerdote, nem o lorde vão perder uma oportunidade de me punir.
— Apenas por causa daquela provocação mais cedo? — Jiten questionou.
— Não, aquilo foi só um aperitivo. O problema mesmo foi eu ter roubado a pretendente dele.
Jiten olhou confuso para o líder, mas ele apenas sorriu.
— Babaca. — A voz de Shio surgiu gélida.
Antes que Jiten pudesse fazer quaisquer perguntas, o mestre de Toshiro se voltou para ele. .
— De qualquer forma, Jiten, é bom que tenha certa noção. Você sabe como funciona a fé no Mônade, não?
— Ouvi algumas vezes, mas Renji sempre me disse para não prestar muita atenção. Só existe um deus que faz parte de todos nós.
— Sim. Lembra o que falam sobre o sol? — O mais velho alisou sua barba, as contas douradas enroscando entre os dedos.
Jiten forçou a memória. Os cenobitas viajavam até o vilarejo e falavam de como era poderoso seu único senhor. A população os escutava por imposição do lorde. Alguns erguiam templos e faziam preces ao sol. O rapaz nunca entendera muito bem. O seu grupo de convivência tinha muitos dos mais velhos. Aqueles que ainda queriam tentar se lembrar de como eram as coisas antes de Sanghun.
Lembrou-se da frase e da forma que os monges testavam sua fé. A maioria deles se voltava para o fogo, ao qual dizia que tinha o poder da revelação e da verdade. O fogo…
— É… onde brilha a vontade divina. — Lembrou-se da frase.
— É isso mesmo. O sol queima, então o fogo é seu elemento mais sagrado. Imagine… no norte, impera a neve… são crenças difíceis de se conciliar.
— Mas o que tem isso a ver?
— Um homem do norte testa sua palavra pelo corte frio do metal de sua espada… os sacerdotes sulistas, por sua vez, preferem o calor. — O mestre ali presente parecia ele mesmo fascinado pelo assunto.
Jiten, notou, que na verdade, ele deveria estar fascinado pelo perigo.
— Resumindo: vão tentar me fazer andar em um braseiro ou segurar uma barra aquecida. Quando eu saquei a espada, provoquei-o a isso… Quando eu passar no teste, saberão que eu disse a verdade.
— E como você vai passar nesse teste? — Jiten já havia visto que Toshiro era de fato alguém de muita inteligência. Capaz de lutar contra muitos e de uma capacidade física incrível. Será que o que comentaram sobre o Shanguo seria seu segredo? A capacidade de resistir ao próprio fogo? Isso ele nunca havia visto.
— Tudo depende do teste. Não importa. Seja o que for, eu vou superar.
A confiança dele deixou Jiten empolgado. Ao mesmo tempo, sentia inveja da forma como Toshiro se posicionava de maneira tão corajosa diante de um perigo iminente. O mero crescimento da tensão já deixava Jiten a beira de querer correr.
— Não devia se arriscar desse jeito. — Era a voz de Amara. A primeira vez desde que entraram na fortaleza. Ela havia se tornado profundamente reclusa. Dispensava até mesmo olhar para Toshiro.
Estava aí, mais uma pergunta que Jite não conseguia responder. Ele tinha muitas perguntas. Muitos assuntos para retomar. Aquele jantar parecia uma boa oportunidade de conversar muito do que precisava.
Mas oportunidades boas não duram.
Ele sentiu o mau pressentimento ressurgir.
E ouviu o som dos sinos.