O fogo podia ser uma visão atordoante.

    O mestre-sacerdote Mochiaki surgiu por detrás de uma coluna temporária de fogo. Sua aparição causou arrepios e roubou exclamações de surpresa do grupo de pessoas no salão. Deveria ser um truque que ele não cansava de usar. Também, era compreensível porque não cansava de surpreender. 

    O Dogma é inacessível aos servos. 

    O próprio lorde se aprumou quando seu conselheiro surgiu. Enquanto o salão tentava aos poucos retomar o que estava fazendo, ambos trocaram palavras, mesmo que quem mais parecesse falar fosse apenas o conselheiro.

    Uns poucos momentos e já seria possível entender que havia algo errado. Na mesa onde Jiten estava, ninguém mais se sentiu à vontade para falar. Apenas um burburinho baixo permaneceu entre os soldados e os outros servos. 

    Ainda que esperasse o apetite chegar para poder se arriscar com a comida, toda aquela situação parecia distanciá-lo ainda mais do conforto de uma refeição aceitável. Jiten sentiu os minutos intermináveis se arrastarem diante dele.

    Quando foi entendido que todos tiveram tempo para comer, Mochiaki caminhou até a lateral do lorde. 

    — Peço a palavra, senhor. — O sacerdote se curvou diante do garoto no trono. 

    Um gesto de seda esvoaçante o liberou.

    — Gostaria de me dirigir aos servos e aos nossos convidados — começou Mochiaki, havia soberba em seu tom de voz. — O domínio de Soramaru tem passado por um período duro. O Único Deus tem nos provado sob a luz de sua forja celestial. Nosso espírito tem sido retorcido e martelado sobre as nossas carnes e ossos. Tudo isso tem preparado nosso povo para nos tornarmos mais fortes e para servir o propósito divino. 

    Jiten olhou para seus companheiros de viagem. Todos mantinham sua atenção fixa no sacerdote. Ao redor, servos e soldados olhavam com reverência, mais do que com atenção. Algumas outras figuras Jiten só notava naquele momento. Havia homens mais bem vestidos, mesmo que não armados, pareciam ter alguma origem nobre ou pelo menos compravam a nobreza com suas roupas. 

    — Cabe a nós continuar provando nossa lealdade. Mesmo quando o tempo é o mais sórdido e tudo se aproxima do fim. É quando a noite estiver mais escura que o glorioso sol surgirá no horizonte. — O sacerdote fez um movimento com seu cetro e os sinos ecoaram. Chamas foram erguidas em uma dança perigosa ao redor do cetro e de seu corpo. A maioria dos servos e dos soldados seguraram o fôlego. — Peço que me acompanhem ao lado de fora. 

    Um momento  de hesitação ficou evidente. Ainda mais evidente foi o burburinho que se seguiu ao sacerdote requisitando a abertura das portas do salão e atravessando o hall até o pátio externo. Os soldados mudaram de suas posturas leves no período de descanso com o lorde e assumiram de novo seus papéis. Os servos também pausaram suas atividades para seguir de imediato. 

    O lorde de Soramaru se levantou e foi escoltado por suas servas em direção à saída. Só depois que ele se retirou, passando por Toshiro sem olhar para ele, que o grupo de visitantes se moveu. 

    Jiten os seguiu. Depois se arrependeu. Toda aquela situação não era para ele. Deveria ter retornado aos seus aposentos, aproveitando a distração e poderia quem sabe conseguir dormir. Mesmo que nada tivesse comido, parecia haver uma bigorna dentro de seu estômago. Estava nervoso. Tinha um pressentimento ruim.

    Só quando saíram para o pátio que Jiten notou que Soramaru não estava tão decadente quanto imaginava. Havia soldados e alguns membros importantes da vila ali. Iluminadas por dezenas de lâmpadas ao estilo do sul e uma porção de archotes, ele podia ver parte das pessoas apenas como silhuetas na escuridão.

    Toda a luz convergia ao pátio principal. 

    As lanças dos soldados refletiam em suas pontas a luz das lanternas. O brilho ameaçador na lâmina de cada uma das armas. Não eram muitos, mas era uma quantidade respeitável de homens. Não era apenas uma escolta ou esquadrão para a proteção da fortaleza. Estavam ali como parte do espetáculo.

    Todos estavam ali para prestigiar alguma coisa. 

    O lorde de Soramaru subiu em um palanque foi erguido provisoriamente com a sobreposição de algumas placas de madeira. Sobre o palanque havia um banco simples, sobre o qual ele se sentou. 

    Jiten ainda imaginava como aquilo destoava. Um garoto vestido de seda sentando em bancos rústicos de madeira. As coisas não estavam no lugar. 

    Mochiaki assentiu para o rapaz sobre o banco e ele se voltou em direção ao grupo em que Jiten estava. Logicamente, sua atenção não estava em um pastor de ovelhas, mas em Toshiro. 

    — Aqui… — O rapaz tossiu com algo preso na garganta. — A-aqui temos Toshiro do Clã Senzai diante de nós. O… o clã Senzai e Soramaru são aliados de tempos long… longínquos. — O rapaz não apenas gaguejava, como tinha que se esforçar para manter o foco. Era claro em seus olhos que ele estava nervoso. Não. Mais que isso. Estava com medo. — Infelizmente… É… Mochiaki! Por favor!

    O sacerdote não pareceu surpreso pelo chamado do lorde. Ele fez um gesto para que o rapaz se acalmasse. Deu alguns passos em direção ao grupo de visitantes e os olhou de maneira desafiadora. 

    —  Infelizmente, meu senhor, Senzai Toshiro infringiu a lei! Traiu a confiança de nossos clãs e violou os dizeres do Imperador — Mochiaki anunciou em voz alta diante de seu povo. O grupo estremeceu. Jiten percebeu que os músculos de todos se retesaram. Ele mesmo entrou em prontidão. — O herdeiro de Senzai sacou a espada na presença de nosso senhor. Exigiu a justiça dos costumes de sua terra estando nas terras que servem ao Único. Isso é uma violação e ele será julgado por isso dentro de três dias. Até lá, nem ele e nem sua escolta poderão sair das dependências que lhes foram atribuídas para os seus aposentos. Quando chegar a hora, suas palavras serão testadas. 

    Sem se demorar, o sacerdote fez um gesto para um dos soldados. Uma movimentação começou ao lado. Não pareciam estar na iminência de prendê-los ou algo assim, parecia algo diferente. 

    — Já há tempos estamos em uma investida contra as forças malignas que estão atacando nosso território. A floresta está infestada de maldade ancestral. Foi necessário incendiar a Caverna de Yu e tantos outros locais erguidos para práticas de feitiçaria. — Mochiaki parecia convicto de suas palavras, carregado por um sentimento que não era apenas vingança. Era algo mais. — Então, temos a segunda infração cometida pelo herdeiro de Senzai. Associou-se aos serviços de uma bruxa. Não é possível que alcancemos a verdadeira purificação sem termos antes alcançado a verdade de um propósito puro. Para limpar nosso povo e garantir a proteção divina, é necessário que provemos nossa fé. Tragam a bruxa para o teste. 

    Jiten sentiu uma forte tontura. Sentiu vontade de vomitar, mesmo estando de estômago vazio. A luz das lanternas e dos archotes brilhavam mais intensamente do que nunca. Seus olhos estavam irritados. Precisava descansar. 

    Quando viu a velha Yuwa ser arrastada em correntes até o centro do pátio fez força para não correr. 

    Talvez, se a ferida nele não o tivesse debilitado tanto poderia correr. Talvez, se não fossem os soldados e o grupo que o escoltava a sua volta servindo como uma muralha poderia ter corrido. Ninguém ao seu redor se moveu diante da visão daquela idosa sendo humilhada. Assim, no fim, ele também não se moveu.

    Mas havia ainda uma possibilidade remota. No fundo de seu coração, diante de tantos favores que recebera e não pudera pagar, já estava muito cansado de correr. Ficar parado foi a única coisa que conseguiu fazer, mas isso não era o suficiente. Não seria o suficiente jamais, mas foi tudo o que encontrou dentro de si para oferecer. 

    Um pouco mais de coragem e não teria aguentado aquilo calado. Um pouco mais de coragem e não precisaria fugir nunca mais. Iria sempre lutar, ser aquele que faz a diferença e inspira o medo no coração dos covardes. Alguém mais parecido com o que escutou que era seu pai.

    Seria uma lenda para alguém, como seu pai era para ele. Um pouco mais, quem sabe… apenas se não estivesse tão enfraquecido… 

    É… se o fogo não fosse tão atordoante, ele talvez tivesse lutado. 

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