O vilarejo havia mudado. 

    Desde que o Clã Sanghun tomou conta da pequena vila na colina, ela cresceu de maneira exponencial. Jiten sempre se espantava quando se aproximava dos portões da paliçada de madeira. Ele não sentia que chegava em seu lar, mas como se fosse um viajante repetindo a mesma parada inúmeras vezes. Já conhecia tudo ali, mas nada parecia realmente lhe pertencer. 

    O sol atrás da vila fazia a paliçada projetar uma sombra sobre todos que chegavam em seus portões. A noite se aproximava e, como sempre, soldados surgiam no topo dos muros, olhando entediados para o bando de camponeses sob eles. O vilarejo era agora a Fortaleza Bushimusuko. O que era antes o lar de meia centena de famílias, em dez anos havia quintuplicado de tamanho e agora era um ponto importante de passagem. 

    Os Sanghun não paravam de financiar a chegada de novos moradores. Primeiro, o Imperador lhes mandou dezenas de refugiados de guerra. Então, começaram os incentivos, feiras, arrendamento de terras, a criação de um exército particular e posteriormente a oficialização de um posto defensivo do Imperador. Bushimusuko cresceu e destruiu a floresta ao redor, queimando-a, cortando as árvores e explorando cada centímetro de corpo de água disponível. Não era à toa que Wulan e sua família do povo antigo os odiasse. 

    O progresso só é possível com destruição e uma força militar poderosa o suficiente para manter o povo calado. 

    — Identifique-se! — um dos soldados no portão exclamou. 

    Jiten se aproximou, avançando da fila em que esperava ao portão. O jovem pastor levava com ele sua melhor ovelha. Foi a melhor que pudera encontrar no rebanho de seu senhor, o que ainda lhe preocupava. O animal era bonito, saudável e com uma lã densa e branca como a primeira neve, mas não era pequeno comparado a outros que viera ao longo da estrada. Jiten a escolheu pela lã, pois achou que esta teria mais valor para seu senhor.

    — Hinokuma Jiten. — rRespondeu à ordem do soldado. Ele sentia um desconforto nas entranhas sempre que estava diante de um daqueles homens.

    A maioria dos soldados usava armaduras mais simples. Couro batido, rebitado com ferro em. Estes, utilizavam por vezes madeira para proteção extra no torso, o que lhes dava um aspecto um tanto quanto corpulento. Outros, normalmente os capitães, eram mais sofisticados, elos de ferro e pequenas placas metálicas, cobrindo-se quase sempre com couro e pele duras de animais. Davam a impressão de ser um exército de homens dismórficos comandados por feras humanoides. Não era o tipo de visão agradável.

    — Amanhã será lua cheia e fica determinado que nenhum camponês deve se ausentar de suas residências.

    — Amanhã é minha vigília nos campos. 

    O soldado não pareceu se importar. Era difícil notar o que ele de fato estava pensando, uma vez que seus olhos não se retiraram do papel em que anotava. De todas as coisas, aquela que Jiten mais detestava eram as máscaras militares. Simulavam a face de animais, pintadas em cores negras e vermelhas. Atrás delas, os olhos humanos dançando em uma moldura de rosto imóvel. 

    — Pode passar. 

    Após as anotações, Jiten seguiu além dos portões e adentrou o vilarejo. Um sulco marcado em meio a terra era por onde corriam os esgotos. Ali, logo à entrada, cavalos de tração, bois de carga e garranos de viagem dominavam a rua. Havia a projeção de um pequeno mercado ali, destinado aos viajantes e ao serviço feudal de atendimento dos recém-chegados. Foi entre alguns desses animais que surgiu um conhecido de Jiten.

    — Olá, Chen. — saudou com um aceno.

    Um soldado de pouco mais de um metro e oitenta se aproximou ainda em postura perfeita. Ele detinha cabelos castanhos característicos, mesmo amarrados em um coque atrás da cabeça. 

    — Olá, camponês. — A máscara abafava a voz dele, deixava-a mais metálica e ressonante. 

    Jiten sorriu e disfarçou, olhando para frente. 

    — Está gostando do novo trabalho? — indagou o pastor ao soldado. 

    — Não é de todo ruim. Muitos benefícios, bom pagamento, horas livres e tudo o mais. Só um pouco mais sério do que estou acostumado. 

    Chen e Jiten se tornaram amigos ainda na fase de educação. O rapaz era dois anos mais velho e muito mais alto. Ao fazer dezesseis, Jiten imaginou que seria recrutado para trabalhar em conjunto com o amigo, mas para sua decepção ele foi mantido na posição de pastor. Talvez, resultado de ser um pouco mais baixo do que a maioria dos garotos e não exatamente feroz. 

    — Minha mãe pediu para te avisar para passar lá, caso o visse. — Chen disse e então, olhou ao redor, procurando alguma coisa suspeita. Era uma espécie de reflexo de patrulha, julgou Jiten. 

    — Então pode me avisar. 

    — ‘Tá avisado. — Chen então deu um tapa forte nas costas de Jiten. — Esta ovelha aí é a janta de hoje? Parece apetitosa.

    — Não é para seu bico. Ela pertence ao Lorde Sanghun. É a minha vez de fazer a oferta de lua cheia. 

    Chen ficou em silêncio por alguns momentos. 

    — Um pouco pequena, não? Todos sempre oferecem as maiores que podem arranjar. 

    Jiten direcionou os olhos para a inocente criatura. Ela balia um pouco incomodada com o cheiro dos cavalos. O pastor ajustava o passe dela cutucando com o cajado nas laterais do corpo. A lã dela era tão macia que parecia absorver qualquer impacto.

    — Quis me diferenciar. Escolhi aquela com melhor lã. O inverno começa em breve, pode ser que nosso senhor aprecie roupas de boa qualidade. 

    Chen olhou ao redor mais uma vez. Dessa vez, Jiten notou que ele tinha olhos nas estatuetas dispostas pelo caminho. A cada centena de metros havia algumas. Figuras feitas em homenagem ao Lorde Sanghun, sobre elas, sem um estandarte carmesim. Eram símbolos de poder e era exigido que os moradores próximos deixassem flores ou ervas da floresta em sua homenagem de tempos em tempos. As crianças eram as responsáveis por buscar as plantas. 

    — Espero que sua boa vontade não seja confundida com audácia. — o rapaz disse em um tom baixo.

    Jiten não havia parado para pensar que se diferenciar dos demais poderia ser um sinal de desafio. Mesmo assim, ele se confortou diante do pensamento de que os Sanghun sempre recompensam a ousadia dos viajantes que chegam até lá e se instalam, além de apreciarem presentes exóticos ou bem feitos. Ele conhecia toda a fama severa de seus senhores, mas não os enxergava como pessoas de mente fechada. 

     — Diga, Chen, é verdade os rumores com algo estranho na floresta? 

    Chen estacou. Mais uma vez, olhou ao redor. 

    — Te vejo mais tarde, amigo. 

    Deu meia volta e seguiu em direção ao mercado da entrada. 

    Jiten deu de ombros, sem saber muito o que pensar. Seguiu o caminho principal e então, virando em algumas ruas, subiu uma elevação que o deixava logo adiante da residência da família de Chen. 

    Natsuki e Akio eram duas crianças de não mais que sete anos, os pequenos irmãos de Chen. Eles brincavam com seus vizinhos, Shieka e Miho. Uma das meninas, Miho, corria com uma boneca de pano na mão, gritando como se para salvar a própria vida. Akio a perseguia e encostou nela exclamando a plenos pulmões:

    — ‘Tá com você!

    E então, a dinâmica se invertia. Aqueles que antes fugiam de Akio se juntaram a ele em sua fuga de Miho. 

    — Senhora Chiharu? — Jiten chamou à porta. 

    As crianças não pararam de brincar, nem se incomodaram com sua presença. Demorou alguns momentos até que uma senhora surgisse na janela. Chiharu era uma viúva bastante simpática. Baixinha, mancava um pouco por conta de um acidente que sofrera enquanto estendia roupas. Sua cabeça era permanentemente ornada com um lenço negro, desde que seu marido desaparecera na floresta.

    — Entre, meu bem. — a mulher o convidou. 

    Jiten amarrou sua ovelha em um poste na porta, apesar dos protestos que ela balia e entrou na casa. 

    O lugar aconchegante era o tipo de ambiente que lhe transmitia alguma semelhança em como havia sido sua vida antes da guerra. O som das crianças na rua, uma senhora que preparava o jantar para seus filhos pequenos e os móveis sempre limpos, aguardando uma visita que poderia chegar a qualquer momento, mas que era sempre indeterminada.

    — Você viu o Chen? Está tão bonito, não é? Vestido como um soldado.

    Jiten sorriu e assentiu um pouco tímido. A viúva lhe serviu um pouco de chá e entrou na cozinha para buscar algo. Ela retornou poucos momentos depois com um embrulho. Aparentava ser mais comida. Muita gente ajudava o velho Renji, com quem Jiten morava desde que retornara ao vilarejo. Mesmo que o que Jiten ganhava fosse o suficiente para sustentar ambos, muitas pessoas o reconheciam como alguma espécie de herói e de tempos em tempos lhe enviavam pequenos presentes. 

    — Tenho certeza que ele irá apreciar, senhora Chiharu. 

    A mulher sorriu gentilmente.

    — Precisamos de mais homens como o velho Renji. As coisas estão ficando difíceis, sabe. Nosso senhor tem sido bastante enfático nas cobranças que faz. — a mulher falou mais baixo do que o habitual, temia ser ouvida, assim como a maioria dos mais velhos, estava viva pela cautela. 

    A guerra já havia levado os destemidos. 

    Jiten assentiu com a cabeça em resposta à mulher. Ele compartilhava do mesmo sentimento, mas havia pouco a se fazer. As cobranças de impostos vinham sendo mais severas, mais frequentes e sem justificativas. A explicação recente era que haveria o Festival de inverno aberto pela primeira vez a todos da cidade e por isso, deviam contribuir. 

    O jovem pastor de ovelhas notou que sobre um móvel no canto, a viúva havia deixado alguns tecidos que deveria estar costurando. Eram coloridos, o tipo que se veria em um grande festival. Faixas longas feitas para ornar as ruas. 

    — Falta pouco para o Festival, assim, poderemos ter algum tempo de descanso até a primavera. — disse Jiten, começando a se projetar para a porta. Ele tinha muito o que fazer ainda naquele dia. 

    A mulher não pareceu se animar, ela apenas balançou a cabeça e começou a caminhar em direção à porta.

    — Temo por este recrutamento que estão fazendo. O filho do meio de nossa vizinha foi convocado para a tropa, isso porque já haviam mandado o mais velho. — a mulher disse, claramente incomodada com os próprios pensamentos. Ela abriu a porta. Do outro lado da rua havia uma das estátuas do senhor. Esta em específico tinha uma serpente que se enrolava ao redor de seu corpo.  Jiten se sentiu ligeiramente incomodado ao olhar para a estátua. — Tome cuidado, meu jovem. Cuide bem do velho Renji. 

    Jiten assentiu com a cabeça e se despediu brevemente. Sua ovelha foi com ele, descendo as ruas com ele rumo à sua casa. Em sua cabeça circulavam os avisos de Wulan e aquela estranheza que prenunciava um recrutamento massivo. Talvez uma guerra estivesse por vir. 

    A realidade era que já fazia tempo que os Sanghun tinham apertado as rédeas com as quais guiavam o povo em Bushimusuko. Cada vez mais, pareciam buscar os limites em que a população da cidade aguentaria. Era o tipo de coisa capaz de trazer perturbação a alguém mais ciente das ameaças que um senhor pode causar. 

    Tudo na cidade era um lembrete da vitória de Lorde Sanghun sobre a população daquele vilarejo. As estatuetas, os estandartes vermelhos e nas partes mais ocidentais da cidade ainda eram mantidas algumas ruínas das casas queimadas e destruídas, mesmo dez anos depois. Cada vez mais, Jiten se sentia incomodado, ele sentia no ar aquela poeira semelhante a que viu no dia que o exército chegou. Movimentação excessiva num espaço fechado. Camponeses agitados, com cada vez mais medo da noite e mais ansiosos durante o dia. Era como ver as pessoas fechando as portas e janelas antes da chegada de uma tempestade. 

    No caminho, viu a estalagem do jovem Junjie com sua taberna, a herança que o rapaz tinha de seu falecido pai. Ainda era cedo no dia, tendo fechado após o almoço alguns jovens lavavam o chão e as mesas. Era possível ver que estavam sobrecarregados, sempre com pressa, correndo de um lado a outro, pois os viajantes encheriam o lugar mais tarde. 

    Os ferreiros e os latoeiros, duas ruas a cima, também pareciam abarrotados de encomendas. O som do metal batendo contra a bigorna podia ser escutado mesmo a uma quadra de distância.  Alguns aldeões faziam fila para pegar os produtos que queriam comprar ou deixar para a reforma. O inverno estava se aproximando e não haveria tanta disposição de lenha para manter as forjas ativas o tempo todo. Era melhor que resolvessem tudo logo.

    Havia alguns bêbados e vadios ocupando as ruas ocasionalmente. Estranho era que Jiten raramente se lembrava de algum deles. A fisionomia quase sempre mudava, mesmo que o comportamento fosse parecido. Alguns viajantes não se adequavam à cidade e acabavam descambando para o lado da vadiagem.  Depois de algum tempo, os soldados o expulsavam ou prendiam. 

    Era comum ver as pessoas trabalhando duro. A maioria da economia do lugar fluía para a construção. A fortaleza, as casas, os muros e os navios. O povo daquele vilarejo era muito mais diverso do que se poderia encontrar na maioria das cidades. Alguns falavam com dialetos diferentes, sotaques estranhos e usavam gírias de lugares distantes. Ano após ano, Jiten e os antigos moradores assistiram à chegada daqueles estrangeiros. Observaram com os anos a cidade se tornar uma parte de todos. 

    Para vigiar todo esse processo, na colina mais alta, defendendo o Arqueado, estava a fortaleza. Ergueram-na para proteger a porção do grandioso rio que era até o momento dominado totalmente pelas tribos do norte. Com o estabelecimento de Bushimusuko agora o Imperador teria um forte confiável para controlar o rio e dificultar rebeliões. 

    Era por isso, que soldados eram vistos controlando a população com uma mão de ferro. Jiten viu, diante de seus olhos, uma patrulha diante de uma das casas. Pôneis cobertos pelas cores dos Sanghun, se aglomeravam na frente de umas das residências. Foi só então, que o rapaz distraído notou os gritos. 

    Um camponês era arrastado para o lado de fora de sua casa por um grupo de soldados. Jiten estacou diante daquela visão, ouviu o som do fechar de janelas e de portas dos vizinhos. Os soldados surraram o homem com chicotes, como se fosse um animal, enquanto mãe e filha gritavam. O homem implorava, mas não era possível ouvir o que dizia, sempre que abria sua boca em um protesto era acertado por uma joelhada ou chute. Jiten entendeu o motivo das mulheres gritarem e por isso, não conseguiu se mover. Mascarados como feras, os soldados se comportavam como monstros. Nenhuma fera faria algo como aquilo.

    — O que você está olhando, garoto? — um dos soldados exclamou, apontando com a mão que segurava o chicote. 

    Algo na expressão de Jiten deveria ter chamado a atenção. 

    — Este deve querer apanhar também. — outro soldado mais alto disse, se aproximando a passos largos. — Não sabe, verme, que o dever de vocês é o de fingir que não estão vendo? 

    O golpe que veio era esperado. O chicote cortou o ar, mas o impacto dele foi surdo. Jiten bloqueou com o braço esquerdo, agarrando o punho do soldado. A tira de couro pendeu no ar, enquanto ambos os homens observavam com espanto a expressão de ódio no rosto do jovem. 

    O golpe seguinte também era esperado. Apesar disso, Jiten não desviou. Um soco forte moveu seu rosto para trás. O impacto o deixou surdo e cego por um segundo inteiro. Ele precisou se esforçar para não cair. Ele abaixou os olhos, de início, o rosto estava anestesiado, mas sabia que lhe fariam sangrar. 

    — O que está acontecendo?

     Uma voz grave foi ouvida e todos os soldados pararam como se fosse o rugido de um leão da montanha. Mesmo os pôneis se empertigaram.

    Era o capitão Nazer. Era um homem de quase dois metros de estatura, um corpo largo como uma carroça e mãos tão grandes que poderiam esmagar a cabeça de um homem. Ele usava a máscara de um leão e se cobria com o manto de um deles tingido de negro. Caminhou por sobre a lama misturada ao sangue do camponês agredido enquanto ajeitava seu pesado cinturão. 

    — Não é nada, capitão. Só um pastorzinho insolente. 

    Jiten sentiu um profundo desconforto. Não era apenas a sensação de que o lábio havia sido cortado pelo soco que levara, mas uma espécie de enjoo. Sabia o que era aquilo: medo. Mesmo que sua mente negasse, seu coração ainda estava acelerado e aquele desconforto apenas aumentava. 

    A sombra do capitão cobriu Jiten por inteiro. 

    — Você é o rapazinho que mora com o velho Renji, não é? — A voz grave de Nazer era até difícil de se entender. Não fora feita para conversar, mas para urrar. 

    A mão do capitão envolveu sua mandíbula. Podia sentir a carne afundando e o osso doendo sob a pressão da falange. Quase parou de respirar por alguns momentos enquanto o homem erguia seu rosto até quase o deixar na ponta dos pés. Tinha certeza que o homem poderia arrancar seu rosto com um único puxão.

    — Aquele velho vai ter o que merece se continuar me atrapalhando. Quando a hora chegar, a habilidade dele com os navios não vai protegê-lo. — o capitão disse e era claro que ele se sentia como uma fera acorrentada. Por maior que fosse, Lorde Sanghun não podia ser questionado nem mesmo pelo mais poderoso de seus soldados. 

    — Podíamos levá-lo, senhor. Amanhã é lua cheia, queremos nos divertir. 

    Nazer permaneceu em silêncio por alguns momentos. Jiten sentia que algo em seus olhos o entretia. 

    — Velho demais para nos divertirmos com ele… — o capitão disse e emitiu um riso que mais se assemelhava ao bater de um tambor. — E nem para soldado não serve um verme como esse. 

    Jiten respirou fundo e deu alguns passos para trás quando foi liberto. Ele chacoalhou a cabeça e manteve os olhos baixos. Era melhor evitar mais um desafio. Tinha dado sorte no final das contas.

    Os soldados viraram as costas e o deixaram partir com sua ovelha. 

    Nota