O fogo deixa marcas.

    Todo camponês entende bem o perigo que o fogo representa. Um poder incontido da natureza que uma vez aplicado não pode ser contido. Ele consome construções, transforma plantações em cinzas e aniquila a vida de maneira dolorosa. Todo camponês sabe que deve temer. 

    Mochiaki tinha o fogo à sua disposição. O conhecimento oculto do Dogma o tornava capaz de manipular uma força da natureza que não podia ser compreendida pela maioria das pessoas. Mesmo que para Jiten e seu grupo ele não fosse nada além de um sacerdote autoritário, diante do povo de Soramaru sua aura era imensamente poderosa e imponente. Sua mera presença inspirava a mais completa veneração.

    Ele era um arauto das palavras divinas na terra. 

    Jiten olhou para Toshiro. Esperava que o líder fizesse alguma coisa. Talvez, esperava que tivesse algo a dizer naquela situação. Ele havia afirmado estar tudo sob seu controle, mas não parecia bem o caso. O rapaz mesmo sendo mais experiente estava atento e com os músculos rígidos. 

    Não era de se espantar que todos estivessem tensos assim. Jiten sabia o que ia acontecer, mesmo que tentasse pensar que poderia ser algum tipo de ritual diferente, ele já havia escutado sobre aquelas coisas acontecendo mais ao sul. 

    Toshiro tinha um sobrenome. Não um sobrenome qualquer, mas um sobrenome verdadeiro. Não poderia ser submetido a um teste como aquele. Os cenobitas que serviam ao Mônade quando encontravam alguns dos membros do Povo Antigo que ainda realizavam seus rituais mais ancestrais, muitas vezes conseguiam iniciar uma punição como aquela. Era tudo uma questão de o quão comprometido um lorde estaria com o culto. 

    A velha Yuwa, mesmo sendo tão idosa que mal podia caminhar, foi presa com correntes de ferro bruto nos braços e ao redor do pescoço. Os soldados pregaram as correntes no chão com vergalhões de quase um metro, tão pesados que precisavam ser carregados por dois homens. Os vergalhões foram posicionados para que a idosa ficasse de braços abertos. 

    O peito aberto diante da verdade. Como Jiten já ouvira os cenobitas falarem. 

    Não era atoa que Bjarka, Khanh e outros do Povo Antigo odiavam os mugenjin. No passado eles foram caçados. A origem daquela punição era desconhecida por Jiten, mas sabia que ela havia começado em algum passado muito distante. Sabia que ela era usada apenas diante das acusações mais graves. O objetivo daquilo era um criar um símbolo. Um sacrifício. 

    Os soldados não pareciam indignados com o que faziam. O povo não parecia ter nada em seus olhos além da expectativa. Se eles discordavam do que estava acontecendo, assim como Toshiro e seu grupo, não verbalizavam. Era apenas tensão nos músculos diante da violência. 

    Uma violência considerada sagrada. 

    — Esta mulher diante de nós já há muito tempo vem sendo observada. Já há tempos foi alertada por nosso senhor sobre a necessidade de endireitar seus caminhos. Duas vezes a chance foi dada. Ela não se corrigiu. Então, será testada uma última vez.

    As palavras do sacerdote ecoaram na noite. A lua minguante no céu era a testemunha em um teto negro pontuado de luzes menores. 

    — A benevolência só é verdadeira se a justiça também o for. Para aqueles que não respeitam nossos costumes, somente o fogo será a resposta. — Palavras calculadas do sacerdote diante do povo. — Observem a grandeza do Mônade!

    O cetro de Mochiaki se iluminou. As chamas surgiram em seu topo, mais intensas do que qualquer archote ou tocha poderia brilhar. Fogo vermelho, coroado de dourado, como o poder que convocava o imperador. O poder de uma divindade. A única divindade. 

    A luz para Jiten era cegante. Ele via o fogo e mal conseguia tirar os olhos dele. Uma névoa ia além da luz, brilhante, derramando-se pelo cetro até de volta para as mãos do sacerdote. O fogo não era natural. Não vinha de um deus. As pontas dos dedos do sacerdote estavam incandescentes. 

    O sacerdote apontou para a velha Yuwa. 

    As pernas da idosa tremiam sob o peso de seu próprio corpo. As correntes haviam lhe ferido a pele enrugada a ponto de deixá-la em carne viva. Vestida não mais do que com um manto grosseiro de serapilheira, os cabelos desgrenhados, sujos com folhas, barros e detritos, caídos sobre seu rosto. Despiram-na das semelhanças que tinha com o próprio povo que ali habitava. Parecia agora mais monstro do que pessoa. 

    Um sorriso negro surgiu em seu rosto. Ela olhou para o céu. 

    — Para vocês a lua agora está minguando. Diante de mim ela cresce! — Esbravejou com sua voz rouca. Tinha a energia e a intensidade de quem sabia estar diante de um momento final. Não havia resquício de medo ou insegurança no que dizia. Apenas vontade pura. — Minhas ancestrais! Voltem seus olhos para mim e testemunhem! 

    — Chega de suas feitiçarias. 

    O sacerdote avançou alguns passos. Tocou a ponta do cetro no chão e o rastro de fogo começou a se espalhar. Seguindo uma trilha invisível até onde a mulher estava acorrentada. Todos seguiram o fogo com os olhos. O brilho refletido em cada pupila. 

    Jiten se sentiu paralisado. Seu corpo não respondia. Sua respiração estava pesada e podia sentir suor descendo por sua testa, mesmo que a noite em si não estivesse tão quente. O fogo brilhava tão intensamente que parecia querer jogá-lo para trás. 

    Yuwa olhou as chamas que se aproximavam dela como uma serpente faminta. Seu olhar feroz não se alterou. 

    — Vocês corromperam essa terra. Quebraram os elos antigos. — A velha riu. — O fio de seu destino já foi tecido. Ele está vindo. O rei está vindo. — Ela comprimiu os olhos quando o fogo alcançou seus pés. — Ele vem! E dessa vez, não lutará por vocês! — Uma risada desafiadora, enquanto o fogo subia por seu corpo. O tecido havia sido encharcado com gordura. As chamas cresceram e brilharam com tanta força que iluminou todo o pátio até a parede mais alta do castelo. — Terrível é o destino… 

    As palavras se perderam nos lábios que derretiam. 

    Jiten sentiu que iria vomitar. O cheiro da gordura queimada, a visão da pele da idosa derretendo, as chamas abraçando os membros esticados pelas correntes em um turbilhão violento. Um poder tão intenso que sentia a dor de observá-lo atrás de seus olhos. 

    Fogo vermelho no centro de seus olhos azuis. 

    Soube então que algo estava diferente. Nele e no resto do mundo. 

    O fogo já havia consumido os cabelos dela. As correntes ao redor do pescoço estavam incandescentes. Sua pele consumida pelo calor a abandonou. Pareceu que ela havia rejuvenescido oitenta anos. Não havia diferença de idade quando o fogo era forte o suficiente. 

    Os olhos, no entanto, ainda estavam ali e encontrou os dele. 

    A boca negra se abriu em meio às chamas. 

    — Você não pode fugir do trato!

    As palavras atingiram Jiten em cheio, como uma pancada no meio do peito. Ele por inteiro começou a tremer. Um turbilhão de emoções terríveis levando sua mente até o limite. 

    Ninguém mais pareceu escutar. 

    Uma última frase. Um aviso só para ele. 

    Uma marca. 

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