Capítulo 41 — Olhos fechados
Abriu os olhos assustado.
Podia ouvi-la cantarolar uma canção.
Como ainda se lembrava de sua voz? Era apenas uma memória, esparsa e difusa como uma neblina no amanhecer. Tinha certeza que era ela.
Seus olhos conseguiam ver a lua brilhante no céu. Bem maior do que ele podia se lembrar. Sua luz esbranquiçada vencia a escuridão de uma noite sem estrelas. Somente a lua e nada mais. Cerrou os punhos e rastejou pela grama.
Estava no chão da floresta. Qual das florestas que conhecia? Não sabia. A folhagem, as árvores, as pedras e os arbustos ali tudo parecia um pouco igual a tudo o que já tinha visto. Podia ver, no entanto, que a floresta murchava. Era o inverno… E mais alguma coisa.
Viu uma mulher na beirada da floresta. Uma criança em seu colo, aninhada com tecidos que a envolviam, agarrada no colo daquela que devia ser sua mãe. Mesmo uma criança de colo poderia sentir que havia algo de muito ruim por perto.
Jiten teve a impressão que a conhecia. A silhueta, a cor dos cabelos, o jeito de se mover, algo de similar nas roupas brancas rasgadas dela. Era como um espectro. Seus olhos queriam perceber algo mais. Sua mente batalhando para construir uma imagem que ela mesmo batalhou no passado para suprimir.
Algo no chão chamou sua atenção. Era algo como líquen aderido ao solo, mas ao olhar por mais de um segundo soube que jamais tinha visto algo parecido. Brilhante como o mesmo material que alimentava as luzes dos vagalumes, uma marca no chão se espalhava como se sobre o solo tivesse sido derramado um líquido.
A mancha era azulada e como um rastro, levava-o até a mulher. Tentou tocar o rastro com os dedos, mas mesmo ao remexer a terra as luzes continuavam. Isso porque não estavam no chão, pensou, mas como o enxergava?
Era um caminho brilhante, iluminado por um milhão de vagalumes pequeninos, em uma procissão errática em direção ao meio da mata. Não podia explicá-lo, mas quando era pequeno, aprendeu que o tinha que seguir.
Ergueu o torso e cambaleou. Orientou o corpo na direção que o rastro o indicava. Um passo após o outro. A respiração pesada, o corpo querendo voltar ao estado de repouso e a visão turva nos cantos, como se tivesse perdido a visão periférica.
A noite havia devorado a floresta. Estava profundamente escura, como se estivesse nas entranhas de um monstro. Acima dele, a lua, tão distante que era uma lembrança de luz em meio ao abismo que se tornara o céu.
Era mais do que sombras. O que lhe cercava não era apenas escuro e frio como a noite costumava ser. Era apenas a ausência.
Seguindo o rastro, foi em direção a mulher. Escutou o som de uma respiração pesada dentro da mata. Não enxergava o que gerava aquilo, mas sabia que não era algo bom. O instinto lhe deu motivação e energia para seu corpo.
Se sua resposta foi uma indiferença quase suicida, a da figura feminina com seu bebê foi a de fugir. Descalça por dentro da mata pesada, ela apertou a criança firme nos braços e se afastou.
Foi a lembrança. A memória escondida que impelir Jiten a entrar em perseguição. Foi isso que o impeliu mais para a frente.
Queria se lembrar do rosto daquela mulher e ouvir sua voz chamar seu nome.
Os pés dele marcaram o chão com profundidade. Estava descalço também. Despreparado para o que precisava fazer. Os galhos, as pedras, as raízes, cada elemento que no chão fizera morada foi cruel com seus pés.
Nem mesmo a terra era macia. Não, era por vezes dura, mas lhe cobria os pés como se o tentasse fazer cair em uma armadilha de lama movediça. Seus olhos eram sua única forma de enxergar na escuridão imperdoável.
Então, forçou mais os olhos. Forçou-os até sentir a dor e o caminho.
Logo, ele mesmo deixava uma marca no chão. O pé abrasado e cortado deixava para trás seu rastro de sangue. Galhos afiados e ressequidos cortaram suas pernas, as cascas ásperas e quebradas das árvores pelas quais passou cortaram suas mãos e braços quando nelas tentou se apoiar.
Nessa perseguição, mais cambaleava do que corria. Não podia sentir de fato o cansaço, mas sabia que estava cansado. Apenas sentia o cansaço como uma dor atrás dos olhos, um peso excessivo nos membros de seu corpo.
Queria apenas chegar até ela antes de seu corpo desistir. A cada passo que dava, mais fria a floresta se tornava. Mais difícil era dar o passo seguinte, mais difícil ainda manter a respiração no ritmo certo.
Mas ele enxergava mais.
Havia algo na floresta que estava caçando a mulher. Tinha que chegar nela primeiro.
Continuou mesmo assim. Seguindo o rastro azulado que seus olhos insistiam em querer enxergar. Seu coração batia intensamente pela tensão que sentia e a urgência que lhe subia do estômago até a garganta.
O bosque foi se tornando mais denso. As árvores agrupadas. Os galhos frequentes e os arbustos tão cheios que pareciam a copa de árvores caídas. Sentiu-se como uma mosca tentando atravessar a teia de uma aranha.
Quando o bosque se tornou tão fechado que não era possível mais ver a procissão de luz, tropeçou em algumas pedras e atravessou o mar de árvores. Caindo muito mais a frente do que seria o natural de sua queda. O mundo se distorceu ao seu redor.
Então, estava de volta diante do Cedro Celeste. Os galhos gigantescos estendidos por sobre a mata como um milhar de braços. As ranhuras em sua casca vazando a luz ancestral que emanava de seu centro.
Na pedra sob o Cedro, não encontrou o estranho ser que povoava a mistura de seus sonhos e suas lembranças. Ali, havia apenas uma mulher, embalando seu filho nos braços. Ela cantarolava para ele uma canção.
Teve certeza que um dia soube cantar aquela música. Teve certeza que um dia cantou aquela mesma canção para aquela criança quando a mãe estava longe lavando suas roupas. Agora, as palavras lhe fugiam. Não sabia mais como verbalizar.
O rastro estava no chão, guiando-o até ela. Por isso, cambaleou pelo lodo e pelas folhas que cobriam o chão, até chegar diante da pedra e sentir suas pernas fraquejarem. Caiu de joelhos diante dela. Ainda incapaz de ver seu rosto.
O grande Cedro se erguia por detrás daquela figura. Suas folhas gigantescas cobrindo o céu, as estrelas e a própria lua.
Ergueu a mão para puxá-la, para finalmente ver o rosto que lhe fora negado de ver por tantos anos.
Sua mãe. Seu irmão. Queria os de volta, mesmo por um momento que fosse.
Seus dedos envolveram o tecido apodrecido e ao puxar a figura para si, sentiu-a se desfazer como galhos, pedra, poeira e panos rasgados. A criança se foi, tornando-se nada mais do que a mortalha suja de lodo com a qual foi enterrada.
Jiten quis chorar. Caiu com o torso sobre a pedra. Seus olhos cheios de lágrima o fizeram novamente como uma criança incapaz de controlar o próprio destino. Alguém para quem não lhe resta nada além de assistir a morte, porque nada contra ela pode fazer.
Restava-lhe diante de si a árvore. O Cedro. O espectro que lhe surgia em sonhos e que ele teve medo de perguntar para todos ao seu redor, mesmo para seu mestre. Todos sabiam que ele estava lá. Que existia no meio da floresta, mas se negavam a dizer seu nome, a invocar sua existência. Era nada mais do que um sonho em uma clareira.
Abaixou os olhos e notou que o rastro continuava. Por debaixo da pedra e ao redor da grande árvore. Semicerrou os olhos, ergueu sua cabeça e projetou o torso para frente. Engatinhou e se levantou, cambaleando para que o rastro lhe levasse até onde precisava chegar.
A floresta já não era escura para si. Não precisava mais de tochas ou dos vagalumes. Seus próprios olhos já lhe davam a luz que precisava. Toda a luz do mundo.
Por cima das raízes tão grandes quanto outras árvores, além do tapete de folhas caídas. Manteve o ritmo de sua caminhada novamente para dentro da floresta. Perdeu a noção de quanto havia caminhado, mas encontrou uma caverna.
Era como um buraco em uma pedra. Escuro, impossível de depreender o que havia em seu interior, mesmo que as sombras da floresta já não pudessem impedir Jiten de transitar. A escuridão ali não era verdadeira. Era algo além de qualquer luz que ele pudesse usar.
Sentiu um calafrio. Viu dois olhos vermelhos surgirem naquela escuridão. O medo. A urgência. A dor da perda. Tudo lhe atingiu novamente, de uma única vez.
Fechou os olhos com força.