Capítulo 6 — Nas entranhas do demônio
A fortaleza era como um demônio sobre a colina.
Um arco de madeira recepcionava os que entravam nela como uma grande bocarra aberta. Ao passar por ele, Jiten sentiu um arrepio em sua espinha e olhou para trás, apenas para ver o grande vilarejo murado observá-lo com centenas de olhos brilhantes.
O crepúsculo já estava sobre eles e as luzes das lanternas predominavam, especialmente na via principal que era acendida pelos servos do castelo, uma lanterna por vez.
Para chegar ao arco, subiu uma íngreme escadaria esculpida na pedra da colina, acompanhado por sua pequena ovelha. Diante dele ainda havia um caminho de paralelepípedos e cascalho, sinuoso como uma serpente até culminar no portão principal.
Este portão era a única abertura conhecida de uma muralha de pedra que delimitava a parte externa do forte.
Ao ficar em pé diante da fortaleza, Jiten se sentia infinitamente pequeno. A muralha tinha um aspecto serpentino tal qual a estrada que até ela levava, mas as torres de observação eram como espinhos grossos e pontudos em suas costas.
Era possível ver os homens mascarados observando das torres, como espectros surgindo conforme a penumbra se fortalecia.
O portão se abriu para Jiten. Os dentes de metal eram espetos duros e demoravam um tempo considerável para serem erguidos pelos homens operando as roldanas. Eles sabiam quem ele era e a serviço de quem estava. Permitiram que entrasse e ele seguiu a estrada serpentina rumo às partes internas da fortaleza.
Grandes salões protegidos por paredes de pedra. Sobre eles, a bandeira vermelha do Grande Senhor Shanghun. Nessas grandes bandeiras era possível distinguir com precisão o símbolo de um crânio humano em negro com um círculo concêntrico em sua testa.
Diferente da maioria dos clãs no norte que utilizavam machados, criaturas mágicas ou animais ferozes como seus símbolos, os Shanghun usavam o sinal da morte.
Jiten caminhou até onde lhe aguardavam, acompanhado por um dos mensageiros e chefes da organização do castelo.
No caminho, ele pôde ver em uma carroça dezenas de máscaras de metal, empilhadas umas sobre as outras, com faces de muitos animais nelas esculpidas. Eram as máscaras militares dos soldados e aquele vislumbre fez Jiten se perguntar até onde ia o desejo por uma nova batalha.
O último conflito aberto havia sido seis anos antes com o Clã Kinyuki. O resultado havia sido uma espécie de empate, mesmo que o clã vizinho tivesse perdido mais homens, os Shanghun sofreram uma derrota significativa após os barcos dos Kinyuki usarem o Rio Arqueado para flanquear o exército de Bushimusuko.
A vingança deveria estar a caminho.
Mesmo assim, para Jiten agora isso não era realmente tão importante assim. Ele estava no interior da fortaleza, com uma única companheira ovina, caminhando para realizar um sacrifício para o lorde.
Era o tipo de coisa que deveria perturbar a mente de um camponês e talvez por isso, de todas as formas possíveis, ele tenha tentado desviar a atenção daquilo que fazia para as guerras do passado ou para a observação da arquitetura.
Estava apreensivo. Tanto que em seu peito se acumulava uma massa densa que pesava sobre o estômago. Era como se tivesse tentado engolir uma tonelada de chumbo e o tivesse ainda entalado. Seus olhos dançavam pelos cantos dos corredores que o levavam em direção ao lorde.
As lanternas brilhavam vermelho como vagalumes alimentados com sangue e o brilho carmesim lhe cobria como um presságio ruim.
Era como um boi levado ao abate. Não podia dizer se o sacrifício era a ovelha completamente quieta que o acompanhava ou se era ele mesmo ali, como um monte de carne e ossos para além do estômago da besta.
O último dos portões, então se abriu e o servo que o acompanhou não passou deles. O salão do lorde era possivelmente o mais belo de todos de toda aquela região. Nada no resto do vilarejo se assemelhava. Se a arquitetura foi feita com simplicidade e rigor militar, ali dentro daquele salão era como ser transportado para Mizenshi, para as terras do sul com todo seu luxo.
Um bloco único formava o chão. Pedra polida a um nível que era possível ver o próprio reflexo. Todas as lanternas que brilhavam no alto, brilhavam novamente no chão, como reflexos das luzes de um mundo espelhado em outro.
O teto era mais alto do que em qualquer outro local, dele pendiam correntes de prata com caveiras revestidas de prata. Eram os crânios dos lordes derrotados, após a morte convertidos em admiradores da glória dos Shanghun.
O ambiente era aquecido por duas lareiras, com canos de metal que seguiam rente às paredes que distribuíam o calor por elas produzido.
Mais ao fundo do salão era onde repousava a visão mais impressionante. Dois tronos ornados em marfim eram os assentos do lorde e de sua esposa. Tinham em cada uma de suas curvas uma pedra de jade brilhante e o topo dos tronos tinham apêndices arqueados que deveriam simular a lua minguante de Mizenshi, mas pareciam mais com chifres.
Entre as luas, uma grande rocha oval polida, que Jiten não deduziu de qual minério poderia ser, mas pelo que sabia das histórias era provavelmente uma pedra das estrelas.
— Hinokuma Jiten. — Uma voz grossa como um rugido o anunciou.
Foi só então que Jiten notou o capitão Nazer no salão. Estranho não o ter visto antes. Este tinha dois metros de altura, maior que um cavalo de guerra e provavelmente mais forte.
Os olhos por detrás da máscara deixaram Jiten perturbado, mas era apenas o começo. Aquele incômodo. Um comichão que vinha de dentro. Era como estar diante da morte.
Demorou para realmente reparar no lorde. Ele vestia um manto pesado de pêlos de urso e era notável como no interior do manto deveria haver placas de aço, pois a mera aparência daquilo era de um enorme peso.
A figura do lorde era de um homem atlético, os músculos destacados mesmo sob o couro que vestia. Suas roupas tinham algum estilo militarista, mas não era uma armadura propriamente dita.
O couro era bonito, brilhante sob a iluminação escarlate, mas não parecia ser de gado comum. Braceletes de metal escovado lhe ornavam os membros superiores, em um encadeamento típico de uma armadura, mas surpreendentemente elegantes.
As botas tinham um aspecto tão pesado quanto do manto e tinham ao seu redor da sola um invólucro de metal tal qual as ferraduras de um cavalo.
O lorde se levantou.
— Aproxime-se, garoto.
Jiten começou a caminhar e sentiu sua ovelhinha puxar a corda. Ele enrolou o cordão ao redor da mão e a puxou com mais força. Mesmo assim ela não baliu. Após alguns constrangedores segundos ela aceitou e o seguiu, ao que Jiten reagiu respirando aliviado.
Mas o alívio era temporário.
— Esta é a minha oferenda? — A voz do senhor era profunda e grave, mas também era clara. Parecia ter sido desenvolvida para um guerreiro e para um senhor em sua própria natureza. Expressava autoridade e força, não importava o que dissesse e suas perguntas jamais poderiam passar sem resposta. — Julga ser isto o que eu mereço?
Jiten ficou paralisado. O aperto ao redor da corda aumentou. Ele sentia pela primeira vez um verdadeiro medo diante daquele homem.
Agora, este medo lhe parecia indistinguível da agonia que passara ao longo de todo o trajeto. A diferença é que se apresentava profundamente claro, tão evidente como a água de um rio congelado jogada na parte de trás das costas.
Por um momento, não se atreveu a falar. Notou, no entanto, que não poderia escapar dessa situação em silêncio.
— Sim, Grande Senhor Shanghun. Honorável Senhor sobre Bushimusuko e as Colinas do Arqueado. Como sinal do amor de nossa vila e gratidão por sua proteção, ofereço esta ovelha para ser sacrificada no Dia da Lua. — Exclamou Jiten e se calou como se mais uma esfera de chumbo lhe tivesse descido o esôfago.
Só quando parou de falar notou que tinha gritado. O silêncio que se seguiu o fez pensar por um momento que todo o mundo havia sido transformado em pedra.
O lorde caminhou até ele e quando suas botas tocavam o chão, o som de metal podia ser escutado como uma lâmina preparada para ser desembainhada.
Jiten não ousou olhar para cima, mas sabia que o lorde sorria.
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