A visão do lorde era assombrosa para um camponês.

    Imbuia nele tudo o que uma pessoa comum do campo poderia temer. A espada na cintura, o couro, o metal, as roupas e o olhar que era o símbolo de autoridade materializada. Tudo isso era um lembrete do único e verdadeiro medo de todos os homens. Olhando para ele, era impossível não saber estar diante de um dos guardiões dos portões da morte. 

    A maior das distinções estava presente em seu cabelo. Uma única mecha, a frente, tingida de um dourado que ainda prevalecia mesmo sob a luz carmim.

    Jiten permanecia parado, segurando a oferenda que trouxera para ele, mas em sua mente não havia qualquer pensamento. Estava entorpecido pela luminosidade vermelha, como se mergulhado em um mar de sangue. Não podia vocalizar ao seu bel prazer e nem mesmo sua postura podia ser mantida ereta. Era natural que se curvasse. Era natural que se entregasse.

    — Meu senhor! Te trouxe a ovelha com a melhor lã, tão branca como a neve do meio do inverno. É perfeita, meu senhor, para confeccionar as mais belas vestimentas que aquecerão meu senhor durante o inverno.  

    Mais uma vez, sua fala se dispersou no ambiente silencioso como uma gota de sangue em uma lagoa. 

    — Engraçado. 

    Uma voz feminina surgiu de um dos tronos.

    A esposa do lorde era uma bela mulher com pele clara e cabelos castanhos. Seu rosto estava por detrás de um véu translúcido de seda azul, que sob a luz vermelha se tornava de um púrpura digno de realeza. Jiten ousou erguer os olhos para ela apenas por um momento. Notou suas vestes de seda ornadas com fios dourados, cada um bordado com tanta delicadeza que deveriam ser a obra prima de um alfaiate. A forma dela não era como de uma mulher comum, uma vez que tinha uma barriga de gestante já elevando o tecido. 

    A senhora não parecia nenhum pouco velha. Não deveria ter mais do que seus vinte e cinco anos e seus dedos eram delicados, apoiados sobre o marfim quase se confundiam com o material do trono. Ela era pertencente a Dinastia Daiken, mas a posição que ela ocupava não era certa para Jiten ou para os aldeões de qual ele ouvira aquela história. Alguns diziam que ela era irmã do imperador, outros diziam que era prima ou algum parentesco distante, mas relevante.

    A mulher ostentava uma barriga invejável, saliente sob a seda que usava e sobre a qual ela tinha pousada sua mão. Parecia tão orgulhosa com aquele bebê em seu ventre que mesmo em seu olhar era possível notar o brilho. 

    Os camponeses diziam que o único motivo para que houvesse o Festival do Inverno era porque o herdeiro do lorde iria nascer durante o meio da estação mais fria. As anciãs já haviam abençoado a criança e era quase certo que nasceria um menino tão forte quanto o pai. Era dito que a criança, por nascer daquela mulher, teria direito legítimo à sucessão do Império.

    Agora que havia reparado nela, podia ver também ao lado o conselheiro. Uma figura que Jiten já conhecia, por conta deste frequentemente inspecionar os trabalhos no estaleiro. Chamavam-no de Sombra Muda. Não tinha mais expressividade do que uma sombra teria e era tão quieto como uma. 

    Jiten e Renji sabiam que aquele homem não era tão silencioso assim. Era ele quem fazia conhecer as maiores exigências do lorde.

    — Nobu — chamou o lorde —, do que se alimentam os deuses?

    Não houve sequer um segundo de espera para que a resposta surgisse. 

    — Carne e sangue, meu senhor. — Nobu falou e um sorriso surgiu em seus lábios. 

    Dita a resposta, Jiten não esperava o que estava por vir. 

    Subitamente, perdeu o equilíbrio. A primeira coisa que notou foi que seu corpo não mais o obedecia. Estava dobrado para frente e todo o ar havia sido retirado de seus pulmões. Só depois percebeu o impacto, a mente confusa, não conseguia discernir em que direção estava rumando. 

    Quando caiu no chão percebeu que havia recebido um chute do lorde. Jiten sentia como se seus olhos tivessem tentado saltar para fora e um calor lhe preencheu de dentro para fora. Tudo que enxergava era a bota do lorde e o borrão carmesim das luzes que o cercava.

    — Entende, camponês? — o lorde falou. Parecia que estavam debaixo d’água, aos poucos, o som foi retornando a normalidade e o jovem conseguiu ouvir algumas risadas. — O calor da lã não tem valor nenhum para mim e para você o que importa é me servir como serviria a um deus. 

    Jiten ouviu o som dos passos do lorde e o procurou com os olhos. Então, viu ele erguer sua pequena ovelha pelo pescoço. Sua única reação foi tentar se levantar e erguer sua mão para tentar alcançá-la. Em seu interior, sabia o quão inútil era aquele ato, mas mesmo assim, não pôde impedir a si mesmo de realizar a tentativa. 

    Poucos momentos depois, a ovelha caiu morta no chão. Seu pescoço torcido, fora quebrado com apenas um aperto. 

    A vez de Jiten então chegou. O lorde o agarrou pela blusa de linho e o ergueu para que ficasse de joelhos. O jovem pastor ouviu alguns passos em suas costas. Tentou respirar fundo para se concentrar, mas ofegava dolorosamente. Nenhuma das posturas e técnicas de Renji lhe ajudavam naquela situação. 

    Mesmo que quisesse lutar, ele não tinha chance alguma. O lorde era um dos guerreiros mais fortes de Mizenshi e estava cercado por um exército. Jiten não tinha sequer uma espada e morreria antes mesmo de conseguir roubar alguma dos guardas. Não podia proteger nem a si mesmo.

    A única coisa que conseguiu pensar foi nas palavras do velho Renji. 

    Nota