Capítulo 8 — Sangue para os homens
Memórias de Jiten
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Há poder no sangue.
Mesmo uma criança deveria saber disso. Na maioria das vezes elas sabem, mas o poder que elas veem não conseguem relacionar ao sangue e o que eles não conseguem ver, dado que são protegidas pelos pais, também não podem aprender até que cheguem a idade adulta. Este poder, como aprenderia Jiten, deriva de duas coisas que o sangue provê aos homens: descendência e violência.
Há poder em carregar o sangue no corpo. Há poder em derramá-lo.
Chegara a hora de Jiten aprender ambas as lições.
Tinha oito anos naquela época. Dois anos após assistir à sua família ser assassinada, dois anos após esperar todos os dias por um pai que nunca retornou, Jiten já tinha a mente calejada.
As memórias ruins e sentimentos negativos haviam sido cobertos por uma casca-grossa de defesas. Feridas cicatrizadas que davam origem a uma maior resistência. Mesmo em uma criança, era inegável como tudo que acontecera o afetara profundamente.
O dia em Bushimusuko começou a surgir. Uma luminosidade parca vinha do horizonte. Os primeiros raios de sol rastejando pelas paredes das casas reconstruídas. Madeira simples, com tábuas cortadas de maneira rudimentar.
Aos poucos as pessoas estavam sendo capazes de reconstruir suas casas como eram antes, mas esse processo ainda levaria anos e toda manhã, a luz do dia revelava cicatrizes do ataque ocorrido dois anos antes.
Jiten estava sentado sobre um caixote próximo de um novo curtume que havia surgido na região. Renji estava com ele, tinha negócios a tratar ali pela manhã e como sempre chegava muito cedo para os compromissos.
— Por que minha mãe nunca falou sobre a família dela? — Jiten perguntou de súbito, como se o sol lhe tivesse lembrado de alguma coisa.
Aquela pergunta já estava lá há muito mais tempo. Jiten sentia que ela estava lá desde antes da morte de sua família. Ele carregava consigo o peso das palavras nunca ditas, das perguntas nunca feitas.
Renji se espantou um pouco com o questionamento. O velho tentou da melhor forma possível ajustar sua coluna. Ele e o pai de Jiten já tinham velejado juntos e era sabido que o velho carregava uma cicatriz de um duelo entre os dois.
Daqueles que haviam sobrevivido ao ataque de Sanghun, Renji era o que tinha as melhores informações sobre a família de Jiten e seu passado. Um passado inacessível para o menino.
— Mitsuki… — disse o velho, usando a palavra como uma chave para abrir alguma porta de sua memória. — lembro-me de quando ela chegou ao vilarejo com Ryusuke. Seu pai era mesmo muito devoto a ela.
Ouvir o nome de sua mãe e de seu pai após dois anos tentando impedir as lembranças deles de se esgueirar de volta para sua mente deixou Jiten com um aperto no peito. Subitamente a estrada de terra do vilarejo pareceu profundamente interessante e ele manteve os olhos voltados para o chão.
— É… mas ele me contou um pouco sobre ela. Acho que você merece saber. — O velho se afastou um pouco do caixote e começou a desenhar no chão com sua bengala. — Yanmoshen. Uma linhagem antiga de olhos claros, azuis como um dia foi a lua, diziam, quando nosso primeiro Imperador chegou ao Campo das Grandes Papoulas.
— Foi onde ele morreu? — Jiten perguntou, lembrando vagamente da história.
— Sim, mas isso foi em seu segundo encontro. No primeiro, ele aprendeu a viver além do corpo. — O velho coçou o queixo e continuou a desenhar algumas linhas na terra amolecida pela garoa da madrugada. — O primeiro Yanmoshen estava lá nesse dia. Também estava no último. Ele ganhou seus olhos azuis assim… como é que diziam?
Jiten ficou olhando curioso. Tinha certeza de que se tratava de um poema que ele havia escutado sua mãe recitar. Essa memória se encontrava em um ponto estranho. Lembrava da melodia, mas não consiga cantarolar. Lembrava das palavras, mas não podia recitar. Essas tentativas, no entanto, só faziam seus olhos marejar.
Preferiu deixar para lá. Renji pareceu tomar a mesma decisão.
— Faz muito tempo. — Pareceu pedir desculpas, mas era apenas um velho contemplando que teve uma vida mais longa do que ele mesmo esperava. — O destino traça linhas entre os homens, sabe, menino. A mais evidente dessas linhas é vermelha. — Cutucou as costelas do menino, apontando para dentro dele. O velho sorria.
Jiten sentiu cócegas e fez uma menção de sorrir. O velho amenizava o peso daquela fala, mas o menino entendia que ele falava do sangue. A descendência ligava o passado e o futuro. Dois lados do destino, o princípio e o fim.
Então, o velho deu um passo para o lado e revelou o símbolo no chão. Era um círculo concêntrico cercado pelos símbolos semelhantes a ondas. Demorava um pouco, mas era possível enxergar que era uma representação da lua composta por algum tipo de energia que fluía por ela.
— A outra linha é a memória. Essa é tão mais tênue. — A voz do velho foi descendo aos poucos até se revestir de melancolia. — Para a primeira linha, só é preciso querer viver. Para esta segunda, é preciso querer lembrar.
Jiten tinha os olhos no símbolo. Ele se lembrava de onde vinha. Aquela espada que sua mãe havia recebido no dia que o viajante chegou. Tinha aquele símbolo gravado em sua lâmina azulada.
— Eu tenho os olhos dos Yanmoshen. — disse o menino, mas repetia o que outra pessoa lhe havia dito.
Renji sorriu.
— Você tem mesmo. — O velho então se posicionou diante dele e Renji viu o rosto dele se tornar severo. — Por isso, você precisa viver. Entende, menino? Viva.
Antes que o menino pudesse responder, o som de carroças cortou a calmaria da aurora. A luz aos poucos se mostrava mais forte, mas tudo ficou subitamente mais sombrio. Era o som não apenas de carroças, mas de botas pesadas marchando. Armas e armaduras emitindo uma cacofonia de ruídos agudos como uma orquestra desafinada.
Então, o menino começou a sentir seu coração bater mais rápido. Era a poeira, rastejando sob os pés de soldados.
Todo o vilarejo pareceu ficar paralisado. Os comerciantes que iniciavam suas tarefas, os aldeões comuns que saíam de suas casas após o desjejum e até mesmo os animais de tração entraram em uma estase. Ninguém quis se mexer ou emitir ruídos.
Foi assim por alguns minutos e quando Jiten finalmente viu o porquê, sentiu o desconforto se transformar em náuseas, mas não deixou aquilo transparecer.
Era um espetáculo assustador. A primeira das carroças estava carregada pelas cabeças decapitadas de dezenas de homens. Cabelos longos grudados por sangue seco aos rostos inchados pelo processo de decomposição. Era possível ver olhos abertos, mas estavam vazios e descoloridos.
Jiten soube então. Eram kumokais rebeldes. Eles haviam sido decapitador por ondem do lorde Sanghun. Agora, após a morte, o que eram guerreiros símbolos de honra se tornaram lembretes da vingança do poder que imperava.
O menino havia escutado sobre alguns guerreiros de Oradobuk, a região norte, que haviam se unido e atendado para a retomada de Sanghun. Consideravam aquele assentamento uma imposição injusta do Imperador.
Uma vez que não podiam lutar diretamente contra o Imperador, decidiram então por confrontar o Clã Sanghun. A batalha havia acontecido já há alguns dias, mas a população pouquíssimo havia escutado sobre o resultado. Agora, podiam ver com os próprios olhos.
As carroças atrás vinham empilhadas com os corpos dos derrotados. O odor nauseabundo criava uma aura agonizante pelas ruas. Aqueles que se recusavam a ver o espetáculo, não poderiam prender a respiração por tempo suficiente para não sentir o fedor.
A procissão dos soldados vitoriosos acabaria na praça principal e notadamente muitos camponeses iriam para lá, para prestigiar o lorde vitorioso e cuspir sobre os corpos dos vencidos.
O silêncio que ficou após a passagem das carroças era tão difícil de se ignorar quanto o cheiro.
Jiten viria entender naquele momento o poder de uma terceira linha. A violência e a brutalidade de assistir o que um homem pode fazer a outro. No dia que sua família morreu, aquilo se cristalizou em um trauma em sua mente.
Agora, compreendia que a violência é uma linha que liga os homens. Aqueles que governam detém a devida linha sanguínea. Aqueles que são lembrados possuem uma linha que traça memórias de seu legado.
Viver não era algo passivo. A vida não é algo que ocorre. Estar vivo dizia uma coisa. Em Bushimusuko sob o Clã Sanghun, viver era um ato político. Até o momento, mais efetivo do que pegar em armas.