Capítulo 9 — O Flagelo Invisível
O poder reside na obediência. Esse é o segredo dos poderosos.
Jiten sabia que devia obedecer, permanecer quieto e aguardar seu destino. Podia sentir seu coração acelerado, o sangue pulsando no pescoço e os olhos ressecados enquanto ele se recusava a piscar. Seus olhos ardiam, inundados pelo vermelho intenso do ambiente.
O lorde emanava uma aura capaz de causar um profundo medo em qualquer um que soubesse seu lugar na hierarquia. Cada segundo que passava, diante de sua figura opressiva, Jiten entendia mais qual era o lugar que ele foi destinado a viver.
Imaginou que seria estrangulado ou que teria seu pescoço quebrado facilmente como sua ovelha. Não era tão diferente dela como poderia ter pensado ao longo de sua vida. Um amontoado de carne, ossos e sangue, tentando continuar respirando.
Alguma coisa fundo em seu coração entendeu o quanto ele era vulnerável. Alguma coisa entendeu o quanto era descartável sua vida.
Nobu, o conselheiro do lorde, se aproximou. Diferente do senhor, seus passos eram sorrateiros, silenciosos e abafados pelo couro macio de seus sapatos.
O lorde se afastou e deixou o assunto para seu conselheiro.
— Está me ouvindo, garoto? — Nobu o chamou com uma voz baixa. Talvez tivesse dito algo antes e Jiten simplesmente não escutou.
De perto, via que nos olhos negros do conselheiro suas pupilas eram tingidas por uma coloração âmbar que lhe dava um aspecto quase animalesco.
Alguma profunda manifestação de poder que o rapaz era incapaz de entender. Como todos os estandartes, as armaduras, as máscaras e as armas, aquilo era um sinal de classe, um sinal de que o conselheiro estava tão infinitamente acima dele que mesmo seu corpo era diferente.
O conhecimento estampado como uma manifestação pura de poder.
— Nesse mundo todos cumprem suas funções. Cabe a nós encontrar nosso lugar no mundo. Nossa função. — Nobu curvou seu corpo até seu rosto estar próximo do de Jiten. — Camponeses, como você, precisam encontrar seu lugar no mundo através da submissão.
Jiten não conseguia entender. Que tipo de submissão seria suficiente para que um homem daquela classe se desse por satisfeito. O quanto ele tinha que extrair mais dele.
Não dele. Jiten não era uma pessoa para o lorde. Ele era um camponês. Não era diferente de uma ovelha. Não era julgado por quem podia ser ou por sua história, mas pelo trabalho capaz de exercer. Era julgado pelo alimento que sua carne podia fornecer.
Então, quando entendeu. Veio a dor.
Uma dor profunda, que vinha debaixo da carne. Seus olhos se arregalaram de imediato, o coração acelerando tanto que o peito se tornou mais pesado, como se alguém o comprimisse. Podia sentir uma ardência por sob a pele, misturada a fisgadas de dentro para fora.
Ninguém o tocava. Alguma outra coisa estava acontecendo.
Os olhos do conselheiro Nobu reluziam, quase sobrenaturais. Jiten se agarrou ao tecido da calça do homem, mas ele o repeliu com um único golpe com as costas da mão. Seu rosto ardeu por completo no lugar em que foi atingido e mesmo que tentasse largar o tecido, seus dedos já não lhe obedeciam.
Os músculos das costas simplesmente já não se moviam para retirá-lo de onde estava. Manteve-se curvado, pois não havia outra escolha e logo sua postura foi aos poucos desmontando. Foi caindo com o corpo endurecido.
Conseguia escutar sua própria respiração errática, o ar raspando a garganta que tentava se fechar. Ele respirava com força na esperança de conseguir mantê-la aberta.
Não demorou para que o controle sobre o diafragma também desvanecesse. A mera intenção de um movimento doía como uma faca sendo torcida entre os músculos. Não conseguia entender o que acontecia, mas seu rosto pousou sobre o chão gelado.
Sua respiração enfraqueceu, a ponto que tudo que restava era um medo permanente e incontornável. Em algum momento deveria ter sujado as calças, pois quando o som da respiração diminuiu, percebeu as risadas daqueles ao redor.
Não havia estratégia de respiração ou de movimento que pudesse o salvar. A dor era absoluta, a ponto que podia imaginar que àquela altura sua carne por inteiro já estaria se esfacelando.
Agora, de onde seu rosto estava, só podia enxergar o nobilíssimo couro da bota de seu torturador e uma escadaria tão infinitamente alta que o homem acima dela podia decidir sobre sua vida e morte.
— A dor que sente é apenas uma fração do que eu posso infringir. — Nobu disse e a voz dele pareceu advir do fundo de um lago. — Seria um desperdício gastar mais energia do que isso para punir um camponês. O que estou fazendo já é esforço demais.
O quão inferior alguém precisa ser para não merecer nem mesmo a dor.
A mente de Jiten estava começando a cair em uma espécie de torpor. Não havia nenhum raciocínio possível. Seu corpo nunca havia sido submetido a uma agonia pura como aquela. Mesmo sob aquela força, nem mesmo a raiva surgia, só havia medo.
— Agradeça.
Jiten pôde se lembrar de seu mentor Renji. Sua revolta silenciosa. Seu eterno aguardo pela mudança. Sentiu-se mais afastado dele naquele momento do que em qualquer outro. Nem mesmo o silêncio absoluto seria capaz de quebrar a cacofonia daquele flagelo invisível.
As lembranças vinham em sua mente como lampejos. Podia se lembrar das dezenas de cabeças arrancadas dos kumokais executados. O sangue seco nos rostos dos derrotados. A morte era um exemplo, não um fim, mas o meio para a disciplina.
A dor que sentia era igualmente uma lição. Muito mais humilhante do que a morte, mas mesmo assim um espetáculo. Espetáculo este que não era performado ali para atemorizar os mais pobres, mas para divertir os poderosos.
Podia se lembrar dos outros moradores daquela vila. Como tinham medo. As pessoas sempre olhavam por cima dos ombros, permanentemente assombradas pela fortaleza sobre a colina. As estátuas em cada rua como um lembrete de que um senhor estava sobre elas.
A dor aumentou.
— Eu disse para agradecer.
Jiten sentiu o aperto ao redor em seu rosto e a rigidez em sua garganta diminuir. Ainda assim, os músculos do dorso pareciam se retorcer, em suas costas e em seus braços. Não sabia como, mas o conselheiro tinha um poder extraordinário sobre sua fisiologia.
Era como se o pudesse mover como um fantoche.
Mesmo assim, o conselheiro queria que as palavras partissem dele. Jiten sentiu que podia tentar dizer alguma coisa, mas mesmo assim ainda não tentou. Em meio a toda aquela dor, um resquício de orgulho o segurava.
Começou a sentir como se um líquido fervente descesse por sua coluna. Anormalmente contrariando até mesmo as leis naturais. As risadas ficaram mais distantes, a visão mais turva e escura.
Não entendia como ele era capaz de resistir. O orgulho que o segurava pesava tanto mais que uma âncora de aço puro.
— Agradeça ou morra.
Era a terceira vez. Jiten se perdeu na dor. Queria que lhe arrancassem logo a pele e a carne. Que vaporizassem logo seus ossos para que a dor acabasse. Ela apenas crescia, muito além do que ele podia imaginar que seria possível.
— O-o… — começou, mexendo os lábios que resistiam aos movimentos. — O-o…briga… do…
Sua voz saiu tão alta quanto um sopro. Não sabia nem mesmo se os movimento de sua boca foram corretos. Naquelas palavras não estava obedecendo ao conselheiro, mas sim a seu mestre Renji
Pensou nas palavras dele, naquele dia na praça sob a parca luz do sol. Quando viu os cadáveres dos maiores guerreiros de seu povo.
Precisava viver.
Assim, as risadas ficaram mais distantes. O vermelho se misturou ao negro. Até que ficou somente a dor.