Conto: Li Wang

    Li Wang correu até o estábulo, também conhecido como dormitório das famílias Huang e Wang, a linhagem de concubinas de Nie Xingjiao Qing. O lugar ficava do lado de fora do templo e, no instante em que começou a atravessar o pátio, a chuva desabou sem aviso. Arrancou o vestido e o usou para proteger os pães, abraçando-os contra o peito enquanto corria sob a tempestade. Pensava em como acordaria todos… talvez sorrindo, ou apenas sussurrando. O importante era que, pela primeira vez em dias, teriam algo para comer.

    Ao chegar, encontrou o lugar mergulhado em penumbra. Seis lamparinas pendiam dos pilares, mas apenas três ainda ardiam, lançando sombras distorcidas pelas paredes. Mesmo com a luz fraca, Li Wang percebeu que ninguém dormia. Estavam todos deitados em camas de palha úmidas, com as mãos sobre os estômagos vazios, tremendo. Alguns murmuravam coisas incompreensíveis. Não sabia se era a fome ou o frio que os mantinha acordados, provavelmente os dois. As goteiras aumentavam a cada minuto, transformando o chão em um mar de lama. Pequenos roedores corriam pelas vigas. O ar cheirava a mofo, suor e desesperança.

    Ela andou devagar, cuidando para não escorregar. Quando se aproximou de uma das lamparinas acesas, sua mãe, Li-Wei Wang, surgiu repentinamente da escuridão e correu até ela. Os olhos de Li-Wei estavam arregalados, não de alívio, mas de algo próximo ao pavor.

    — O que é isso nas suas mãos?! Onde você estava?! Por que está nua?! — gritou, a voz trêmula, à beira do choro.

    Li Wang sorriu, ainda sem entender a gravidade, e respondeu com alegria:

    — São pães! O senhor Yu me deu… ele pediu para trazer e dividir com vocês.

    Não houve tempo para mais nada. Um tapa violento acertou o rosto da menina, lançando-a contra o chão lamacento. Os pães, que havia carregado com tanto cuidado, agora estavam imundos, afundados na sujeira. Atordoada, Li Wang ouviu um zumbido preencher os ouvidos. As luzes dançavam diante de seus olhos. E então, aos poucos, a voz da mãe emergiu do torpor: irritada, chorosa, inconsolável.

    — Garota idiota! Você sabe o que acabou de fazer?! Havia apenas UMA regra: NÃO chegar perto da família principal! E o que você faz?! Vai direto ao filho mais importante deles! O que estava pensando?!

    As palavras vinham como punhais. Li Wang chorava, confusa, assustada, tremendo da cabeça aos pés. A dor não vinha apenas do tapa, mas da certeza de que, por alguma razão que ainda não compreendia, havia feito tudo errado.

    — Desculpa, mãe… eu não quis… — balbuciou entre lágrimas, tentando se encolher contra o frio, contra a lama… contra ela.

    — Ah! Agora tudo está resolvido. Você já pediu desculpas. Ótimo! Todos os problemas do mundo foram solucionados — disse Li-Wei, rindo de forma amarga, os olhos acesos pelo desprezo.

    Começou a andar de um lado para o outro, como se buscasse desesperadamente uma punição à altura da transgressão da filha. De repente, seus olhos encontraram uma pá encostada no canto — usada para recolher fezes dos cavalos que viviam com elas naquele estábulo imundo. Sem hesitar, pegou-a.

    — M-Mãe?! O que você vai fazer?! — perguntou Li Wang, a voz embargada, arrastando o corpo pela lama, tentando se afastar.

    Então percebeu que todos estavam olhando para ela. Seus irmãos. Os filhos da família Huang. Um por um se levantaram de seus leitos miseráveis. Nenhum se aproximou. Nenhum estendeu a mão. Apenas observavam. Não havia surpresa nos olhares… apenas julgamento. Como se já soubessem que aquilo iria acontecer. Como se, de alguma forma, estivessem torcendo para que acontecesse.

    — Só tenho desgosto, vergonha, aborrecimento, importunação… e nojo de você — disse a mãe, olhando-a como se fosse algo podre, algo que precisava ser apagado.

    Aquela última palavra — “nojo” — atravessou Li Wang como uma lâmina. Ela parou de se arrastar. Congelou. E então os chutes começaram. Duros, pesados, violentos. Li Wang se contorcia na lama misturada às fezes dos animais, sem ar, sem voz, quase sem pensamento. Apenas dor. E os rostos. Aqueles rostos a observando com o mesmo olhar que se lança a um espetáculo grotesco.

    E mesmo com tudo aquilo… mesmo com o corpo encharcado de lama, os pulmões implorando por ar e o sangue latejando nos ouvidos… nada doía mais do que as palavras:

    — Eu sabia que deveria ter te abortado. Ou apenas ter deixado seu pai te matar quando você nasceu.

    Li Wang viu quando a mãe ergueu a pá, como se o mundo ao redor tivesse se tornado silêncio. Ela fechou os olhos. Era o fim. E, mesmo sem entender por quê… não chorou. Apenas esperou. Não por medo. Mas porque… talvez… a mãe estivesse certa.

    O som foi alto. Um estalo metálico. Algo pesado atingiu algo sólido. Mas não foi Li Wang. Ela sentiu o baque… e o vazio. Quando abriu os olhos, havia alguém à sua frente. Alguém que bloqueava a visão daquela mulher… e da pá.

    Yu.

    Seu braço direito havia interceptado o golpe. A lâmina da pá atingiu seu osso, mas ele sequer pareceu se importar.

    — Você está bem, Li? — perguntou, como se o mundo não estivesse desabando. Como se tudo o que importasse fosse a resposta de Li Wang.

    — Chegamos — anunciou o piloto, despertando Li Wang do devaneio.

    Dayse, ainda com o semblante carregado de tristeza, voltou-se para ela:

    — Li, Nathan disse que ficar com essa criança nos tornaria inimigas do mundo. Ainda não sei até onde podemos acreditar nele, por isso… vou reunir informações. Você pode alimentar o Henry nesse tempo?

    — Claro… mas você vai ficar bem sozinha? — perguntou Li, preocupada.

    — Não precisa se preocupar. Aliás, ainda não sabemos do que aqueles assassinos são capazes… então leve seu pai para um lugar seguro.

    No instante seguinte, Dayse começou a caminhar na direção oposta. Antes que se afastasse demais, Li correu até ela, segurou-lhe o braço e, em silêncio, a abraçou com força, um gesto sincero, carregado de gratidão.

    — Obrigada por tudo, Dayse — disse, com a voz embargada.

    Dayse apenas assentiu, sem palavras, e seguiu seu caminho.

    Li alimentou Henry com calma e preparou uma bolsa com suprimentos para ele. Depois, passou em sua casa e pegou alguns itens para autodefesa — uma arma, uma faca, um colete — antes de seguir até a casa do pai, Edward Oscar, com a intenção de levá-lo a um local seguro, como Dayse sugerira.

    Entretanto, ao chegar em frente à casa, notou algo errado. A porta estava arrebentada. O coração disparou.

    Li caiu de joelhos, o corpo imóvel ao lado do pai. O sangue ao redor parecia ter engolido o chão, como se o mundo tivesse parado de girar ali. O silêncio da casa agora era um grito ensurdecedor, sufocante, impossível de ignorar.

    As mãos dela tremiam enquanto tocavam o rosto inerte de Edward. Ele ainda estava quente. O sangue ainda escorria. Aquilo havia acontecido há pouco… mas já era tarde demais.

    As lembranças a atingiram como um raio.

    Logo após despertar naquela cama de hospital, ainda fraca e coberta de feridas, ela o viu. A porta se abriu e um homem entrou, acompanhado por uma mulher que traduzia suas palavras com suavidade.

    — Eu me chamo Edward Oscar. Sou um médico voluntário, vim do Reino Unido. Te encontrei à beira da morte, numa floresta. Você pode me dizer o que aconteceu?

    Naquela época, Li não conseguiu responder. As palavras estavam presas, esmagadas por uma dor que ela mal compreendia.

    Yu havia morrido. E mesmo assim, nem uma lágrima escapou quando soube da notícia. Não chorou. Não gritou. Não desmoronou. Ficou apenas… vazia. Como se a alma tivesse fugido, deixando para trás apenas a casca.

    Sem ver mais razão para continuar, subiu até a cobertura do hospital. Caminhou até a beirada, os pés descalços sobre a borda gelada, sentindo o vento cortante contra o rosto. O céu estava nublado, pesado, como se lamentasse com ela.

    Ninguém a seguiu. Ninguém a chamou.

    “Se eu sumir agora… ninguém vai sentir falta.” — pensou.

    E então, pulou.

    Mas não caiu.

    Com os braços trêmulos e urgentes, Edward a puxava de volta no último instante.

    Com o rosto banhado em desespero, ele a envolveu num abraço tão forte quanto a vida. Um abraço que dizia: “Você importa.”

    — Não faça isso… — ele dizia, entre soluços. — Sua morte não trará alegria ao seu irmão. Ele já se foi, mas você ainda pode viver… viva por você, por tudo que ele não pôde viver. Brinque. Corra. Se apaixone. As coisas não precisam acabar aqui… não agora.

    Li não compreendia suas palavras. Não falava inglês. Mas entendeu cada sentimento. Cada lágrima sobre sua cabeça, cada tremor no corpo que a segurava, diziam mais do que qualquer idioma.

    Ela chorou. Chorou como jamais havia permitido. Não por dor, mas porque havia alguém que ficaria devastado se ela desaparecesse. E isso foi suficiente para fazê-la escolher viver. E permaneceu ali, nos braços daquele estranho que, pela primeira vez, a tratava como alguém digna de ser amada. Gritou. Chorou. Mas não levantou os olhos para ver o rosto dele.

    — Prometi que iria protegê-lo. Eu imploro… não me deixe sozinha — sussurrou, de volta ao presente, com a testa pressionada contra o peito frio de Edward.

    Ela se lembrava do dia seguinte, ainda no hospital:

    — Li, amanhã voltarei ao Reino Unido. Você gostaria de vir comigo? Tenho um filho um pouco mais velho que você. Acredito que irão se dar bem.

    — Sim!… Por favor! — respondeu entre soluços e sorrisos.

    Ela não sabia se chorava de alívio ou ria de felicidade. Acabou fazendo os dois ao mesmo tempo. Porque, mesmo depois de tanta tragédia, havia encontrado um anjo. Uma luz no fim do túnel. Uma esperança chamada Edward Oscar.

    Naquele momento, prometeu a si mesma: protegeria aquele homem com a própria vida, se fosse preciso.

    De volta ao agora, Li já sabia. Já era tarde. O coração de seu pai não batia mais.

    Ela encarava o rosto pálido de Edward. Os dedos passaram por seus cabelos brancos, agora sujos de sangue.

    A lembrança veio, como um sussurro doce:

    — Pai… por que o senhor correu comigo esta manhã?

    — Falei que iria te apoiar, não disse?! — Edward dizia, sorrindo.

    Li não conteve o sorriso naquele dia. Ter alguém para chamar de pai era algo que jamais havia imaginado.

    — Obrigada, papai…

    E agora, ajoelhada ao lado do corpo inerte, envolta por sangue e dor, ela apenas sussurrou:

    — Pai…

    Toda a angústia, tristeza e impotência afloraram. Abraçou o corpo dele com cuidado, como se ainda pudesse protegê-lo do frio da morte. E então, com a voz trêmula e baixa, começou a cantarolar.

    Era Yesterday, uma das canções preferidas dele.

    Ela cantou para o pai. Tentando não chorar. Porque sabia que, se ele ainda estivesse vivo, cantaria junto com ela.

    — Pai… sinto sua falta… — A voz falhava.

    As lágrimas caíram. Uma a uma. Silenciosas e devastadoras.

    — Me desculpe… eu não consegui terminar sua canção… O eco de “Yesterday” misturou-se ao próprio silêncio da manhã, e Li Wang chorou, por fim, todas as lágrimas que a dor e a culpa haviam guardado ao longo dos anos.

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