Conto: William

    O cheiro de sal e ferrugem pairava no ar, denso e constante como os pensamentos que assombravam William. Sentado na beirada do cais, com as pernas penduradas sobre a água escura, ele girava a garrafa entre os dedos, devagar. O rótulo estava desfeito pela umidade, e o líquido quase no fim. Diante dele, balançando suavemente ao ritmo da maré, estava seu velho barco. O mesmo que, há uma semana, havia sido refúgio para duas mulheres e uma criança em fuga.

    Sete dias desde que Li Wang e Dayse deixaram o Japão. Sete dias desde que William prometera a si mesmo que iria se tornar alguém melhor, que aquilo era só mais uma missão, só mais um transporte clandestino em meio a tantos outros. E, mesmo assim, ali estava ele, voltando ao mesmo ponto todos os dias, encarando o mar, como se pudesse encontrar algum tipo de resposta nas ondas que vinham e iam.

    Bebeu um gole. O álcool queimou a garganta, mas não o suficiente para apagar as lembranças.

    “William, o inútil.”

    O apelido ecoou como uma âncora puxando seu peito para o fundo. Ouviu aquele nome por tanto tempo que, em algum momento, passou a aceitá-lo como verdade. Nunca foi o mais bonito. Nunca foi o mais inteligente. Desenhar? Péssimo. Esportes? Um desastre. Música? Nem pensar. E dançar? Uma piada.

    Enquanto isso, Dayse, sua irmã mais nova, era a perfeição encarnada. Os professores elogiavam sua maturidade, os vizinhos comentavam sua beleza, os parentes exaltavam sua inteligência. Até os estranhos se encantavam com sua presença. E William? William era o garoto que vivia à sombra dela. Sempre ofuscado. Sempre sendo lembrado por aquilo que não era.

    Lembrava-se das tentativas desesperadas de chamar atenção. Trabalhos escolares feitos com esforço redobrado, desenhos repetidos até doer a mão, provas estudadas madrugada adentro. Mas os elogios? Nunca vieram. Sempre havia um “Você devia aprender com sua irmã”.

    E ele tentou. Tentou ser alguém à altura da irmã. Mas cada tentativa terminava com a mesma sensação amarga: a de que nunca seria o suficiente.

    O som do mar ainda preenchia tudo ao redor quando uma voz calma, quase serena demais para aquele lugar, cortou o ar.

    — Ainda está aqui, William?

    Ele não precisou olhar. Conhecia aquele timbre. A presença era inconfundível, como uma brisa que vinha de dentro dele mesmo, mexendo em lembranças que preferia esquecer. Ainda assim, virou o rosto, cabisbaixo. E ali estava ele.

    O Profeta.

    Vestia o mesmo sobretudo branco de sempre, calças igualmente pálidas e uma faixa cobrindo os olhos, como se enxergasse além do que os olhos podiam ver. Não havia marcas de tempo em seu rosto, nem sinais de poeira, nem mesmo respingos de água. Parecia fora da realidade, como se não pertencesse ao mundo. Ou talvez fosse apenas uma ilusão criada por sua mente exausta, uma tentativa de se redimir, de buscar alguma melhora.

    — Você deveria ter ido com elas — continuou o Profeta, com a calma de quem anuncia a previsão da chuva. — Seu destino não é o cais, William.

    William soltou um suspiro, passando a mão pelo rosto. Os dedos tremiam.

    — Eu não sei nem o que isso quer dizer — respondeu, tentando soar firme. — Tudo que sei é que estou cansado.

    O Profeta se aproximou, passos leves, quase inaudíveis sobre a madeira gasta.

    — Você precisa guiá-los. A mulher e o garoto. Sem você, eles não alcançarão o que está escrito.

    Houve uma pausa breve.

    William ia retrucar, mas congelou. Porque, por um instante, viu-a.

    Sentada ao seu lado, vislumbrando o mar, como se sempre estivesse ali. O rosto suave, o sorriso triste. Sua falecida esposa.

    E com ela… a memória voltou.

    O mar estava mais violento naquela noite. As ondas batiam com raiva contra o casco do barco, mas ele não se importava. Já fazia dias que estava à deriva, perdido em algum ponto esquecido do oceano. Sem rumo, sem comida, apenas bebida. O mundo havia desmoronado. Ele havia enterrado a esposa, a filha, e por fim, a mãe. Cada vez, um pedaço de si indo junto com a pá de terra.

    Ele não chorava mais. Não sentia nada. O mar era o último consolo, e até mesmo ele parecia querer jogá-lo fora.

    Foi então que ele apareceu.

    Do nada, no convés do barco. Um jovem adulto, roupas brancas como fantasmas, olhos cobertos, pés secos como se tivesse acabado de sair de um santuário, não de uma tempestade.

    William achou que estava delirando.

    — Me chamo Profeta. Sou o avatar das deusas antecipadoras. Tenho o dever de guiar os incitadores da guerra a seus devidos futuros.

    Ele não disse nada. Apenas o ignorou. Pensou que estava enlouquecendo. Mas o homem falava com uma clareza absurda.

    — Seu pai se matou esta manhã. — O tom de sua voz era triste e angustiante.

    William não reagiu. Não sabia se era verdade. Apenas olhou para o nada, engolindo mais um gole da garrafa.

    — Você perdeu tudo — disse o Profeta. — Mas ainda há algo esperando por você. Um caminho. Um propósito.

    William riu. Um riso sem humor, vazio.

    — Propósito? Eu sou um erro, caralho — xingou, como se expusesse, enfim, uma parte dos sentimentos sufocados pelo álcool.

    — Então vá até o Japão — disse o Profeta, ignorando a ironia. — Lá você encontrará a peça que falta. E, no fim, encontrará a paz que tanto almeja.

    Foram aquelas palavras que o moveram. Não por fé. Mas por exaustão. Por desespero.

    De volta ao presente, William estava outra vez à deriva. Só que, dessa vez, em terra firme.

    Olhou para o lado. Sua esposa havia sumido. Apenas o Profeta permanecia ali, imóvel.

    — E se eu falhar? — perguntou.

    O Profeta sorriu, suave.

    — Então falhe tentando. Mas não negue seu caminho.

    William olhou para o mar. Depois para o céu. E por fim, para o barco.

    Engoliu em seco.

    A garrafa escorregou das mãos, caindo no mar com um som abafado.

    o Profeta estendeu algo, em silêncio.

    Um jornal.

    William o pegou com as mãos trêmulas, ainda sem entender. Desdobrou-o devagar, o cheiro de papel úmido invadindo suas narinas. O título principal, em letras garrafais, ocupava metade da primeira página:

    “Parlamento Japonês Decide: Quem Será o Próximo Primeiro-Ministro?”

    Abaixo, uma matéria menor, mas com muito mais peso para William:

    “Ex-agente da ONU, Li Wang, é acusada de matar Edward Oscar e fugir com uma criança. ONU emite alerta vermelho.”

    William sentiu como se o chão tivesse desaparecido sob seus pés.

    O nome de Li Wang. Estampado como se fosse o de uma criminosa comum.

    O Profeta falou, com a voz suave, mas firme:

    — Elas precisam de você, William. Agora mais do que nunca.

    William manteve os olhos fixos nas palavras do jornal, mas por dentro, já não lia mais nada.

    O silêncio entre ele e o Profeta pesava. Nenhum som vinha além das ondas e do sutil rangido das tábuas do cais. E mesmo assim, parecia que o mundo inteiro respirava junto com ele.

    William fechou o jornal, dobrando-o com cuidado. Não para guardá-lo, mas como se fechasse uma porta dentro de si.

    — E se eu não conseguir? — perguntou mais uma vez, quase num sussurro. Não era uma dúvida. Era um desabafo.

    O Profeta não se mexeu, mas sua presença parecia mais próxima.
    — Então falhe tentando — disse ele, sem hesitação. — Mas caminhe. Porque o erro não está em cair… está em permanecer parado.

    William olhou para o barco, depois para o horizonte.

    William continuava sentado no cais, o jornal esquecido ao lado.

    A presença do Profeta já não o incomodava, ou talvez tivesse se acostumado à ideia de que certas figuras aparecem quando a alma está prestes a naufragar.

    Mas não era o Profeta que William enxergava agora. Era ela.

    Viollet.

    Sentada ao seu lado como tantas vezes estivera, com aquele sorriso calmo que parecia desafiar a dor do mundo inteiro.

    E então, como se puxado por um redemoinho dentro de si, ele foi lançado ao passado.

    Desde que William conheceu Viollet, ela o protegeu de quem o tratava mal. Mesmo sendo muito jovem, ela enxergava nele algo que ninguém mais parecia notar, talvez uma doçura enterrada sob camadas de uma mente cansada. William já estava exausto das pessoas, cansado de tentar se encaixar num mundo que o empurrava para fora, dia após dia. Mas Viollet foi diferente.

    Ela não queria que ele mudasse. Não queria que ele fosse forte, nem engraçado, nem admirado. Ela só queria que ele estivesse ali. Presente. Do jeito que era.

    E o fazia prometer todos os dias:
    — Fala comigo, William. Mesmo quando tudo parecer errado. Mesmo quando tudo doer. Fala comigo.

    Ele prometia. E esquecia.
    Mas ela sempre o fazia lembrar.

    Naquele dia, estavam sentados em um pequeno muro de pedras, com os pés balançando no vazio, o céu azul acima deles como uma pintura viva.

    — Will, como você se imagina daqui a dez anos? — ela perguntou com gentileza.

    — Dez anos?! Não sei, isso é muito tempo… velho, talvez? — ele respondeu, com desdém.

    Ele não tinha nenhuma intenção de continuar vivendo. Para ele, o futuro era apenas uma ideia vazia.

    — Você é realmente um pateta… — ela suspirou, balançando a cabeça. — Will, olha esse imenso céu azul.

    — O que tem ele?

    — É realmente lindo, não é?

    — Hum? É apenas o céu. O que tem de tão especial?

    — Já parou pra pensar que talvez sejamos apenas formigas diante da imensidão que é o universo?

    — Onde você quer chegar com isso?

    — Nossa, como você é chato! O que quero dizer é que nossas vidas são curtas. Não há garantia do que há depois da morte. Então… eu acredito que deveríamos aproveitar o máximo possível.

    — Tá falando de uma busca pela felicidade?

    — Não! Isso é muito cansativo.

    — Então o que você sugere?!

    Ela fez uma pausa. Olhou o céu, como se buscasse lá a resposta.

    — Que tal… uma fuga da infelicidade?

    — Não é a mesma coisa?

    — Com certeza não!

    — Qual garantia você tem de que vai conseguir fugir da infelicidade?

    — Nenhuma.

    — Então?

    — Acredito que, quando estamos fugindo da infelicidade… de certa forma, já estamos sendo felizes, não?

    William franziu a testa.

    — Você é muito maluca. Tudo que você falou até agora é só besteira.

    — Besteira?! — ela repetiu, ofendida.

    — Sim. Você não falou nada com nada.

    — Sério?! Mas eu sei de algo que me deixa feliz por bastante tempo.

    Ele arqueou uma sobrancelha.

    — Tá. O que tem de mais nisso?

    — Isso é a prova de que estou fugindo da infelicidade. Prova de que tudo que eu disse até agora… é verídico.

    Ela se aproximou dele devagar. Sua respiração era leve, mas um pouco acelerada. Olhou fundo nos olhos dele. E então, sem dizer mais nada, o beijou.

    Os lábios dela eram suaves, o beijo doce. William não resistiu. Seus braços quase envolveram o corpo pequeno e frágil dela. Por um instante, sentiu o coração acelerar. A paz o invadiu como uma brisa quente num dia de inverno.

    Mas então… algo o puxou de volta.

    “O que você está fazendo? Não percebe o quão ridículo está sendo? Desgraçar sua própria vida não é o suficiente? Quer arrastar essa garota com você?”

    Aquela voz… sua própria voz, o alertando. O alertando como uma lâmina fria. Ele hesitou. Não conseguiu abraçá-la.

    Não conseguiu.

    O vento voltou a soprar no cais. William piscou lentamente, os olhos úmidos, não sabia se por álcool ou saudade.

    O Profeta continuava ali, silencioso.

    — A dor só se transforma quando você se move, William — disse ele, com a voz suave. — Elas precisam de você. A escolha é sua.

    Mas William não respondeu. Só abaixou a cabeça e murmurou, como se falasse com alguém que não estava mais ali:

    — Você dizia que fugir da infelicidade era o suficiente… Mas e quando a infelicidade te persegue até nos sonhos?

    E ficou ali, só.

    Com o céu azul acima de si, e um beijo que nunca mais pôde esquecer.

    O Profeta permaneceu imóvel, encarando William como quem vê além da carne, como quem enxerga o peso da alma. Ele não repetiu o pedido. Não pressionou. Apenas esperou.

    William continuava em silêncio, o olhar perdido no horizonte, onde céu e mar se confundiam.

    Seu peito ardia, não de raiva, nem de medo. Era aquela dor antiga, silenciosa, que ele aprendeu a ignorar, mas que nunca o deixou. E agora ela parecia… se mover. Ganhar forma.

    Ele pegou o jornal amassado ao seu lado. Leu mais uma vez o nome de Li Wang, agora marcado como traidora. Uma fugitiva. Uma ameaça.

    A mesma mulher que enfrentou o inferno para proteger alguém.

    A mesma que perdeu tudo, como ele.
    A mesma que carregava nos olhos o mesmo tipo de dor.
    E Dayse…
    Sua irmã.
    A única pessoa que, apesar de tudo, ainda acreditava que ele podia fazer algo certo.

    William não disse nada.

    Mas o modo como se levantou, devagar, como quem carrega correntes, mas ainda assim decidido. Foi suficiente.

    O Profeta deu um leve sorriso, quase imperceptível.

    Virou-se e desapareceu da mesma forma que surgiu: silencioso, sem passos, como se fosse feito de bruma.

    William permaneceu ali por um instante. O vento soprava seus cabelos desalinhados, e o casaco gasto balançava com o ar salgado do cais.
    O céu começava a mudar de cor, os tons de azul cedendo espaço a um laranja suave do entardecer.

    Ele olhou para o lado.

    E lá estava ela.

    Viollet.

    Não como uma aparição.
    Não como um fantasma.
    Mas como uma lembrança que doía bonito.

    Os olhos dela estavam pousados nele, cheios de ternura.

    William, com a voz rouca e trêmula, perguntou:
    — Eu estou… finalmente fazendo a escolha certa?

    Viollet não respondeu com palavras. Apenas sorriu — daquele jeito calmo que sempre teve — e assentiu devagar com a cabeça.

    William fechou os olhos.
    Pela primeira vez em anos, sentiu o peito respirar um pouco mais fundo.

    E então, sem dizer mais nada, começou a caminhar em direção ao seu barco.

    O velho navio que, por tanto tempo, foi sua fuga… agora seria o caminho.

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