Conto: Li Wang

    Dois anos se passaram desde que deixaram o Japão.
    Dois anos de batalhas silenciosas, noites mal dormidas e caminhos percorridos à margem do mundo.
    E, entre todos, Li Wang foi quem mais mudou.

    Agora, seus olhos já não carregavam a hesitação do passado. A dor ainda estava lá, talvez até mais viva, mas havia algo diferente em seu olhar: foco. Uma frieza controlada, quase cirúrgica. O tempo não a curou. A moldou.

    William juntou-se ao grupo no dia 15 de janeiro de 2000. Desde então, esteve ao lado de Li Wang em todas as operações. Ele não lutava, não empunhava armas, mas sempre estava lá quando a poeira baixava. Era ele quem retirava os sobreviventes dos escombros, carregava os feridos, amparava os mais fracos. Seu papel era silencioso, mas essencial.

    Li Wang, Dayse, William e o pequeno Henry atravessaram fronteiras, invadiram esconderijos, resgataram pessoas dadas como mortas. Cada missão era uma tentativa de salvar alguém, e, ao mesmo tempo, uma busca incessante por pistas sobre a morte de Edward Oscar.

    Dayse tornou-se o cérebro da equipe. Cuidava da logística, traçava rotas, analisava informações, mantinha Henry em segurança durante as incursões. Sua inteligência se tornara vital. Fazia tudo isso carregando, em silêncio, o peso de proteger não apenas o sobrinho de Li Wang, mas talvez, o próprio futuro.

    Li Wang era o corpo. A espada.
    Era ela quem entrava nos lugares mais perigosos, atravessando tiroteios, enfrentando gangues inteiras sozinha. Não havia piedade em seus movimentos, apenas eficiência. Ela matava sem hesitar, não por crueldade, mas por necessidade. Cada alvo abatido era uma ameaça a menos para os reféns. E cada vida salva era mais um passo em direção à redenção.

    Foi durante esse ciclo de sangue e esperança que ela recebeu um novo nome:
    Anjo da Salvação.

    — Um nome ridículo — costumava dizer, com desdém, sempre que o ouvia nas transmissões de rádio, nos jornais, nas pichações que encontravam pelas cidades.

    Mas ela sabia que era necessário. Um símbolo. Algo que, mesmo que mentiroso, desse às pessoas o que ela mesma perdera há muito tempo: esperança.

    E símbolos têm preço.

    Agora, sua cabeça valia trinta milhões de dólares.


    As gangues que cruzaram seu caminho estavam perdendo dinheiro, homens, territórios. E não iriam aceitar isso caladas.

    Mas o que mais a preocupava não era a recompensa pela sua cabeça.

    Era a de Henry.

    Nos últimos meses, “Vangeance”, como passaram a chamar o menino, se tornou um nome sussurrado com temor entre criminosos, militares desertores e até agentes infiltrados. Ninguém sabia exatamente o porquê, mas a recompensa por sua captura já ultrapassava os cinco bilhões de dólares.
    Vivo ou morto.

    A cifra falava por si: havia algo muito maior por trás.

    Henry, agora com dois anos, começava a dar os primeiros passos. Balbuciava palavras com dificuldade, ria com facilidade. Seus cabelos finos eram loiros como o sol. As bochechas rosadas lembravam as de um boneco de porcelana. Os olhos, azuis e vivos, eram quase uma cópia dos de Andrew.
    Era como se seu irmão estivesse ali, de novo, sorrindo para ela.

    Li Wang ainda não compreendia a origem da obsessão dos criminosos por Henry. Mas começava a suspeitar de algo que ia além do compreensível. Um segredo enterrado tão fundo que talvez nem Edward Oscar soubesse o suficiente para protegê-lo.

    E talvez… fosse esse segredo que colocaria o mundo inteiro em guerra.

    Foi Nathan quem fez o contato.
    Sua voz, sempre carregada de um humor estranho, veio pelo rádio com uma leve distorção — mas não o bastante para esconder a tensão por trás da notícia.

    — Encontrei alguém que vai te interessar, Li — disse ele, quase alegre demais.

    Ela não respondeu. Apenas escutou. Sabia que Nathan tinha seus próprios defeitos, mas, no fim, ainda era um aliado valioso.

    — Ele pode te levar ao assassino do seu pai.

    Li Wang manteve o silêncio por alguns segundos antes de perguntar:

    — Nome?

    — Barry Eric. Não temos muitos dados. Só sabemos que está ligado a dezenas de sequestros e execuções. E, agora, está em Nova York.

    E foi assim que, horas depois, ela desembarcou na cidade que nunca dorme.
    Mas, naquela noite, quem não dormiria seria Barry.

    Seguiu-o pelas vielas encharcadas de chuva até encontrá-lo saindo de um bar sofisticado demais para alguém com tanto sangue nas mãos. Estava sozinho, o que facilitou tudo.
    “Fácil. Fácil demais.” — Pensou ela.
    Tão fácil que Li Wang chegou a pensar ter capturado o homem errado.
    Mas ao puxar a gola da camisa dele, viu a tatuagem: uma cruz preta, marcada no lado esquerdo do pescoço. Exatamente como Nathan havia descrito.

    Agora, Barry Eric estava amarrado a uma cadeira de metal, em um quarto abafado e sem janelas. Suava, respirava com dificuldade. Ainda não compreendia o tamanho do erro que havia cometido.
    Li Wang o observava com desprezo, em silêncio.

    — Barry Eric. Nascido em dezembro de 1960, Boston. Filho de Mark Eric, diretor-executivo da transportadora Union a Light. Herdeiro único, mas seu pai acha que você ainda não está pronto pra assumir nada.
    Fez uma pausa, encarando o rosto pálido do homem.
    — Também sei sobre suas alergias, sua cor favorita, com quantos anos deu o primeiro beijo… até seu histórico de navegação.

    — O quê?! Como você me conhece?! — ele arregalou os olhos, tentando se soltar das cordas que prendiam seus pulsos.
    — Calma… não precisa se agitar. — disse ela, com um sorriso seco. — Só quero me divertir um pouco.

    — Bom… talvez seja mais divertido pra mim.

    Sem mais avisos, cravou a faca na coxa direita dele.
    O grito que se seguiu cortou o ar como uma lâmina invisível.

    — Pode gritar o quanto quiser — disse ela, girando lentamente o cabo da faca. — O quarto é à prova de som.

    — Dinheiro! Eu te dou dinheiro! O quanto quiser! — Barry implorou, olhos arregalados pelo pânico.

    — Tão inocente… — murmurou ela, girando a lâmina outra vez com crueldade contida.

    — PARA! PARA! PELO AMOR DE DEUS!

    Li Wang parou.

    — Quero respostas, Barry. Pode me ajudar com isso, né?

    — Sim! Tudo o que você quiser! Só… por favor… não me mata!

    — Isso sou eu quem decido. — respondeu, fria, impassível.

    Abaixou-se até ficar à altura dos olhos dele.

    — Onde estão as pessoas que você sequestrou?

    Ele hesitou. O suor escorria da testa, os olhos tremiam.

    — Eu… eu não posso. Se descobrirem, vão me matar…

    — Que pena. — disse, e empurrou a faca até o osso.

    Barry gritou de novo. A dor o fez estremecer inteiro. Estava à beira de desmaiar, mas Li Wang não permitiria.

    Com um movimento rápido, sacou uma seringa do bolso e injetou adrenalina na outra perna dele.

    — Ainda é cedo pra dormir. Vamos tentar de novo.

    — Estão… no cais… — ele balbuciou, zonzo. — No contêiner da Union a Light

    — Viu só? Não é tão difícil.

    Li Wang se levantou, girando levemente o pescoço como quem aquece os músculos para a próxima rodada.

    — Agora me diga: qual o nome da sua organização? E por que essa tatuagem?

    Apocalypses… é o nome. — disse ele, ofegante. — A tatuagem, eu… nem sei o motivo. Todos têm uma no lado esquerdo. Só os líderes… só eles marcam no lado direito.

    Ela ficou em silêncio por um momento.

    A organização chamada Apocalypses, é comandada por Yamamoto, isso não é nenhuma novidade. Mas, as tatuagens como marca, sequestros em série, conexões com a transportadora do pai dele…
    Nada disso era coincidência.

    — Nomes dos líderes?

    — São quatro… mas só sei o nome de dois: Yamamoto e Eleonor…

    — E outro membro? Tem localização?

    — Não sei… só ouvi dizer que vão atacar um cartel na Colômbia… de Connor Vaughn…

    — Quem é ele?

    — Um concorrente… drogas, armas, órgãos… gente.

    Li Wang puxou uma fotografia do bolso.
    — Reconhece esse homem? Foi quem matou meu pai.

    Barry arregalou os olhos. Começou a suar mais do que antes.

    — Não! Eu falei tudo! Você é da polícia, não é? Eles vão me matar por ter falado! Você tem que me proteger!

    Ela pegou a pistola e encaixou o silenciador com calma.

    — Fica tranquilo. Eles não vão te matar.

    Barry suspirou, aliviado.

    — Quem vai te matar sou eu.

    O disparo foi seco, direto.

    Barry Eric tombou com a cabeça para o lado, o sangue escorrendo pela cadeira.

    Li Wang limpou a lâmina da faca com um lenço branco e o deixou sobre o corpo.

    Ela não tremia. Não hesitava.
    A morte já não a afetava como antes.
    Agora, era só mais uma parte do caminho.

    E o caminho ainda era longo.

    Ao sair do local, Li Wang ligou imediatamente para Dayse.

    — Tudo saiu conforme o planejado? — perguntou Dayse do outro lado da linha.

    — Sim… quase tudo. Ele não era tão útil quanto o Nathan sugeriu.

    — Mas se me ligou agora, não foi só pra dizer isso, certo?

    — As pessoas sequestradas estão em um contêiner da Union a Light, no cais. O problema é que há dezenas deles por lá. Procurar um por um levaria tempo demais. Você pode fazer uma busca e me dizer quais são os mais prováveis?

    — Claro. Já estou começando.

    Li Wang e William seguiram imediatamente para o cais.

    Pouco depois, ela recebeu uma mensagem de Dayse com algumas possíveis localizações.

    O primeiro contêiner estava vazio.
    No segundo, encontraram o que procuravam.

    Cerca de sessenta pessoas amontoadas. A maioria, mulheres grávidas. O restante, crianças recém-nascidas. Todos em estado de desnutrição.

    No início, elas se assustaram.
    Devem ter achado que Li Wang era mais um dos monstros por trás daquilo.

    Mas, aos poucos, começaram a sair do contêiner. Ainda hesitantes. Algumas apertavam os filhos contra o peito. Outras protegiam a barriga com os braços, como se ainda esperassem o pior.

    — O homem que fez isso com vocês está morto.

    No instante em que pronunciou essas palavras, o choro de alívio se espalhou.

    Algumas sorriram entre lágrimas.
    Outras se abraçaram em silêncio, como se ainda não acreditassem que estavam livres.

    — Já chamei a polícia local. Estão vindo com médicos. — disse William, ajudando algumas mulheres fracas demais para saírem sozinhas.

    Li Wang observou em silêncio. Quando percebeu que não havia mais nada que pudesse fazer ali, começou a se afastar.

    Estava pronta para voltar, onde Dayse a esperava.

    Mas, antes que pudesse dar mais alguns passos, uma das mulheres grávidas segurou seu braço.

    — Como podemos agradecer por salvar nossas vidas? — ela perguntou, a voz embargada.

    Li Wang ficou em silêncio por um instante.
    Pensou em dizer “você não precisa me agradecer, apenas fiz o que era certo”.
    Mas essa, sem dúvida, era uma das frases mais clichês que alguém poderia dizer.

    — Cuidem dessas crianças. Façam delas boas pessoas. Bons homens e mulheres.

    Mesmo tentando evitar o clichê, foi o que saiu.
    E, naquele momento, parecia certo.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota