Conto: Li Wang

    Aquelas palavras ainda ecoavam nos ouvidos de Li Wang quando o chão pareceu ruir sob seus pés.

    — A Apocalypses está indo em direção ao Cartel.

    Tão curtas e cortantes quanto uma lâmina afiada, as palavras congelaram tudo ao redor. Por um instante, o mundo perdeu o som. Nem os tiros ao longe, nem os gritos no rádio, nem a dor latejante em sua perna conseguiam romper o silêncio surdo que tomava seu peito.

    Então, o pânico explodiu.

    — CORRAM! TODO MUNDO, AGORA! — gritou, com uma fúria desesperada na voz e os olhos arregalados.

    Alguns hesitaram. Outros a encararam sem entender. Mas a expressão de Li Wang era a de quem já havia visto o fim — e sabia que ele estava vindo. Não havia tempo para perguntas.

    Com os dentes cerrados e o rosto banhado de suor, ela sentia o sangue quente escorrendo pela calça. O ferimento na perna pulsava como uma sirene viva. Mas não podia parar. Arrancou uma faixa da própria camisa e amarrou-a com força acima do machucado, quase gritando de dor. As mãos tremiam. O corpo inteiro ameaçava ceder, mas ainda não era hora de cair.

    — Merda, merda, merda… — murmurou, apertando o tecido com um nó trêmulo.

    A adrenalina a mantinha de pé. Sentia o gosto metálico da tensão na boca, como se mastigasse o próprio medo. Sabia do que Apocalypses era capaz. Sabia o que ela representava.

    E se estava indo ao Cartel… não haveria negociações.
    Não haveria reféns.
    Apenas ruína.

    — Eles não fazem ideia do que está vindo… — murmurou, rouca, como quem confessa uma culpa antiga.

    Forçou-se a levantar, apoiando-se na garotinha que havia acabado de salvar.

    Estava mancando, mas andava.

    Ainda respirava.
    Ainda podia lutar.
    Cada passo era uma facada, mas não podia se dar ao luxo de cair.

    O rádio chiou outra vez.
    Mais vozes.
    Mais caos.

    O mundo desabava em ondas, e ela, no olho do furacão, tentava manter algo de pé com as próprias mãos ensanguentadas.

    — Ninguém mais morre hoje. Não se eu puder evitar — prometeu a si mesma, como um fio de conforto.

    Li Wang mal conseguia ficar em pé. O tecido do curativo improvisado apertava a carne aberta da perna e já começava a se encharcar de sangue. Cada passo era uma tortura, mas ela não parava. O coração pulsava descompassado, não apenas pela dor, mas pela urgência de proteger os reféns que haviam acabado de escapar.

    Ao seu redor, os sobreviventes se dispersavam, atordoados. As casas vizinhas, antes usadas para esconder drogas e armas, estavam vazias, silenciosas como túmulos. Além delas, a cerca: um emaranhado de aço improvisado às pressas pelos homens do cartel. Era a última barreira entre ela e a estrada para a liberdade.

    Então o chão tremeu.

    Um som oco, grave, como o rugido de um trovão contido sob a terra. Li se virou, ofegante, e viu a poeira se erguer no horizonte. Em segundos, a cerca diante dela se dobrou com um estalo violento, retorcendo-se como se fosse feita de papel molhado. As estacas de ferro voaram em direções aleatórias, algumas fincadas no chão como lanças, outras simplesmente sumindo na distância.

    Uma figura atravessou o vão aberto com a calma de quem passeia por um jardim. Outro veio atrás, caminhando com passos pesados e orgulhosos, embora até ele parecesse diminuído diante da presença do homem à frente.

    O terno escuro permanecia limpo, sem um único grão de poeira. As mãos repousavam nos bolsos. O olhar, cravado nela. Não havia pressa em seus movimentos, nem ira visível em sua expressão, apenas a tranquilidade cruel de um predador que sabe que nada pode detê-lo.

    Li congelou. Sentiu o estômago revirar. Seus dedos se contraíram no cabo da arma, mas ela sabia. Aquele não era um inimigo comum. Aquilo… era outra coisa.

    Os sobreviventes atrás dela pararam, omo se o ar tivesse se tornado denso demais para ser respirado. Um deles caiu de joelhos, os olhos arregalados. Até William, sempre tão composto, cambaleou um passo para trás, com a mão trêmula sobre o peito.

    — Você foi eficiente, Wang — disse o homem, com voz baixa, porém clara como uma sentença. — Demorou, mas me poupou de um bom trabalho.

    Ela tentou erguer a arma, mas os dedos hesitaram. Seu corpo já sabia, mesmo que sua mente ainda resistisse:
    não havia sentido.
    Não contra ele.

    — O que é você…? — murmurou ela, a voz embargada de medo e fúria.

    Ele inclinou a cabeça, como quem pondera a pergunta com certo divertimento.

    — Sou Hendrick, um dos quatro líderes da Apocalypses. O Guerra. O Medonho. Chame-me como quiser…

    E então sorriu. Um sorriso vazio, impossível de decifrar. Um sorriso que não tinha nada de humano.

    Li apertou os dentes e fincou o calcanhar no chão, posicionando o corpo à frente dos reféns, mesmo tremendo, mesmo sangrando, mesmo sem esperança.

    — Você não vai passar. Não enquanto eu estiver de pé.

    Ele parou a poucos metros. O vento soprou entre os dois, levantando poeira e fazendo as roupas ondularem com uma leveza cruel. Hendrick a observou em silêncio por segundos que pareceram séculos.

    Seus olhos percorreram os corpos imóveis, os rostos confusos e aterrorizados. Quando encontrou William entre os sobreviventes, o sorriso se alargou num prazer doentio.

    — Até você, William. Está vivo… por enquanto.

    Todos ficaram congelados. Nenhum grito. Nenhuma reação. O terror se espalhava como uma entidade viva, preenchendo o ar do cartel com um pânico antigo, instintivo, que fazia até os corações mais endurecidos hesitarem.

    Então, o homem atrás de Hendrick caiu de joelhos.
    Simplesmente… desabou.
    A cabeça curvou-se até tocar o chão. Os dedos cravaram-se na terra.

    — Por favor… — murmurou ele, a voz abafada.

    Hendrick sequer olhou para ele no começo. Apenas permaneceu ali, observando tudo ao redor, como um artista contemplando uma obra feita de sangue, medo e ruína.

    — Não seja ridículo, Vireon — disse por fim, irritado.

    Vireon se calou, o corpo tenso. Havia raiva na rigidez dos ombros.

    Li Wang sentia o coração martelar no peito, não pela dor da perna ferida, mas pela sensação sufocante que tomava conta do ar.

    Ela olhava para os reféns — rostos cobertos de sujeira e pavor — e não entendia por que ninguém se movia. Estavam presos… não por correntes, mas por algo invisível e muito mais opressor.

    William tremia como uma folha ao vento, com os olhos arregalados.

    Até mesmo Vireon permanecia ajoelhado, os ombros curvados, como se a simples presença de Hendrick drenasse sua vontade de existir.
    O ar parecia ter se tornado denso demais para ser respirado.

    Li olhou para Hendrick.

    Ele ainda estava ali, de pé, com a calma de um deus entediado. Ao redor, a destruição recente do cartel parecia uma maquete diante da presença dele, um lembrete de que, se quisesse, poderia apagar tudo com um estalar de dedos.

    — Eles… — murmurou Li, tentando entender. — Por que todos estão assim? O que está fazendo com eles?

    Hendrick inclinou a cabeça, como quem responde a uma pergunta óbvia feita por uma criança.

    — Não é o que eu estou fazendo. É o que eu sou.

    Como se tivesse permitido, os reféns, e até mesmo Vireon, se viram livres daquelas amarras invisíveis que os impediam de se mover ou respirar.

    — É impressionante como todos vocês ainda tentam se agarrar à ideia de controle — disse por fim, encarando Li Wang com um leve inclinar de cabeça. — Mas não se preocupe. Essa ilusão acaba hoje.

    Li sentia cada fibra do corpo em alerta.

    O ferimento ardia.

    O suor escorria.

    Mas o que mais doía… era o pressentimento de que estava diante de algo que não pertencia a esse mundo.

    Algo que não podia ser vencido com balas ou coragem.

    Hendrick se aproximou de Vireon, ainda de joelhos, e o puxou pelos cabelos, forçando-o a se levantar.

    — Os Sete Pecados foram criados como armas definitivas. Um projeto para garantir domínio absoluto. Nenhuma força internacional… nem mesmo a ONU… ousaria levantar a voz contra nós enquanto esses demônios estivessem sob nosso controle.

    Hendrick o olhou com desprezo, como quem observa um cão.

    — Mas nem mesmo o Orgulho — disse, cuspindo a palavra como uma acusação — conseguiu resistir ao peso do medo. Veja só… o grande Vireon. O pecado do orgulho. Sua arrogância e presunção deveriam preencher este ambiente. Mas o que está fazendo? Tremendo como uma criança. Com a cabeça cravada no chão.

    Li sentiu um arrepio percorrer a espinha. Enquanto pensava.
    “Se Vireon é tudo isso que ele está dizendo… por que está de joelhos?”

    Vireon, que deveria ser o monstro entre monstros, até pouco tempo atrás estava ajoelhado, como uma criança pedindo desculpas a um pai violento.

    — William! — gritou ela, rasgando o silêncio como um trovão. — Leve todos agora! Saiam daqui! Corram!

    William hesitou. Olhou para ela, dividido entre o dever e o medo de deixá-la para trás. Mas Li o encarou com firmeza, mesmo entre a dor e o terror.

    — Não me faça repetir — disse, com a voz trêmula, mas decidida. — Proteja-os. Fuja enquanto pode.

    William apertou os olhos, respirou fundo e assentiu. Começou a reunir os sobreviventes, empurrando-os para longe, guiando-os entre os destroços e sombras, enquanto ainda havia tempo para fugir.

    Hendrick observava tudo sem mover um músculo. Só quando o último dos reféns desapareceu entre os escombros, ele voltou o olhar para Li Wang.

    — Fascinante. — Seus olhos brilhavam agora com algo próximo da admiração. — Você… ainda consegue pensar com clareza. Ainda comanda. Mesmo diante da minha presença. Isso… isso é raro.

    Li cravou os olhos nos dele, embora o corpo tremesse.

    — Eu só fiz o que qualquer ser humano de verdade faria: impedir que um monstro toque em inocentes.

    Hendrick sorriu, mas não havia gentileza naquele gesto.
    Era o sorriso de uma criatura que acabara de encontrar uma presa interessante.

    — Talvez… você seja mais do que uma simples humana.

    Li sentia o peso da dor pulsando na perna, mas nada comparado ao fardo do olhar de Hendrick.
    Era como se o próprio mundo parasse quando ele falava. Como se até o tempo temesse contrariá-lo.

    — Uma liderança impecável. Sua calma, seu raciocínio… você definitivamente não é uma simples humana — disse Hendrick, mas não como elogio. Era uma provocação.

    E então, algo dentro dela quis agir.

    Seu olhar caiu por um segundo no chão, onde o corpo de um dos criminosos jazia entre poeira e sangue seco. Ao lado dele, a metralhadora AK parecia intacta. Esquecida em meio à morte.

    Um impulso gritou mais alto que a razão.

    Num movimento rápido, apesar da dor, Li Wang se abaixou, agarrou a arma e se ergueu como um raio, puxando o gatilho sem pensar.

    O barulho foi ensurdecedor.
    A arma cuspiu projéteis de fogo e metal numa saraivada frenética, mirando os pontos vitais de Hendrick.

    Ela gritou com tudo que tinha, como se quisesse esvaziar o medo do corpo junto com as balas.
    A poeira subiu em nuvens densas, envolvendo a cena num nevoeiro de fúria.

    Mas então… o som cessou.
    A arma emudeceu, clicando vazia.

    E da poeira… veio o riso.

    Um riso baixo, rouco, carregado de ironia.
    A fumaça começou a dissipar, revelando Hendrick exatamente onde estava.

    Intocado.
    Nem um arranhão.

    Li Wang ofegava, o suor escorria pelo rosto, os olhos arregalados em puro terror.
    “Como…? Como aquilo era possível?” — pensou aterrorizada.

    Hendrick deu um passo à frente, sacudindo a cabeça como quem assiste a uma criança fazer birra.

    — Impulsiva… mas ousada — disse, com um brilho perigoso nos olhos. — Atirar em mim logo depois de eu poupá-la? Você tem coragem, eu admito. Por isso… não vou matá-la.

    Li sentiu a raiva ferver sob a pele.

    — Então o que vai fazer…? — sussurrou, sem conseguir conter o tremor na voz. — Por que minhas balas… não funcionam em você?

    Hendrick ergueu uma mão e passou os dedos pela camisa, tirando a poeira como se limpasse uma mancha incômoda.

    — Porque você ainda está presa à lógica humana — respondeu, com um sorriso frio. — Mas eu sou a exceção. A falha calculada. O fim de qualquer resistência. E como você me fez um favor… eliminando os ratos deste cartel… pensei em retribuir testando sua utilidade. Vamos ver do que é capaz, Li Wang.

    Ela apertou a arma vazia contra o peito e deu um passo para trás. Sabia que não tinha como vencê-lo… mas também não pretendia recuar sem lutar.

    O silêncio pesava no ar enquanto a poeira das balas assentava. Hendrick a observava com um olhar quase entediado, como quem já conhecia o fim da história.

    Então, com um leve estalar de dedos, quebrou a quietude:

    — Vireon… arrume-me um lugar para sentar.

    Vireon hesitou.
    Por um breve instante, o próprio Orgulho pareceu encolher diante daquele homem.

    Seus olhos percorreram os cadáveres espalhados pelo chão. Com um leve tremor no maxilar, ele obedeceu.

    Silencioso, começou a arrastar os corpos, um a um, empilhando-os como blocos grotescos de carne e osso.
    Braços pendiam, bocas entreabertas pareciam sussurrar seus últimos gritos, olhos mortos fitavam o céu nublado com perguntas que jamais seriam respondidas.
    Era um altar de horror, erguido com sangue fresco e morte recente.

    Quando a pilha alcançou a altura da cintura, Hendrick caminhou até ela. Sem hesitar, acomodou-se sobre os corpos como se fossem apenas almofadas.
    Cruzou as pernas, apoiou os cotovelos nas coxas e entrelaçou os dedos.

    — Muito mais confortável do que parece — disse, com um sorriso calmo, como se estivesse numa sala de estar.

    Li Wang sentiu um calafrio subir pela espinha. Aquilo era a encarnação viva do inferno.

    E então, como se a situação já não fosse suficientemente desesperadora, Hendrick falou de novo, sem sequer olhar para ela:

    — Vireon… mate-a.

    A ordem caiu como uma sentença divina.

    Vireon se virou devagar. Um sorriso lascivo, quase bestial, surgiu em seus lábios, e os olhos brilharam como brasas vivas.

    — Finalmente… — murmurou, estalando os dedos como quem desperta de um longo jejum.

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