Capítulo 21 – Sacrifícios
Conto: Li Wang
O cheiro de sangue impregnava o ar como uma maldição.
William avançava entre os destroços do cartel, pisando em pedaços de corpos e muros despedaçados como se cruzasse um campo de guerra. Cada passo era mais contido que o anterior, como se temesse perturbar o que restava da destruição.
E então, ele a viu.
Li Wang estava caída próxima de uma pilha de cadáveres, jogada ao chão, como se tivesse desabado após usar sua última gota de força. A perna direita jorrava sangue por um ferimento grotesco, onde a carne viva e o osso se revelavam em exposição cruel. O uniforme colado ao corpo, empapado de sangue e poeira, denunciava o tamanho do inferno que ela enfrentara.
— Merda… — murmurou William, correndo até ela com o desespero estampado no rosto.
Ao tocá-la, sentiu o calor absurdo em sua pele. Estava queimando por dentro. Febril, exausta… mas viva.
Sua pele tremia, e o rosto, sempre inquebrantável, agora era o de alguém à beira do colapso.
— Aguenta firme, Li — sussurrou, levantando-a nos braços.
Ele correu até o carro, o coração pulsando descontroladamente.
O motor rugiu quando ele pisou fundo, acelerando pelas trilhas de terra como se o tempo estivesse prestes a se esgotar.
Dayse aguardava em uma cabana improvisada, usada como base temporária. Quando ouviu o carro se aproximar, correu para fora, mas nada a teria preparado para o que viu.
Li Wang jazia no banco traseiro, desfigurada, o corpo coberto de sangue seco e fresco, os olhos semicerrados e sem foco. Por um instante, o coração de Dayse simplesmente parou.
— Não… — sussurrou, levando a mão à boca.
William saiu do carro em disparada e abriu a porta com violência contida.
— Ela está viva, mas perdendo muito sangue. Está queimando de febre.
Dayse, ajoelhou-se no chão, ao lado de Li Wang. As lágrimas brotaram, mas ela as conteve à força. Não podia ceder. Não agora.
— Me ajuda a levá-la para dentro. Rápido! — gritou William, carregando a urgência na voz.
Eles a colocaram sobre a cama, e Dayse começou a trabalhar com o que tinha: medicamentos, curativos, compressas de água fria.
As mãos tremiam, mas ela forçava a firmeza com cada respiração.
— Você vai ficar bem, ouviu? — murmurava Dayse, mesmo que Li Wang não pudesse responder. — Você prometeu que voltaria…
William segurava a lanterna e ajudava a estancar o sangramento, o rosto tenso, como se qualquer erro fosse fatal.
O silêncio naquele quarto era sufocante, cortado apenas pela respiração irregular de Li Wang e os comandos urgentes de Dayse.
A cada segundo, a esperança oscilava pendendo entre a vida e a morte.
O tempo parecia definhar ao redor de Li Wang. O calor em sua pele queimava como se estivesse em brasa, mas o frio na alma era ainda mais profundo. Ela flutuava entre o agora e o nunca, e então, caiu.
Não havia mais cama, nem dor física. Apenas escuridão.
Passos ecoavam em algum lugar invisível, seguidos de uma voz suave, infantil. Risos que ela conhecia muito bem.
— Henry? — Ela tentou chamá-lo, gritou, mas não ouvia sua própria voz.
A imagem dele surgiu à frente, borrada e distante, como um sonho visto por uma janela embaçada. Ele estava chorando aos prantos.
— Por que você tá chorando?
Li Wang correu até ele, esticando as mãos, mas novamente sua voz não pôde ser ouvida. E quanto mais corria, mais distante a imagem de seu sobrinho ficava.
Então, ela parou. Suas mãos estavam sujas de sangue.
A imagem do menino se desfez de repente, como poeira ao vento.
Da escuridão ao redor, mãos brotaram e a agarraram, prendendo-a no mesmo lugar. Mesmo que Li Wang lutasse para encontrar seu sobrinho, não conseguia se soltar.
— Você acha que carregar o mundo sozinha é força… mas isso só te torna mais fraca, Li — A voz de Nathan ecoou, triste, como se não aceitasse aquilo. — A gente precisava de você viva…
— Não… eu ainda… não terminei… — Ela sussurrava, sem perceber que os lábios estavam imóveis.
As sombras se aproximavam. Formas sem rosto, distorcidas, surgiam dos cantos escuros. E, no centro de tudo, Hendrick. Sentado numa cadeira feita de ossos, segurava o pequeno corpo desfalecido de Henry de forma grotesca.
Li tentou se soltar, gritar, correr… mas o corpo não respondia.
Ela começou a aceitar sua impotência. Deixou-se puxar pelas mãos, como quem aceita o fim.
Foi então que uma voz sussurrou algo diferente. Pequena. Delicada.
— Não desista, Li.
“Dayse?” — pensou.
A chama reacendeu, tímida, mas presente.
E Li respirou.
Tudo de ruim ao seu redor se desfez, e ela pôde finalmente ver toda sua família: Edward, Andrew, Sarah, Henry, Dayse e William. Todos estavam em paz, sorrindo. Olhavam para ela com ternura. Com esperança.
Com vida.
Sete dias se passaram.
Li Wang finalmente abriu os olhos, devagar, como se suas pálpebras pesassem toneladas. A luz suave da lua que se infiltrava pela janela queimou sua retina, e por um momento, ela desejou continuar dormindo. Mas algo a impedia. Algo pulsava dentro dela.
Tentou se mexer. Um latejo agudo percorreu sua perna, rasgando-a por dentro com uma dor surda e ardente. Um gemido escapou involuntariamente por entre seus lábios rachados.
Estava viva.
Visão, respiração, audição, olfato, tato. Tudo em seu corpo parecia… diferente. Cada célula, cada músculo, vibrava como se houvesse algo novo ali, algo adormecido que agora se agitava.
“Isso não é só recuperação”, pensou, o coração acelerando. “É outra coisa…”
Levou a mão ao peito. Podia sentir o ritmo do próprio coração, não como uma batida, mas como um tambor.
Ela sabia que seu coração batia duas ou três vezes mais rápido.
Seu peito doía. Seu coração queimava como se fosse feito de brasa.
Fechou os olhos e se forçou a lembrar.
Vireon. O monstro. O massacre. O desespero. Hendrick sentado sobre cadáveres. A promessa de matar Dayse e Henry. O medo.
E então, a faca. A última coisa que viu foi sua própria mão cravando a lâmina na boca deformada de Vireon. Depois disso, apenas escuridão.
O pânico a invadiu.
— Dayse… — murmurou, fraca, a voz rouca como papel seco.
Tentou se levantar, mas suas pernas não obedeceram. Um baque seco ecoou quando caiu da cama, o corpo desabando no chão de madeira com um gemido abafado.
A dor percorreu sua coluna, mas ela ignorou. Precisava saber. Precisava entender. Precisava ver Dayse.
— Dayse… — repetiu, arrastando-se, as unhas agora longas e duras riscando o chão.
Cada centímetro era uma tortura, mas ela não parava. A respiração vinha em arfadas curtas, o suor escorria por sua testa. O nome continuava escapando de seus lábios, como uma oração desesperada.
— Dayse…
A maçaneta da porta parecia tão distante quanto um horizonte. Mas ela não se importava. Precisava sair dali. Precisava encontrá-la. Precisava saber se estava tudo bem.
Se as pessoas importantes para ela ainda estavam vivas.
Ou se já era tarde demais.
O baque seco ecoou pela casa, cortando o silêncio como um tiro.
Dayse, que organizava medicamentos na sala ao lado, deixou tudo cair ao ouvir o som. Correu em disparada até o quarto, o coração acelerado, a mente já imaginando o pior.
Ao abrir a porta com força, viu a cena que jamais esperava.
— Li Wang?! — exclamou, engasgando-se com o próprio espanto.
Li Wang estava no chão, arrastando-se em direção à porta, os olhos arregalados em puro desespero. Quando viu Dayse, parou, como se o mundo congelasse ao redor.
— Você… está viva… — sussurrou, incrédula.
Dayse correu até ela e se ajoelhou, segurando-a com cuidado.
— Claro que estou! Você é que me assustou agora! Meu Deus… você acordou…
Li Wang tentou se erguer, e Dayse a ajudou com delicadeza. Assim que ficou em pé, ainda trêmula e sem forças, ela a abraçou com força, afundando o rosto no ombro da amiga.
O gesto foi abrupto, carregado de emoção. Dayse ficou imóvel por um instante, surpresa com o abraço repentino, Li Wang nunca se entregava assim. Mas, logo em seguida, retribuiu o gesto, sorrindo com alívio.
— Eu achei que… — murmurou Li Wang, a voz embargada. — Eu achei que você tinha morrido…
— Ei… eu tô aqui. Tá tudo bem agora.
Li Wang se afastou apenas o suficiente para encará-la, os olhos cheios de urgência.
— E o Henry? Onde está?
— Dormindo. Está seguro. William cuidou dele enquanto você… enquanto lutava pela vida.
Li Wang assentiu, aliviada, e deixou o peso do corpo ceder de novo. Dayse a segurou com firmeza.
— Vamos, deita outra vez. Você ainda precisa descansar — disse, guiando-a de volta à cama.
Com delicadeza, acomodou-a entre os lençóis. Mas, antes que pudesse cobri-la, Li Wang levantou a mão, interrompendo o gesto.
— Dayse… o que aconteceu?
Dayse hesitou, o rosto tomado por preocupação.
— Isso que eu ia te perguntar.
Li Wang desviou o olhar, confusa. Passou a mão pela testa suada, tentando encontrar alguma lembrança concreta, mas tudo era névoa.
— Eu… não lembro. A última coisa que me vem à mente… foi ser atingida na perna.
Seu olhar então caiu sobre a própria perna. E congelou.
A ferida que deveria estar aberta, enfaixada, sangrando… agora era apenas uma cicatriz fina. A pele ao redor já se regenerava. O músculo estava firme. O osso, intacto. As unhas em suas mãos estavam grandes e duras, de um jeito que parecia errado.
— Isso… não é possível — murmurou.
Dayse se aproximou, seguindo o olhar da amiga.
— Eu não faço ideia de como isso aconteceu. Mas, a cada dia que passava, sua perna se regenerava num ritmo impossível. — sussurrou. — Quando você chegou aqui, ela estava destruída. A gente achou que… que você fosse perder a perna. Mas ela começou a se curar. Rápido demais.
Li Wang levou a mão até a antiga ferida. Sentia-se estranhamente inteira. Mais forte. Mas também… mais distante de si mesma.
Algo havia mudado.
E, no fundo, ela sabia: não era só a perna que havia mudado.
O silêncio retornou ao quarto, espesso como uma névoa densa.
Dayse, sentada ao lado da cama, observava Li Wang com olhos atentos, mas sem dizer nada. Sabia que havia algo fervendo dentro daquela mulher, algo que palavras gentis não resolveriam.
Li Wang mantinha o olhar fixo na própria perna, como se esperasse vê-la se partir novamente, como se aquele milagre pudesse se desfazer a qualquer momento. A respiração era irregular. O peito subia e descia num ritmo descompassado.
As memórias voltavam em flashes.
O sangue de Vireon. A energia negra envolvendo o campo de batalha. O olhar de Hendrick, frio como um abismo. O gosto de desespero misturado ao ferro do próprio sangue.
Ela fechou os olhos, como se isso pudesse conter a maré de imagens.
“Não pode ter sido real” — pensou. “Nada daquilo fazia sentido. Aqueles monstros… aquele poder… tudo aquilo…”
Mas então sentiu. Sentiu a força estranha pulsando dentro de si, como uma segunda corrente sanguínea. Algo vivo. Algo que não deveria estar ali.
Abriu os olhos de novo.
Não era um delírio.
Tudo havia sido real.
— Eu… — murmurou, engolindo em seco — …eu realmente vivi aquilo.
Dayse virou o rosto em sua direção, mas continuou em silêncio.
Li Wang se encolheu ligeiramente, os braços ao redor do corpo, como se um frio repentino a invadisse. O quarto parecia menor. Sufocante.
O medo em sua voz era mais cortante do que qualquer ferida.
Ela apertou os lençóis com força, até os nós dos dedos ficarem brancos.
— Por que eu ainda estou viva? — perguntou, alto, como se exigisse uma resposta do próprio universo. — Onde está o Vireon? Por que ele não me matou?
Dentro de Li Wang, o conflito só aumentava. Porque estar viva… talvez não fosse mais uma bênção.
Talvez fosse o início de algo muito pior.
A voz era calma, quase um sussurro carregado pelo vento noturno:
— Você o matou.
Li Wang congelou. O som vinha da janela, suave e, ainda assim, ameaçador. Num reflexo instantâneo, ela se levantou num salto, ignorando a dor na perna, e arrancou a pistola presa ao coldre de Dayse.
Dayse recuou, surpresa com a velocidade da amiga.
— Henry — sussurrou, o coração disparando, imaginando o pior.
— Vá — ordenou Li Wang, os olhos fixos na janela entreaberta. Seus instintos gritavam. Algo estava errado.
Dayse hesitou por um segundo, mas a firmeza no olhar de Li Wang a convenceu. Correu em direção ao outro cômodo, onde Henry dormia.
Li Wang manteve a arma firme, apontada para a escuridão além da janela.
— Quem é você? — perguntou, tensa.
O silêncio se quebrou com o rangido suave da madeira. A janela foi empurrada para o lado e, com a leveza de uma brisa, uma figura pequena surgiu.
A mesma garotinha.
Cabelos de um cobre claro, soltos, balançando com o vento. Pele pálida, olhos castanhos grandes e atentos. Sardas delicadas salpicando as bochechas. As mesmas feições que Li Wang lembrava entre escombros e poeira, no inferno que havia sido o cartel.
A pistola tremeu por um instante em suas mãos antes de baixar lentamente.
— É você… — murmurou.
A menina parou no batente da janela, observando Li Wang como quem vê um fantasma.
— Desculpe… não quis assustar. — Sua voz era serena, mas carregava uma maturidade que não combinava com sua idade.
— O que está fazendo aqui? — Li Wang perguntou, ainda desconfiada, enquanto guardava a arma na cintura.
A menina desceu suavemente pela janela e entrou no quarto. Olhou ao redor com calma, depois fixou os olhos em Li Wang.
— Me chamo Bárbara Fairbain. Eu estava lá… no cartel. Vi tudo. Não consegui fugir como os outros. Me escondi. E vi você… — ela hesitou —… vi o que fez com ele.
Um arrepio percorreu a espinha de Li Wang. O olhar da menina não era de medo. Era de compreensão. Como alguém que viu demais… e entendeu.
Com um gesto contido, Li Wang sentou-se de volta na cama. A dor na perna latejava, mas já não importava.
— Venha — disse, apontando para a cadeira ao lado. — Sente-se.
Bárbara obedeceu em silêncio. As mãos repousaram no colo, os olhos fixos em Li Wang, como se a estudasse, buscando algo além da aparência.
— Por que veio até aqui? — perguntou Li Wang, com a voz baixa, mas firme.
A menina não respondeu de imediato. Respirou fundo, depois disse:
— Pouco antes dos meus pais morrerem… eles me disseram que eu deveria encontrar você. Que eu devia ficar ao seu lado pra continuar viva.
Li Wang estreitou os olhos.
— Por quê?
A conversa entre elas foi interrompida pela porta se abrindo com violência. William entrou no quarto com o coração disparado, segurando uma AK-47 nas mãos. Os olhos vasculharam o ambiente em busca de perigo, até pousarem sobre a figura sentada ao lado de Li Wang.
— Não! — exclamou Li Wang, com a voz firme apesar do cansaço. — Ela não é uma ameaça!
Mas antes que William pudesse reagir, seus olhos encontraram os de Bárbara. E, naquele instante, o tempo pareceu parar.
Ele empalideceu.
Os braços perderam a força, e a arma escorregou de seus dedos, caindo com um estrondo metálico.
— V-Viollet…? — sussurrou ele, como se estivesse vendo um fantasma.
O nome ficou suspenso no ar, pesado, quebrando algo invisível dentro do quarto.
Bárbara o olhava em silêncio, confusa.
William deu um passo para trás. A semelhança era absurda. Os cabelos, o tom da pele, os olhos… até as sardas. Cada traço era uma lembrança cruel e viva de sua esposa morta.
Sem dizer mais uma palavra, ele se virou e saiu do quarto, quase tropeçando nos próprios pés, como se fugisse de um pesadelo tornado carne.
O silêncio voltou, denso como fumaça.
Li Wang respirou fundo e virou-se lentamente para a menina.
— O que você viu, Bárbara?
A garota hesitou, mas manteve os olhos nos dela.
— Eu vi tudo. Desde o momento em que Hendrick apareceu… até quando você se levantou como uma fera. Eu vi você destruí-lo. Você o esmagou como se tivesse se tornado algo… além de humana.
Li Wang engoliu em seco. O quarto, que já a estava sufocando, agora parecia ainda mais pequeno, opressor.
Olhou para as próprias mãos, sentindo novamente o calor estranho percorrê-las.
Algo havia mudado.
Li Wang ainda observava a menina com cautela. Bárbara parecia tão serena… madura demais para alguém tão jovem. Mas, ao olhar mais de perto, notava os olhos marejados, os pequenos tremores nos dedos, o esforço para manter a voz firme.
— Quem é você de verdade, Bárbara? — perguntou, ajeitando-se melhor na cama.
A garota hesitou por um instante, como se não soubesse por onde começar. Seus olhos vagaram até a janela, buscando coragem no vento que soprava lá fora.
— Eu morava com minha família nas montanhas da Escócia. A gente vivia isolado… era tranquilo… frio, mas tranquilo. Eu… era feliz lá — disse por fim, baixinho.
Olhou para as mãos, agora cruzadas sobre o colo.
— Meu pai se chamava Logan Ekdias. Ele sempre foi gentil comigo… sempre dizia que eu era a luz dele. Mas… — a voz falhou, e ela respirou fundo antes de continuar. — Quando uma mulher chamada Eleonor Jhones chegou até nós, tudo mudou. Meu pai disse que precisava proteger a família. Então… ele ficou para trás para lutar contra ela…
Li Wang estreitou os olhos, absorvendo cada palavra.
— Mas antes disso… ele nos entregou. A mim e à minha mãe. Ele nos… vendeu para homens que trabalhavam para alguém chamado Connor Vaughn. Disse que era a única maneira de ganhar tempo. De nos dar uma chance.
Os olhos de Bárbara se encheram de lágrimas, mas ela manteve a postura, firme, mesmo dentro da própria fragilidade.
— Antes de se despedir de mim… ele sussurrou que eu deveria procurar pelo “Anjo da Salvação”. Que ela era a única capaz de me ajudar.
Li Wang sentiu um aperto no peito.
— Quando estávamos no cativeiro, antes de você chegar… minha mãe, Brenda, me abraçou uma última vez. Ela… tomou veneno. Disse que aquela era a única maneira de me manter a salvo. Só me abraçou, sorriu… e foi embora…
Li Wang desviou o olhar, sentindo o peso daquelas palavras se alojar fundo dentro de si. A imagem da mulher entre os reféns, da garotinha assustada nos escombros — tudo agora fazia sentido.
— Desde então… — continuou Bárbara, com a voz embargada — venho te seguindo. Porque acho que… acho que você é o Anjo que meu pai falou. Eu não sei mais pra onde ir. Mas sei que… se eu estiver com você, talvez eu tenha uma chance… talvez eu encontre paz.
As lágrimas finalmente caíram, silenciosas. O choro contido de quem já segurou demais.
Li Wang não disse nada de imediato. Aproximou-se e puxou Bárbara com delicadeza para um abraço. Forte. Protetor.
Talvez ela ainda não soubesse o que estava se tornando. Mas sabia, com certeza, o que não queria deixar de ser: humana o suficiente para abraçar uma criança partida.
Por um instante, Li Wang sentiu as lágrimas queimarem nos olhos. Quase cedeu. A dor na voz de Bárbara, a história cruel demais para uma criança tão pequena… era demais até para ela. Mas não. Aquela não era a hora. Ela não podia se permitir fraquejar, não diante de uma garota que acabara de confiar a ela tudo o que tinha.
Assim como Bárbara, havia outras pessoas que contavam com ela. E se desmoronasse agora, tudo viria abaixo com ela.
Então, mesmo com o coração em pedaços, Li Wang se obrigou a manter a postura. Firmou os olhos nos de Bárbara, respirou fundo e esboçou um sorriso calmo.
— Obrigada por confiar em mim — disse, com a voz doce, como se por um instante tivesse esquecido todos os próprios medos. — Você me deu um novo motivo pra continuar. Obrigada.
Bárbara piscou, surpresa. Seus lábios tremeram, e uma nova onda de lágrimas rolou silenciosamente pelo rosto sujo de poeira e tristeza. Li Wang se aproximou mais, puxou a manga do moletom até cobrir a mão e, com delicadeza, enxugou-lhe as lágrimas.
Os olhos da menina estavam inchados, vermelhos. As bochechas, antes com a palidez delicada da neve, agora ardiam como tomates. Ainda assim, mesmo naquele estado, Bárbara tinha uma doçura difícil de ignorar. Até mesmo triste, ela parecia… adorável.
— Deixe-me ficar com vocês… por favor. Prometo que não vou atrapalhar — pediu, com a voz baixa, quase envergonhada.
Li Wang hesitou. Manter mais uma criança ao seu lado, em meio a um mundo desmoronando, já era arriscado demais. Proteger Henry já era difícil. Incluir Bárbara significava dobrar o risco. Mas ela sabia: Bárbara não tinha mais ninguém. E, talvez, ela mesma também não tivesse escolha.
O pai da menina havia confiado a ela o que tinha de mais precioso. A mãe, nos últimos segundos de vida, acreditou que ela seria capaz de protegê-la. Como negar isso?
Com um suspiro resignado, Li Wang assentiu.
— Tudo bem… pode ficar.
Os olhos de Bárbara se iluminaram por um breve momento. Ela se aconchegou mais perto e, vencida pelo cansaço, adormeceu ali mesmo, ao lado da cama.
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