Conto: Li Wang

    Li Wang permaneceu ali por alguns instantes, ouvindo a respiração tranquila da menina. Depois, com cautela, levantou-se e saiu do quarto em silêncio.

    Na sala, encontrou Dayse sentada no sofá, com Henry adormecido ao seu lado. Ela folheava alguns papéis, concentrada.

    — William me contou. E aí? Ela tá bem? — perguntou, sem tirar os olhos dos documentos.

    Li Wang apenas assentiu. Sua resposta veio firme, direta:
    — Ela vai ficar com a gente.

    Dayse ergueu o olhar, surpresa. Seus olhos se arregalaram.
    — O quê? Li… já tá difícil manter o Henry em segurança. Agora outra criança? Isso é loucura!

    — Eu sei — respondeu, exausta, sentando-se ao lado dela.

    Houve uma pausa. Li Wang manteve os olhos fixos no vazio enquanto falava:
    — Mas ela não tem ninguém, Dayse. E… de alguma forma, ela me escolheu. Não posso ignorar isso. Não depois do que aconteceu.

    Dayse passou a mão pelos cabelos, inquieta. O silêncio entre elas pesou por alguns segundos. Por fim, ela soltou um suspiro longo, resignado.
    — Tá bom… Mas isso muda tudo. Nossos planos, nossas rotas. Tudo.

    Li Wang apenas assentiu. Sabia disso. Mas, no fundo, também sabia que, a partir daquele momento, proteger Bárbara era tão importante quanto qualquer missão.

    Dayse ajeitou uma manta sobre Henry, que dormia profundamente no sofá. Os pequenos punhos estavam cerrados junto ao rosto, e sua respiração leve preenchia a sala com uma calma quase irreal. Por alguns instantes, ela apenas o observou, quieta, mas por dentro carregava um nó que não se desfazia.

    — Ele está dormindo demais — murmurou, como se o próprio som da voz pudesse perturbar o sono do menino. — Dezessete… às vezes dezoito horas por dia. Já chegou a dormir dezenove. Acorda só pra comer, depois volta a apagar.

    Li Wang desviou o olhar até Henry, atenta. O menino parecia em paz, mas ela sabia que havia algo de errado naquela paz.

    Dayse mordeu o lábio inferior antes de continuar, hesitante:
    — Não sei… Pode ser o trauma. Ou talvez algo mais profundo. O corpo dele está… vivo, saudável. Mas é como se a mente ainda estivesse presa em algum lugar.

    Ela apoiou os cotovelos nos joelhos, o cansaço já pesando nos ombros.
    — Ele quase não fala. Só solta umas palavrinhas soltas: “água”, “não”, “mamã”… e isso só quando tá mais desperto. Agora que começou a dar uns passinhos. Vacilantes.

    Li Wang permaneceu em silêncio, absorvendo cada palavra como se fossem feridas abertas.

    — Eu sei que é cedo — disse Dayse, a voz trêmula —, e que cada criança tem seu tempo. Mas… — ela hesitou, respirando fundo — eu não consigo parar de pensar se isso é só um atraso… ou se tem algo nele que a gente ainda não entende.

    Ela olhou para Li Wang com os olhos marejados, mas firmes.

    — Ele é só um bebê, Li. E eu… eu morro de medo de não estar fazendo o suficiente. De não saber cuidar de alguém como ele.

    Li Wang permaneceu em silêncio por alguns segundos, sem saber ao certo o que dizer. As palavras de Dayse haviam tocado fundo, e o mais difícil era admitir que ela também não tinha respostas. Nada que pudesse oferecer sem parecer uma promessa vazia.

    Desviou o olhar, buscando refúgio em qualquer coisa que a afastasse daquela impotência.

    — E o William? — perguntou, tentando soar casual. — Ainda não voltou?

    Dayse balançou a cabeça, com uma expressão preocupada.

    — Saiu faz umas duas horas. Disse que precisava de um tempo. Não falou pra onde ia.

    Li Wang assentiu lentamente, mas não comentou nada. A lembrança veio como um corte: William entrando no quarto, empalidecendo ao ver Bárbara, o nome “Viollet” escapando de seus lábios… Foi como um sussurro que se transformava em eco, um golpe mudo que o atingia por dentro.

    Ela recostou-se no sofá, fechando os olhos por um instante.
    — Quando ele voltar, me avisa — disse, a voz baixa, sem se mover.

    Dayse assentiu em silêncio.

    A sala mergulhou novamente na quietude.

    Mas dentro de cada uma delas, as guerras continuavam, invisíveis, silenciosas e impiedosas.

    Li Wang abriu os olhos e, após alguns segundos de silêncio, e apontou para os papéis nas mãos de Dayse.
    — O que está lendo?

    Dayse olhou para os documentos como se só então se lembrasse deles.
    — William pegou isso quando voltou ao cartel, depois de te tirar de lá. Achou que talvez encontrássemos alguma pista sobre a Apocalypses. Ou sobre Connor Vaughn.

    Li Wang ergueu uma sobrancelha, os sentidos agora despertos.
    — E encontrou?

    Dayse respirou fundo.
    — Ainda estou lendo, mas tem coisas… absurdas, Li. O presidente da Colômbia estava recebendo propina de Connor Vaughn. Milhões. Pra fazer vista grossa enquanto ele expandia os negócios ilegais no país.

    A mandíbula de Li Wang se contraiu, tensa.
    — Quem mais?

    — O vice-presidente. Quatro senadores. Um juiz. Nove deputados. Dois ministros. Governadores. Membros da inteligência nacional… Tem nomes aqui que já apareceram em dossiês da Interpol — e foram ignorados. Todos comprados.

    O silêncio de Li Wang durou alguns segundos. Respirou fundo, como quem segura um furacão por dentro.
    — Quero os nomes. Todos eles.

    Dayse hesitou.
    — Li…

    — Todos. — A voz saiu baixa, fria. Uma lâmina sob controle. — E marque uma reunião com todos eles. No Congresso da República. Em Bogotá.

    Dayse arregalou os olhos.

    — Você vai… pessoalmente?

    — Sim.

    Dayse ainda parecia hesitante, mas algo no olhar da amiga a impediu de protestar.

    — Tudo bem… eu consigo fazer isso acontecer.

    — Ótimo. — Li respirou fundo. Seu olhar era o de alguém que não voltaria atrás. — Chegou a hora de lembrá-los de que a justiça não está à venda.

    — E o meu uniforme? — Li perguntou

    Dayse fez uma careta sutil e balançou a cabeça.
    — Está destruído, Li. Totalmente. William trouxe o que sobrou… mas, sinceramente, virou pano de chão. Nem costurando dá pra salvar.

    Li Wang suspirou e fechou os olhos por um breve instante.

    Aquele uniforme era mais do que tecido, proteção ou aparência. Era um símbolo.
    Uma ameaça silenciosa para os criminosos.
    Uma promessa de justiça para os inocentes.

    Li entendeu com clareza o que ele representava, e por que precisava voltar a vesti-lo. Não pelo que foi, mas pelo que ela ainda precisava ser.

    Alguns dias se passaram desde a decisão. E então chegou o momento.

    A sede do Congresso da República da Colômbia amanhecia imponente, mas algo no ar estava diferente. O silêncio nos corredores não era o habitual silêncio do poder; era o silêncio que antecede uma tempestade.

    Li Wang e William chegaram juntos. Sem escolta. Sem anúncio. Simples, discretos, letais. Vestiam roupas escuras, funcionais, sem qualquer insígnia.

    Os guardas na entrada sequer tiveram tempo de reagir. Um golpe seco de William derrubou o primeiro antes que pudesse alcançar o rádio. O segundo teve a garganta pressionada contra a parede por Li Wang até apagar. Cada movimento foi limpo, silencioso, cirúrgico. O caminho se abriu diante deles como se o próprio prédio reconhecesse o peso da justiça que se aproximava.

    Subiram os degraus sem pressa. Portas foram arrombadas. Seguranças, desarmados e desacordados. Quando chegaram ao salão principal do Congresso, não havia mais obstáculos entre eles e os que deveriam prestar contas.

    A porta se abriu com violência, ecoando pelo grande salão.

    Li Wang entrou primeiro. Firme. Olhos gelados. William veio logo atrás, a AK-47 apontada para o chão, mas carregada. Fechou a porta com calma. O trinco estalou como um selo final.

    Todos os olhares se voltaram para eles.

    — Todas as portas estão trancadas — disse Li Wang, em voz alta, pausada, sem emoção. — Não adianta tentar fugir.

    William não disse nada. Apenas caminhou até a entrada principal do plenário e ali se postou, arma em punho. Seu silêncio era mais ameaçador que qualquer grito.

    Li Wang avançou até o centro do salão. O burburinho nervoso cessou assim que ela abriu a pasta nas mãos. De dentro, tirou fotos. Muitas.

    — Olhem bem. Olhem para o que vocês financiaram.

    Uma a uma, jogou as imagens sobre a mesa central: corpos mutilados, crianças famintas, mulheres com os olhos inchados de tanto chorar. Galpões repletos de armas. Carregamentos de drogas com o selo dos cartéis. Civis em celas, tratados como animais.

    — Enquanto isso… — disse ela, girando o corpo lentamente, encarando cada rosto — …vocês estavam aqui. Rindo. Assinando acordos. Recebendo depósitos internacionais para se manterem calados. Vendendo o próprio povo em troca de mansões, carros importados… ou até mesmo mulheres de luxo.

    Seus olhos pousaram sobre o presidente. Ele tentou manter a postura, mas suava.

    — Você aceitou propina de Connor Vaughn. Sabia de tudo. Não moveu um dedo. Você é cúmplice. Covarde. Vermes como você me causam mais repulsa do que os próprios assassinos armados.

    O presidente abriu a boca para responder, mas o olhar de Li Wang o calou.

    — E não pensem que há desculpa para o que fizeram. Não há “foi apenas política”. Não há “interesse diplomático”. O sangue que escorreu das mãos de Connor… também escorre das mãos de cada um de vocês.

    Ela caminhou novamente ao redor. E, dessa vez, sua voz ganhou uma dureza cortante.

    — Vocês me enojam. Eu lutei contra monstros. Vi criaturas que desafiam a lógica humana. Mas nada… nada me causou tanto asco quanto entrar neste salão e respirar o mesmo ar que vocês.

    Por fim, ergueu a última foto: uma criança morta, abraçada a um ursinho sujo de sangue.

    — Isso… foi o preço da “política de silêncio” que vocês construíram. E eu juro, por tudo que ainda existe de bom neste mundo, que vocês pagarão.

    O salão já estava mergulhado em tensão quando um juiz, um homem corpulento, de cabelos brancos e rosto rosado, levantou-se bruscamente, batendo a palma da mão na bancada diante de si.

    — Já chega! — esbravejou, com a voz cheia de autoridade e arrogância. — A senhorita deveria mostrar respeito a este Congresso! Homens e mulheres que dedicaram suas vidas à nação estão presentes aqui!

    O eco da voz reverberou pelas colunas do Congresso. Alguns presentes endireitaram a postura, como se recuperassem, ainda que por instantes, a dignidade perdida.

    Li Wang, no entanto, permaneceu imóvel. Seus olhos não se moveram diretamente para o juiz. Pareciam mirar além dele, como se aquele homem sequer fosse digno de sua atenção plena.

    Com passos lentos, ela se aproximou. Cada batida de sua bota contra o mármore soava mais pesada que a anterior. Ao chegar perto o suficiente, sem dizer uma única palavra, ergueu a mão e, com brutal precisão, empurrou a cabeça do juiz contra a mesa. O som seco do impacto foi abafado apenas pelo grito coletivo de espanto que explodiu logo em seguida.

    O juiz caiu de lado, grogue. O rosto já começava a inchar e sangrar.

    — Rafael Ibarra — disse ela, finalmente. A voz gélida, indiferente. — Recebia depósitos mensais de contas fantasmas administradas por Connor Vaughn. Em troca, arquivava denúncias. Soltava criminosos com habeas corpus falsificados.

    Ela jogou uma nova pilha de documentos sobre a bancada.

    — Todos vocês — prosseguiu, com firmeza — participaram, direta ou indiretamente, da morte de civis. A lista está aqui: nomes, datas, transferências bancárias, coordenadas de execuções. Sequestros. Escravidão. Tráfico humano. Vocês sabiam. Vocês permitiram.

    Os rostos empalideceram. Um senador tentou disfarçar, passando a mão nervosamente no paletó. Outro puxou o celular por baixo da mesa, com movimentos trêmulos.

    Li Wang apenas observava. Os olhos, sem calor. Olhos de quem vê ratos encurralados.

    Então, dois parlamentares se levantaram bruscamente e correram em direção à porta. Um terceiro hesitou antes de segui-los.

    Mas não chegaram longe.

    Do fundo do salão, William ergueu a arma. Li Wang também apontou. Três tiros secos ecoaram. Três corpos tombaram no chão. Sem gritos. Sem hesitação.

    Apenas silêncio.

    A voz de Li Wang explodiu:

    — SENTEM-SE!

    Todos obedeceram no mesmo instante. Alguns cambaleantes. Outros de olhos arregalados, respirando rápido. Nenhum ousou se mover.

    Li Wang voltou ao centro do salão. Seu rosto continuava inexpressivo. Mas o olhar… um poço de desprezo profundo.

    — Hoje, vocês não irão discursar. Não terão advogados. Não terão tempo para apagar provas. Nem mentiras diante das câmeras. Hoje, vocês ouvirão. Verão. E serão lembrados como o que são: cúmplices do terror.

    Ela ergueu os olhos para o grande brasão da República, entalhado na parede de mármore.

    — Vocês são traidores da sua própria nação.

    William continuava parado junto à porta, os dedos firmes na AK-47, mas o olhar perdido em Li Wang. Havia algo nela que o desconcertava, aquela frieza absoluta, aquela precisão sem emoção. Não era apenas violência. Era julgamento. Execução. Justiça encarnada.

    Ele já tinha visto muita coisa. Mas aquilo… aquilo era diferente.

    Do chão, alguns parlamentares começaram a se arrastar na direção de Li Wang, as mãos erguidas, os joelhos dobrados. Estavam em pânico, desfeitos por dentro, suando como porcos em matadouro.

    — Por favor… — sussurrou uma senadora, com a maquiagem borrada e as joias tilintando junto aos tremores. — Eu tenho filhos… netos. Eu posso pagar. Pago quanto você quiser.

    — Dinheiro. Eu tenho contas nas Ilhas Caimã, na Suíça… — disse outro, com a testa encostada no chão, chorando de forma patética. — Por favor… eu imploro.

    Li Wang nem sequer os olhava. Seus olhos permaneciam fixos na pilha de documentos à sua frente.

    Vermes.

    A palavra ecoava em sua mente como um martelo. Eles eram vermes. E mesmo agora, diante do abismo, rastejavam em troca de algo. Não por arrependimento. Apenas por medo.

    O som de passos distintos ecoou pelo salão.

    Andrés Pastrana Arango, o presidente da Colômbia, caminhava com falsa serenidade em direção a Li Wang. O sorriso diplomático disfarçava mal o desespero nos olhos.

    Parou diante dela. A voz saiu baixa, melíflua.

    — Moça… nós dois sabemos que não adianta lutar contra o mundo inteiro. A justiça… a verdadeira justiça… é moldada pelos que têm poder. — Abriu os braços, num gesto teatral. — Faça o seguinte: mate todos esses desgraçados. Todos. E eu garanto a você… — sua voz desceu até quase um sussurro — tudo o que desejar. Dinheiro. Territórios. Segurança. Apoio militar. Você governará a Colômbia do jeito que quiser.

    Por um instante, o salão congelou.

    E então, a gritaria explodiu.

    — TRAIDOR! — berrou um deputado. — Seu desgraçado vendido!
    — Vai nos entregar?! — gritou outro, levantando da cadeira com o rosto em brasa.
    — Canalha! Assassino!

    Os insultos cortavam o ar como facas. Mas Li Wang continuava parada, imóvel, como se nada daquilo a atingisse.

    Finalmente, ela ergueu os olhos para Andrés.
    Um olhar vazio. Sem ganância.
    Apenas a certeza inabalável de quem sabia o que precisava ser feito.

    E respondeu com uma única frase, gélida:

    — Você acabou de assinar a própria sentença.

    O sorriso do presidente vacilou.

    William, em silêncio, apenas engoliu seco.

    Li Wang se virou, os olhos agora percorrendo todos os presentes.

    — Vocês acham que podem comprar absolvição com dinheiro? Com acordos? Com lágrimas falsas?

    Deu um passo à frente.

    — Nenhum de vocês pode me oferecer algo que eu queira.

    Os vermes, finalmente, se calaram.

    Por um instante, o mundo pareceu desacelerar.
    O som da gritaria dos parlamentares virou um ruído distante, abafado, como se Li Wang estivesse submersa. Seus olhos, antes frios, agora turvavam com lembranças. As imagens da câmara se dissolveram e deram lugar ao horror do cartel. Corpos mutilados. Crianças acorrentadas como animais. Mulheres com os olhos secos de tanto chorar.

    Ela se lembrou de Bárbara, encolhida ao lado da mãe morta, segurando-a como se seu calor ainda pudesse salvá-la. O veneno ainda nos lábios de Brenda. O abraço mais cruel do mundo. A decisão de morrer para proteger uma filha. A dor nos olhos de uma menina que nunca mais voltaria a ser criança.

    Aquilo foi a última gota.

    Li Wang não sentiu raiva. Sentiu nojo. Uma náusea crescente, um desgosto tão profundo que transbordava da alma para o corpo. Como podiam aquelas pessoas — engravatadas, perfumadas, protegidas por títulos e muros dourados. Rir, beber, trair e matar à distância, como se fossem deuses intocáveis?

    Não eram deuses. Eram vermes.
    E o momento da limpeza havia chegado.

    Sem aviso, sem hesitação, ela puxou a pistola da cintura e atirou no peito de um senador que tentava rastejar pela lateral. Ele tombou com um baque seco, os olhos arregalados, sem entender o que havia acontecido.

    Silêncio. Por meio segundo.
    E então o caos se instaurou.

    Gritos. Correria. Suplicantes. Lamentos.

    — POR FAVOR! — chorava uma mulher, agarrada à perna de um banco. — EU SÓ FIZ O QUE ME MANDARAM!

    Outro tropeçou num cadáver e engatinhou em direção à porta. Li Wang o alcançou e disparou no crânio sem sequer reduzir o passo. Sangue e ossos respingaram sobre os outros, que recuaram em pânico.

    William permaneceu onde estava. A AK-47 descansando contra o peito. Olhos fixos nela. Ele não disse nada. Não precisava. Aquilo não era uma operação. Era um julgamento.

    Li Wang caminhava como um espectro. Seus movimentos tinham uma precisão quase inumana. Os tiros eram curtos, secos, definitivos. Sem hesitação.
    Cada disparo era uma sentença. Cada morte, um veredito.

    Um homem caiu de joelhos e tentou abraçar suas pernas.

    — Eu tenho filhos! Me perdoa, me perdoa… eu não sabia… eu juro!

    Ela parou, encarou-o por um segundo, e então o matou com um tiro no topo da cabeça. Um jato de sangue pintou os degraus do púlpito.

    “Odeio matar gente fraca.” — Pensou. “Mas esses desgraçados mal podem ser chamados de humanos.”

    Ela via nos olhos deles não arrependimento, mas o pavor de perder o poder. Era isso que os movia. Não a culpa pelos mortos, não o remorso pelos órfãos. Apenas medo.

    Mais um. E outro.

    Ao fim de tudo, o chão do Congresso da República estava encharcado de sangue. Os corredores cheiravam a pólvora e urina. Cadáveres tombados em posições grotescas pareciam clamar ao teto, como se ainda não entendessem que o tempo da impunidade havia acabado.

    Li Wang parou no centro da sala. O braço ainda erguido, a arma quente na mão. Respirava fundo, como se o próprio ar estivesse contaminado pelo que aqueles homens e mulheres representavam.

    William se aproximou em silêncio. Observava-a com respeito, e um temor discreto. Não pela violência em si, mas pela convicção absoluta que ela carregava.
    Aquilo era justiça crua. Sem tribunal. Sem jurados.

    — Acabou? — perguntou ele, baixinho.

    Li Wang não respondeu de imediato. Seus olhos varreram os corpos no chão.
    Por fim, disse:

    — Ainda não.

    Li Wang saiu do Congresso sem dizer uma palavra.

    O silêncio que pairava sobre as escadarias era sepulcral. Não havia multidões, não havia protestos. Apenas o peso invisível de algo irrevogável. A cidade inteira parecia ter prendido a respiração. Ao seu lado, William caminhava em silêncio, ainda atônito com o que testemunhara. Não disse nada. Não precisava. Aquilo havia sido um recado. Um corte cirúrgico.

    Li não confiava no sistema. Sabia que bastaria um outro rato surgir entre os escombros do Congresso para varrer as provas e transformar os corruptos mortos em mártires. Sabia que, mesmo podres, aqueles nomes carregavam poder, e que o poder sempre tentaria se reerguer.

    Ela se antecipou.

    Durante toda a noite, espalhou cópias das provas que Dayse havia reunido. Documentos, registros de transações, vídeos, fotos. Tudo impresso, tudo real.

    Foram deixados como jornais improvisados nas praças, pendurados em muros, jogados aos milhares pelas ruas de Bogotá. Cada canto da capital foi inundado com a verdade nua e crua.

    Não havia como ignorar. Nem como silenciar.

    Na manhã seguinte, Li Wang ligou a televisão.

    As imagens do Congresso ocupado pela polícia se revezavam com helicópteros sobrevoando a cidade. Repórteres com o rosto pálido falavam de instabilidade, de vácuo de poder. O apresentador de um dos canais locais mantinha a voz tensa:

    — …confirmado que entre os mortos estão o presidente Andrés Pastrana Arango, o vice, seis ministros, e mais de cinquenta parlamentares. As investigações ainda não apontam o número exato de vítimas…

    Outro canal, mais sensacionalista, exibia em letras garrafais: “Massacre no Coração da Colômbia”.

    Mas o que chamava a atenção era a divisão.

    Alguns jornalistas, mesmo visivelmente receosos de se comprometer, não conseguiram evitar:

    — …e diante das provas que surgiram, temos que admitir: talvez os políticos mortos tenham colhido o que semearam.

    — …ela é uma assassina, não importa quantas provas jogue na rua. Não podemos endossar o vigilantismo! — bradava um analista político, vermelho de raiva.

    — …mas como ignorar os campos de prisioneiros, o tráfico, o sangue dos inocentes? E onde estavam as autoridades quando tudo isso acontecia?

    A opinião pública estava dividida.

    Nas redes sociais, o nome “Anjo da Salvação” explodiu.
    Metade do país pedia justiça contra ela. A outra metade a venerava como a única voz honesta em meio ao lamaçal político.

    Li Wang observava tudo em silêncio. O reflexo da TV tremia em seus olhos escuros.
    O país estava em caos. O sistema, desnorteado.
    Mas havia algo ali, uma semente.
    Algo novo.

    William sentou-se ao lado dela no sofá, ainda tentando digerir os acontecimentos.

    — Você sabia que isso ia acontecer, não é? Que o povo ia se dividir…

    Li Wang permaneceu em silêncio por um instante antes de responder:

    — A percepção de bem e mal muda conforme os momentos que vivemos. E muitas das pessoas que defendem aqueles criminosos vivem em castelos de areia, sentados em tronos de mentira.

    William refletiu sobre o que ela quis dizer, mas não perguntou. Continuou em silêncio, tentando encontrar sentido.

    Ela desligou a TV.
    O eco do silêncio preencheu o ambiente como uma sentença final.

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