Capítulo 24 – Era uma Vez...
Conto: Li Wang
A manhã estava calma demais. Li Wang e Dayse eram as únicas acordadas.
O céu cinzento filtrava uma luz suave pelas frestas da janela, espalhando um brilho frio sobre o chão de concreto. Li Wang mantinha os olhos fixos na tela ainda escura do telefone. Seus dedos pairavam sobre o botão de chamada por alguns segundos, tempo suficiente para que a voz de Hendrick voltasse a ecoar em sua mente:
“Hm… você é mesmo tudo aquilo que Nathan disse.”
“Acreditar nisso é o que te mantém viva”
Não!
Já tinha decidido.
Aquilo era só veneno psicológico. Hendrick queria quebrá-la por dentro, e não conseguiria.
A tela acendeu. A ligação foi atendida.
— Li — disse ele. — Não esperava que fosse me ligar tão cedo.
Ela manteve os olhos no aparelho. O som da respiração de Bárbara, dormindo no cômodo ao lado, parecia mais distante agora.
— Você fez o impossível. Parabéns. A morte de Vireon… Não achei que você fosse capaz de matá-lo. Sabe o que isso significa?
— Que ele não vai mais machucar ninguém.
— E que agora sua cabeça vale cem milhões.
Li Wang ficou em silêncio. O valor não a chocava.
Mas o tom de Nathan… sim. Ele falava como se aquilo fosse uma conquista.
— Cem milhões, Nathan. Eles estão dispostos a parar o mundo por mim.
— Não. Eles estão dispostos a parar você.
A resposta foi rápida demais.
Natural demais.
E isso doeu.
Uma faísca de dúvida reacendeu.
Ela desviou o olhar.
— E você? Está disposto a me parar também?
Houve uma pausa longa do outro lado da linha.
Longa o suficiente para alimentar cada palavra de Hendrick
O silêncio entre eles já era incômodo quando Nathan disse:
— Eu fiz um acordo com a Apocalypses.
As palavras cortaram o ar como uma navalha.
Li Wang não respondeu. Nem respirou. Apenas ficou ali, imóvel. Depois, piscou uma vez, como se tivesse acabado de levar um tapa no rosto.
— O quê? — A voz saiu baixa, quase rouca.
A raiva subiu como um veneno quente.
A mente dela explodiu. Hendrick tinha dito a verdade.
A verdade.
Todas as dores, os sacrifícios, os corpos… Bárbara órfã, o massacre…
E, no centro de tudo, Nathan.
“Ele fez um acordo.”
Pensou em como quebraria o maxilar dele com um único chute. Em como silenciaria sua voz com as próprias mãos.
Ele ainda falava, mas Li Wang já não escutava.
A raiva nublava tudo.
Até que uma mão tocou seu ombro.
— Li — disse Dayse, com firmeza — dê a ele ao menos o direito de se explicar.
Li Wang hesitou. Inspirou fundo. Uma parte dela ainda queimava, mas ouviu. Por Dayse, ela ouviu.
Nathan, do outro lado da linha, sabia que não seria perdoado. Mesmo assim, falou:
— O acordo era simples. Em troca de informações sobre o paradeiro de Vangeance, eles prometeram parar de matar crianças. Se acreditarem que ele está vivo, não terão mais motivo para continuar. Eu escolhi proteger quem não pode se defender.
Li Wang fechou os punhos.
— Eu troquei uma esperança por outra. — A voz dele tremia de honestidade. — Entendo sua raiva. De verdade. Mas eu não podia mais ver corpos pequenos em covas rasas.
A imagem de Bárbara passou por sua mente. A lembrança do que a menina contou. A mãe morta. O cativeiro. O medo nos olhos.
Nathan respirou fundo.
— Eu não espero que me perdoe. Só quero que saiba que, mesmo assim, continuarei ajudando. Dinheiro, armas, tecnologia — o que você precisar. Mesmo que me odeie, ainda estarei do seu lado.
Li Wang não respondeu de imediato.
O silêncio voltou.
Mas agora ele não era vazio, era denso, espinhoso.
O perdão ainda não tinha lugar ali, mas ela conseguia entender.
Nathan respirou fundo.
— Agora, mais do que nunca, as coisas estão perigosas, Li. Eles estão atentos a cada movimento. E agora sabem que você é capaz de matar um Pecado.
Li Wang ficou em silêncio por alguns segundos. O maxilar trincado, os olhos semicerrados. Então disse:
— Preciso de um tempo.
— Isso tudo… — sua voz vacilou, antes de endurecer novamente — eu preciso processar.
Nathan concordou. Não havia mais o que dizer. A ligação terminou com um clique seco.
A sala mergulhou no silêncio. Só a respiração tensa de Li Wang preenchia o espaço.
— Eu sei que foi difícil — disse Dayse com gentileza.
Li Wang permaneceu imóvel, o olhar ainda preso na tela escura.
— Mas, por mais revoltante que tenha sido, você sabe que ele não fez por mal.
Nathan já nos ajudou muito. E continua ajudando.
Li Wang fechou os olhos. Sabia disso. Claro que sabia.
Nathan nunca foi um traidor. Não no sentido prático.
Ele era só… humano demais.
Dayse continuou:
— Ele escolheu salvar crianças. Mesmo que o preço tenha sido alto.
Talvez, se estivesse no lugar dele… você também teria feito o mesmo.
A raiva ainda pulsava, mas sob ela havia algo pior: compreensão.
— Eu entendo as motivações dele — disse, por fim. — Mas ele não me consultou. Não me avisou.
Agora, a Apocalypses tem ainda mais peças para montar esse quebra-cabeça.
Passou a mão pelos cabelos, frustrada.
— Eles estão mais perto de encontrar o garoto. E isso… é culpa dele também.
Dayse não respondeu de imediato. Apenas a observou, com um olhar calmo e solidário.
— Só… não deixe que a dor fale mais alto que a verdade.
Li Wang assentiu, com os olhos baixos.
Ela não confiava mais plenamente em Nathan.
Mas também não conseguia odiá-lo.
E isso, no fundo, era o que mais doía.
Dayse soltou um suspiro leve, passando a mão pelo ombro de Li Wang com delicadeza.
— Vou deixar você sozinha um pouco.
Vou acordar o Henry… ele precisa comer alguma coisa.
Li Wang assentiu em silêncio, ainda encarando o vazio da tela desligada.
Dayse se afastou devagar, os passos suaves mal tocando o chão.
Antes de sair pela porta, virou-se por um instante:
— Se precisar de mim… é só chamar.
Então desapareceu pelo corredor, deixando Li Wang sozinha com o peso do que ouvira e com o silêncio, que agora parecia ensurdecedor.
Li Wang ainda estava sentada no mesmo lugar, com os cotovelos apoiados nos joelhos e o rosto mergulhado em pensamentos densos. A tensão da conversa com Nathan ainda pesava em seu peito, como se tentasse decifrar algo que simplesmente se recusava a entender.
O som suave de passos a trouxe de volta lentamente.
— Tia Li…
A voz infantil era doce e suave.
Quando levantou os olhos, viu Bárbara em pé à sua frente, com os cabelos despenteados e os olhos ainda um pouco sonolentos. Sem dizer nada, a garota se aproximou e a abraçou com força.
O gesto foi repentino, quase desarmante.
Os braços pequenos ao redor de seu corpo. O calor da criança. A confiança incondicional naquele toque.
Li Wang ficou imóvel por um momento, como se seu corpo não soubesse como reagir.
Aquela sensação era… estranha.
Por um instante, foi arrastada para um passado que evitava revisitar.
Edward.
Lembrou-se de quando o abraçava pela manhã, antes que ele saísse para trabalhar. Do jeito como ele a segurava com firmeza, como se o mundo pudesse acabar e, ainda assim, ele não a soltaria. Lembrou-se dos abraços silenciosos, depois das brigas bobas. Dos abraços carregados de riso. E dos últimos…
Lágrimas ameaçaram surgir.
A vida parecia estar de ponta-cabeça.
Os problemas vinham todos de uma vez, e até mesmo um abraço despertava memórias dolorosas.
Mas ela se manteve firme. Conteve as lágrimas com a mesma rigidez que usava para conter a raiva. Ou a dor.
O passado nunca deixou de doer, apenas se disfarçou de silêncio.
Bárbara apertou mais um pouco, encostando o rosto no ombro dela.
Um carinho puro. Um afeto silencioso.
Li Wang hesitou. Então seus braços se moveram lentamente, envolvendo a menina com cuidado.
A dureza em seus ombros cedeu um pouco.
Pela primeira vez em muito tempo, ela se permitiu apenas… sentir.
— Você parece triste. — murmurou Bárbara, sem soltá-la.
Li Wang não respondeu.
Mas, pela primeira vez naquela manhã, sua respiração desacelerou.
Instantes depois, a porta se abriu. Dayse entrou com passos cuidadosos, carregando Henry nos braços. O garoto estava encolhido contra seu peito, ainda sonolento, mas com os olhos entreabertos, como se tentasse entender onde estava.
— Vangeance! — exclamou Bárbara, com alegria súbita.
Ela correu até eles, animada, os olhos brilhando.
Dayse parou imediatamente.
Li Wang se levantou de um salto, os olhos arregalados.
— O quê? — perguntou, a voz carregada de alerta.
Bárbara sorriu, inocente.
— É o nome dele, não é? Vangeance?
O silêncio tomou conta da sala. Por um instante, ninguém disse nada.
Li Wang trocou um olhar tenso com Dayse. Nenhuma das duas havia mencionado o nome verdadeiro de Henry na frente da garota.
— Bárbara… quem te disse isso? — perguntou Dayse, com gentileza, mas visivelmente apreensiva.
A menina apenas deu de ombros, olhando para Henry como se estivessem conectados por algo invisível.
— Eu só… sabia. — respondeu, simples. — Quando vi ele… senti.
Li Wang se aproximou devagar. Observou o menino em silêncio.
Para sua surpresa, ao ver Bárbara se aproximar com aquele brilho nos olhos e a voz leve chamando seu nome… algo nele se acendeu.
Seus olhos se fixaram nela.
Houve um instante de silêncio, como se o tempo tivesse parado para assistir.
E então… o inesperado.
Henry sorriu.
Não um sorriso forçado, nem tímido. Era um sorriso leve, sereno, como se tivesse reconhecido algo. Ou alguém.
Dayse e Li Wang congelaram. Aquilo… não era comum.
Era como ver uma pedra suspirar.
Como ouvir o vento falar.
Henry havia sorrido. Por causa dela.
Era como se estivessem ligados por algo que escapava à compreensão.
Dayse olhou para Li Wang, apreensiva.
— Isso não é normal.
Li Wang, com a testa franzida, respondeu num sussurro:
— Nada mais tem sido.
Ainda surpresa com a espontaneidade de Bárbara ao chamar Henry de “Vangeance”. Ela se abaixou ao lado da garota.
— Onde você ouviu esse nome? — perguntou, mantendo a voz firme, mas curiosa.
Bárbara desviou os olhos por um instante, como se tentasse encontrar dentro de si a origem daquela memória.
— Eu… ouvi numa história que meus pais contavam. Mas, quando vi ele… — apontou suavemente para Henry — esse nome simplesmente veio. Como se fosse dele.
Li Wang estreitou os olhos, intrigada.
— Que história era essa?
Bárbara assentiu e se sentou no chão, com as pernas cruzadas, como uma criança prestes a narrar um conto antigo.
— Muito tempo atrás, existia uma família real chamada Vangeance. Nela, só havia dois membros: um rei e uma rainha. Eles eram guerreiros, poderosos, que lutavam para trazer paz ao mundo. Estavam vencendo… estavam quase conseguindo. Mas então o rei desapareceu. Ninguém sabia onde ele tinha ido. A rainha ficou sozinha… — seus olhos ficaram vagamente tristes — e teve que continuar lutando contra milhares de inimigos.
Dayse se sentou ao lado, atenta.
— E o que aconteceu com a rainha?
— Ela matou quase todos… estava prestes a vencer… quando o rei, que todos achavam que tinha morrido, reapareceu no campo de batalha. A rainha, quando o viu, deixou a espada cair. Ela correu até ele, chorando, tomada pela saudade. Mas… — Bárbara hesitou — naquele momento… ele a traiu.
Li Wang franziu o cenho. Sentiu um aperto inexplicável no peito.
— Traiu? — murmurou.
— Sim — respondeu Bárbara, baixinho. — Ele a apunhalou pelas costas. Ela estava vulnerável… e ele a matou.
— Mas por quê? — Dayse se adiantou, chocada. — Eles não se amavam?
— Eu não sei… — Bárbara respondeu, sincera. — Em todas as histórias da minha família, o rei era bom, fiel, justo. Mas… na última batalha, ele fez isso. Me desculpa por não saber mais.
O silêncio se instalou por um momento.
— Essas histórias… são só contos infantis? — Li Wang perguntou, tentando racionalizar.
— Meu pai dizia que eles existiram de verdade. Que andaram por este mundo. Dizia que as lendas da família Vangeance tinham que ser contadas de geração em geração.
— Existe algum livro que conte essa história? — insistiu Li Wang.
— Sim. Na casa dos meus pais tem uma biblioteca com muitos livros antigos. Mas eu nunca li. Quem cuidava dela era minha avó. Ela dizia que alguns livros eram sagrados demais para mim.
Li Wang trocou um olhar significativo com Dayse. Sem dizer uma palavra, Dayse se levantou e saiu rapidamente, determinada a encontrar a localização exata da família de Bárbara.
Enquanto isso, Li Wang ficou sentada no sofá, observando Bárbara e Henry brincando juntos no chão da sala. Era uma cena quase surreal. Dois sobreviventes de mundos em ruínas, sorrindo um para o outro como se fossem velhos amigos.
Henry, sempre calado. Sempre distante.
Ria.
Um riso tímido, contido… mas real.
E, pela primeira vez em muito tempo, Li Wang não soube dizer se o que sentia era esperança, ou presságio.
William, recostado no canto do sofá com os olhos fixos na televisão, não perdeu uma só palavra da conversa. Apesar da postura relaxada, absorvia tudo em silêncio. Ao ouvir o nome Vangeance, um leve arrepio percorreu sua espinha. Nunca tinha escutado aquela história, mas algo naquela palavra acendeu uma centelha incômoda dentro dele. Ainda assim, preferiu manter a inquietação guardada.
— Li — disse ele, sem tirar os olhos da tela — precisamos sair do país. Nathan me avisou que o avião parte hoje à noite.
Li Wang assentiu. Aquilo já era esperado. Desde que se envolvera com Nathan, viajar entre países deixara de ser um problema. Voos particulares, identidades falsas, aeroportos secretos… era graças a ele que ainda conseguiam se mover pelo mundo sem serem rastreados.
Mas a constante sensação de fuga começava a pesar.
— Certo… — respondeu ela. — Mas pra onde? Ainda não temos nenhuma pista concreta sobre a Apocalypses… nem sobre Connor Vaughn. E Dayse ainda precisa investigar de onde a Bárbara veio.
William hesitou por um instante.
— Vamos pra Rússia.
Li Wang arqueou uma sobrancelha.
— Rússia? Por quê?
Ele continuou encarando a TV, como se não tivesse ouvido a pergunta. A luz tremeluzente da tela se refletia em seus olhos, mas havia algo mais ali, algo que ele evitava revelar.
Li Wang o conhecia bem. William nunca sugeria nada sem um motivo forte. Se ele tinha escolhido a Rússia, era por uma razão que ainda não podia ou não queria explicar.
Ela respirou fundo.
— Ok. — Concordou, com cautela.
O silêncio voltou à sala.
Enquanto Bárbara e Henry ainda brincavam no chão, alheios ao peso das decisões ao redor.
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