Conto: Li Wang

    A luz suave da tarde banhava a casa quando Li Wang observou Bárbara brincando com Henry no canto da sala. A risada da menina era leve, sem as sombras que costumavam pairar sobre aqueles que viam o mundo com olhos marcados pela dor. Mas, em meio ao movimento, Li Wang percebeu algo que a fez parar por um instante.

    Quando Bárbara cruzou as pernas, a calça rasgada subiu ligeiramente, revelando uma tatuagem.

    Era um raio, nítido e sombrio, que serpenteava pela perna da menina, talvez começando na cintura e descendo até pouco abaixo do joelho. O design era forte, com contornos intrincados, mas o que mais chamou a atenção de Li Wang foi o simbolismo oculto que parecia emanar de cada linha e curva.

    — Bárbara — disse, a voz baixa, mas firme. — O que é isso?

    Bárbara olhou para a própria perna, como se a marca fosse algo comum.

    — É a marca de nascença da minha família. Dizem que significa que somos especiais, escolhidos… mas eu não sei bem o que isso quer dizer.

    Li Wang permaneceu em silêncio por um momento, absorvendo a informação e tentando compreender o peso daquelas palavras. Sentia uma conexão profunda com Bárbara, mas também uma estranha sensação de desconforto, como se estivesse começando a descobrir mais do que desejava sobre o passado da garota.

    Enquanto a observava, percebeu que suas roupas estavam gastas. As calças sujas e a camiseta rasgada denunciavam o abandono que Bárbara havia vivido. Uma pontada de compaixão atravessou Li Wang.

    — Vamos até a cidade — decidiu, levantando-se e pegando a jaqueta. — Vou comprar roupas para você.

    Bárbara sorriu timidamente, como se não soubesse como reagir a uma oferta tão simples. Li Wang a guiou até a cidade, onde a menina escolheu, com cuidado, roupas e calçados, como se fosse uma experiência nova para ela. Não havia pressa, apenas a sensação de normalidade, algo que talvez Bárbara nem soubesse que precisava.

    Voltaram para casa ao anoitecer. Bárbara entrou animada, com as sacolas de compras nas mãos e um brilho genuíno nos olhos. Correu até Dayse, que estava no quarto, e começou a falar sem parar. O ambiente parecia transformado. No aconchego familiar, a menina narrava, com alegria, cada descoberta, cada cor e textura que agora fazia parte do seu novo guarda-roupa.

    Sentada ao lado de Dayse, contava em voz alta suas aventuras, enquanto Li Wang observava, satisfeita, vê-la feliz.

    — A tia Li me levou até a cidade! Olha o que eu comprei! Nunca tive tantas coisas assim antes. Tem até um par de botas! E uma jaqueta!

    Dayse sorriu, observando a menina com carinho.

    — Fico feliz que você tenha se divertido, Bárbara. Parece que foi um ótimo dia.

    Bárbara começou a exibir suas novas aquisições, espalhando as peças sobre a cama. Li Wang, de pé próxima à porta, acompanhava a cena com um sentimento contraditório. Enquanto a menina experimentava sua nova liberdade, Li Wang sabia que aquela mudança também trazia questões perigosas, não apenas sobre o passado da garota, mas sobre o futuro de todos ali.

    Bárbara falava animadamente sobre a tarde com Li Wang, mostrando a Dayse um vestido com detalhes florais, um par de botas novas e um casaco azul, que abraçava seu pequeno corpo como se tivesse sido feito para ela. Dayse sorria, ouvindo com ternura, enquanto organizava as roupas em uma mala.

    Então, como se sentisse necessidade de revelar algo que guardava desde o início, Bárbara se virou para Li Wang, ainda animada com o dia que tivera.

    — Meu pai acreditava que Henry é o messias da profecia… aquele que traria a salvação para nós — disse, com a voz firme, mas doce. — Por isso, prometo que o protegerei a todo custo. Tenho certeza de que isso o deixaria orgulhoso.

    Dayse acariciou com delicadeza os cabelos da menina.

    — Com certeza, minha querida. Isso o deixará orgulhoso.

    As palavras pairaram no ar, carregadas de significado e esperança. Bárbara, satisfeita com a resposta, logo voltou a sorrir, como se o peso daquela promessa não a esmagasse, mas a fortalecesse.

    Mais tarde, quando o silêncio reinava novamente na casa, apenas Li Wang e Dayse permaneciam acordadas. A noite envolvia o ambiente com um véu de calma tensa. Sentadas lado a lado, mas com olhares distantes, as duas mulheres finalmente colocaram em palavras aquilo que crescia dentro delas desde o início.

    — Se o que Bárbara falou é verdade… — disse Dayse, olhando pela janela — então estamos lidando com algo que vai muito além da nossa capacidade… não! Vai muito além da nossa imaginação!

    Li Wang demorou um instante antes de responder.

    Depois, soltou um suspiro contido e murmurou:

    — Eu normalmente diria que poderes, profecias… toda essa história não passa de conto de criança, mas agora vejo que pode haver algo real nesses contos.

    O silêncio entre elas não era vazio, mas denso, como se cada uma estivesse tentando reorganizar o mundo dentro da própria mente.

    Pouco depois, embarcaram no avião e seguiram para a Rússia. A viagem transcorreu em silêncio, marcada por olhares perdidos e pensamentos pesados. Quando finalmente aterrissaram, o frio os envolveu como um lembrete cruel de que estavam longe de tudo o que conheciam.

    William as conduziu até uma casa antiga, nos arredores de uma pequena cidade. Era grande, isolada, e carregava no ar o peso do tempo. Ao abrirem a porta, o cheiro de pó e abandono os envolveu imediatamente. Os móveis estavam cobertos por panos brancos, como fantasmas do passado. O chão rangia sob seus passos, e cada cômodo parecia guardar ecos de uma história não contada.

    Na sala, fotos de casamento pendiam das paredes: William mais jovem, sorrindo ao lado de uma mulher de olhar doce e cabelos ruivos. Ninguém comentou. Dayse apenas observou, com os olhos apertados, enquanto Li Wang caminhava em silêncio, absorvendo cada detalhe com uma mistura de curiosidade e respeito.

    Um dos quartos chamou atenção: um quarto de bebê, cuidadosamente preparado. Um berço branco, móveis decorados com desenhos infantis, bichinhos de pelúcia empoeirados e cortinas claras. Tudo ali parecia aguardar por uma vida que nunca chegou. A tristeza do ambiente era tão densa que ninguém ousou entrar. Olhar foi o bastante.

    William quebrou o silêncio ao chamar Li Wang com um gesto discreto. Conduziu-a até o antigo quarto de casal. Lá dentro, vasculhou o guarda-roupa e puxou uma caixa envolta em um pano branco, cuidadosamente dobrado. Entregou-a a Li Wang com uma expressão séria.

    — Aquele trapo que você vestia mal merecia ser chamado de uniforme — disse, sem ironia, apenas com honestidade. — Aceite isso.

    Li Wang arqueou a sobrancelha, surpresa.

    — O que é isso? — perguntou, segurando a caixa com firmeza.

    William hesitou por um segundo. Seus olhos se fixaram na caixa como se ela guardasse mais do que tecido.

    — Foi um presente do meu pai… — disse, com a voz mais baixa do que de costume. — Eu nunca usei. Talvez… porque sempre soube que nunca seria digno dele.

    Fez uma breve pausa, respirando fundo.

    — Mas você é.

    Essas palavras fizeram William lembrar-se do passado.

    — Escute com atenção, William — disse ele, com a voz grave. — Azazel não foi o único traje que os Grigori mandaram desenvolver. Na verdade, foram três: Azazel, Iblis… e o mais poderoso de todos: Miguel.

    William arqueou uma sobrancelha, tentando processar.

    — Ok… mas o que exatamente quer que eu faça com esse traje? Ele é importante, certo? Por que não deixa que alguém realmente capacitado cuide disso?

    Nikolai se aproximou e colocou ambas as mãos nos ombros do filho.

    — Já estou fazendo isso. Em todo o mundo, há apenas uma pessoa em quem confio para manter Azazel em segurança. E essa pessoa é você, filho.

    William engoliu em seco. A responsabilidade caiu sobre ele como uma avalanche.

    — Mas… o que eu devo fazer agora? De que exatamente estou protegendo isso? — perguntou, confuso, a voz hesitante. Dentro de si, uma pergunta cruel ecoava: Será que sou capaz de cumprir o que ele espera de mim?

    — Você apenas precisa garantir que ele nunca caia em mãos erradas — respondeu Nikolai, com firmeza. — Se isso acontecer, o poder de Azrael poderá ser usado para o mal… novamente.

    Caminharam em silêncio por alguns segundos. William, ainda olhando para o cristal guardado na caixa, murmurou:

    — Não seria mais fácil… destruí-lo?

    Nikolai não respondeu. Apenas continuou andando.

    William fechou a caixa rapidamente e o seguiu.

    — E se eu usá-lo? — perguntou, com um sorriso forçado, tentando aliviar o peso do momento.

    Mas Nikolai parou abruptamente e virou-se com uma expressão severa.

    — William… para ser honesto, não sei o que pode acontecer se você vestir Azazel. Mas vi com meus próprios olhos pessoas perderem a sanidade… e morrerem, consumidas por ele. — A voz estava carregada de lembranças amargas. — Não me importa se vai usá-lo ou não. Só quero que me prometa uma coisa.

    William ficou sério.

    — O quê?

    Nikolai respirou fundo e olhou para o chão antes de responder:

    — Há outro tesouro inigualável para mim… que quero que você proteja.

    — Outro traje? Ou alguma arma lendária? — perguntou William, convencido de que essa seria a resposta.

    Mas Nikolai sorriu levemente e balançou a cabeça.

    — Não… quero que você viva. E tenha uma vida feliz.

    As palavras atingiram William como um golpe suave e profundo. Nikolai virou-se de costas, como se não quisesse que o filho o visse tão vulnerável.

    — Sei que não sou o melhor pai quando se trata de demonstrar sentimentos. Que às vezes sou frio, duro demais… Mas, tanto eu quanto sua mãe, amamos você. E sua irmã. — Sua voz falhou brevemente, mas logo retomou o tom firme. — Então me prometa isso: viva. Por você. Por nós.

    William ficou em silêncio por alguns segundos. Depois assentiu, os olhos umedecidos, mas firmes.

    — Eu prometo.

    Li Wang abriu a caixa com cuidado. Dentro, havia apenas um cristal vermelho. Ele pulsava lentamente, emitindo um brilho sutil, quase como se tivesse um coração. Um leve calor emanava dele, não o bastante para queimar, mas suficiente para ser sentido na pele, como uma presença viva.

    Franziu o cenho e o tocou com a ponta dos dedos. Uma vibração suave percorreu seu braço, como uma resposta silenciosa.

    — Como eu vou vestir isso, William? Tá maluco? — perguntou, encarando o cristal como se fosse uma bomba prestes a explodir.

    William manteve-se firme, o olhar sério.

    — Isso que você está segurando se chama Azazel. É uma das armas mais poderosas deste mundo.

    Li Wang ironizou, sem esconder o ceticismo. O cristal pulsava, emitindo aquele brilho vermelho… quase vivo.

    — Isso? — murmurou. — Parece mais uma joia de bazar do que uma arma.

    — Meu pai me disse que, se você engolir esse cristal, ele se funde ao seu corpo… e, com isso, você poderá usá-lo.

    Ela o olhou, incrédula. Antes, teria rido de uma ideia dessas. Mas depois de enfrentar Vireon, de ver o impossível com os próprios olhos, duvidar parecia… ingenuidade.

    Mesmo assim, voltou a encarar o cristal. Era pequeno, com cerca de seis centímetros, mas compacto como aço. A ideia de engolir aquilo fez seu estômago revirar.

    — Você tá falando sério?

    — Sim — respondeu William, sem hesitar.

    Li Wang, sem desviar os olhos, levou lentamente o cristal até a boca. Mas, a poucos centímetros dos lábios, William segurou seu pulso.

    — Espera.

    — O que foi agora? — perguntou ela, surpresa.

    — Se fizer isso… pode haver efeitos colaterais.

    Ela ergueu uma sobrancelha.

    — Que tipo de “efeitos colaterais”?

    William hesitou. A seriedade em seu rosto agora parecia pesar sobre os próprios ombros.

    — Eu não sei ao certo. Mas… segundo meu pai, talvez você perca a sanidade. Ou morra.

    O silêncio entre os dois durou segundos eternos.

    Li Wang afastou lentamente o cristal da boca, o brilho vermelho refletindo em seus olhos indecisos.

    — Que presente de merda, hein? — disse, com um meio sorriso irônico, tentando esconder o receio.

    William não respondeu. Apenas cruzou os braços, respeitando a escolha dela.

    Ela olhou o cristal mais uma vez, agora com um misto de fascínio e medo.

    — Obrigada, William. De verdade. Mas… vou pensar um pouco antes de fazer algo tão idiota quanto engolir isso.

    Guardou o cristal com cuidado, como se já soubesse que, cedo ou tarde, teria que tomar uma decisão. Uma daquelas que não têm volta.

    A noite chegou, trazendo com ela um silêncio denso. As paredes ainda exalavam o cheiro de poeira antiga, e a madeira rangia a cada leve movimento.

    Li Wang estava deitada, mas seus olhos permaneciam abertos, fixos no teto escuro. O quarto era frio, mas o que a mantinha desperta era outra coisa: pensamentos, lembranças… dor.

    A imagem de Vireon surgia em sua mente com nitidez absurda, sua presença sufocante, o sorriso cruel, os olhos vazios de humanidade. Lembrava-se de cada golpe, da sensação de impotência, da humilhação por não ter conseguido lutar de igual para igual. Mesmo com toda sua força, sua técnica, sua fúria… não foi suficiente. Quase morreu.

    Sentou-se na cama, levando as mãos ao rosto. Seus músculos ainda carregavam memórias da dor. A frustração a corroía por dentro, silenciosa, implacável.

    Seus olhos pousaram sobre a caixa no criado-mudo. Esticou-se e a abriu.

    Ali estava ele, o cristal. Vermelho. Pulsante. Quase vivo. Como se respirasse no mesmo ritmo de um coração.

    Pegou-o com as pontas dos dedos. Girou-o lentamente, observando cada faceta, cada reflexo carmesim. Ele parecia chamá-la, não com palavras, mas com uma presença.

    “Se eu tivesse esse poder… teria vencido?”

    A dúvida martelava, implacável. Aproximou o cristal do rosto. Era lindo… e perigoso. Um convite. Uma promessa. Ou talvez uma armadilha.

    Lentamente, levou-o até os lábios, como havia feito mais cedo. Mas hesitou.

    “E se eu perder o controle? E se me tornar como ele? Como Vireon?”

    A respiração ficou pesada. As mãos, trêmulas.

    — Não agora… — murmurou para si mesma.

    Com cuidado, devolveu o cristal à caixa, fechando-a com delicadeza, como se estivesse selando uma fera adormecida.

    Encostou-se ao travesseiro, os olhos ainda fixos no teto. O cansaço, finalmente, venceu o turbilhão de pensamentos.

    Aos poucos, suas pálpebras se fecharam. E, com o cristal pulsando em silêncio ao lado da cama, Li Wang adormeceu.

    Mas, mesmo dormindo, sua mente não encontrou paz.

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