Conto: Li Wang

    Já era manhã, e Dayse foi até a cozinha, com os cabelos ainda úmidos depois do banho matinal. Li Wang estava sentada à mesa, tomando café com o olhar distante.

    — Encontrei — disse Dayse, estendendo um papel com coordenadas. — A localização da casa onde Bárbara viveu. É em Moray, na Escócia. Parece isolada, no alto de uma montanha.

    William levantou-se antes mesmo de Li Wang reagir.

    Seu rosto permanecia inexpressivo, mas seus olhos denunciavam urgência.
    — Vamos agora.

    O avião os deixou na pequena cidade de Moray, e dali seguiram a pé por trilhas quase inexistentes. A vegetação era densa, e a chuva fina transformava a terra em um lamaçal escorregadio.

    — Isso é longe até mesmo para os padrões dos excêntricos — comentou William, limpando o suor da testa.

    Subiram em silêncio, mas Li Wang notava os sinais: árvores queimadas ao longo do trajeto, como se um raio tivesse atingido suas copas. Algumas estavam partidas ao meio, outras reduzidas a carvão.

    — Você está vendo isso? — perguntou ela, tocando o tronco incinerado de uma árvore. — Relâmpagos não fazem isso.

    No topo da montanha, um terreno plano se abria diante deles. Ali estavam os restos de uma casa, ou o que sobrou dela: apenas as fundações queimadas e escombros enegrecidos. O galinheiro ao lado, surpreendentemente intacto. A pequena horta, embora descuidada, ainda tinha vida.

    Li Wang sacou a arma por precaução, seus olhos treinados escaneando a área. Aproximou-se lentamente, com William logo atrás.

    Então, viu.

    Um corpo, ou o que restava dele, estava sentado contra uma parede que mal resistia de pé. Parecia ter sido calcinado ali, mas permanecia, milagrosamente, inteiro. Até que…

    — William, colete algum DNA. Quero confirmar se há parentesco com Bárbara — ordenou ela.

    William se agachou, pegou uma faca e um pedaço de pano. No momento em que encostou a lâmina no dedo do cadáver, o braço caiu com um estalo seco. Imediatamente, o corpo inteiro se desfez em poeira negra, dissolvendo-se no ar como cinzas ao vento.

    Li Wang saltou para trás, puxando a arma por reflexo.

    — QUE MERDA É ESSA?! — gritou William, recuando.
    — O que foi isso…? — murmurou Li, sem conseguir tirar os olhos do que antes era um corpo. Agora não passava de um monte de pó.

    Respiraram fundo e seguiram explorando os escombros.

    Não encontraram nada além de retratos antigos. Bárbara aparecia ao lado de sua família: um homem que aparentava ser seu pai, a mãe, um garoto um pouco mais velho que ela e uma idosa.

    Em todas as fotos, o mesmo sorriso infantil, a mesma luz nos olhos.

    Nos fundos da casa, William encontrou uma porta camuflada por tábuas partidas.

    Era uma pequena biblioteca. Estantes cobriam as paredes, abarrotadas de livros. Mas, ao abrir os volumes, uma surpresa ainda maior:

    — Estão todos em branco… — disse William, virando página por página.

    Eram livros antigos, encadernados em couro gasto, com símbolos gravados na lombada. Nenhuma palavra, nenhum traço de tinta. Apenas páginas completamente vazias.

    Li Wang pegou alguns deles e colocou na mochila.
    — Talvez Bárbara consiga ver algo. Não podemos descartar nada.

    Na viagem de volta à Rússia, o avião cortava os céus noturnos com suavidade. William dormia profundamente ao lado. Li Wang, no entanto, não conseguia relaxar.

    Retirou um dos livros da mochila e o folheou mais uma vez. Nada.

    Foi então que sentiu algo duro entre as páginas: uma carta dourada, reluzente, como se feita de ouro. Ao abri-la, encontrou um papel da mesma textura: metálico, cintilante.

    Não havia uma única palavra. Apenas seu reflexo, distorcido, olhando de volta.

    Li Wang sentiu uma vertigem súbita. Seus músculos amoleceram. Um sono pesado começou a dominá-la, como se sua força vital estivesse sendo drenada.

    — O que… é isso… — murmurou, antes que tudo escurecesse.

    O papel dourado escorregou de seus dedos e caiu sobre o colo. E então, o silêncio.

    Li Wang desmaiou, com o reflexo ainda gravado nos olhos.

    Li Wang abriu os olhos, mas não viu nada. Ao seu redor, havia escuridão — não o tipo de breu absoluto, mas uma ausência opaca e opressora de luz. Conseguia enxergar apenas alguns centímetros à sua frente. Sob os pés, parecia não haver chão, nem solo, nem qualquer base: apenas um vazio incerto.

    Então, uma voz ecoou:
    — Me desculpa… por favor…

    Era uma voz rouca, trêmula. Masculina, mas indistinta. Nunca a ouvira antes, e, ainda assim, ela atravessou seu peito com um estranho calor melancólico.

    Havia desespero naquela voz. Não um desespero ruidoso, mas um lamento velho e profundo, como o de alguém que havia chorado por dias sem parar. E, estranhamente, mesmo naquele vazio sem direção, aquela voz era a única coisa que mantinha Li Wang calma.

    — Quem é você? Apareça! — exigiu ela, sua voz firme escondendo o tremor interno.

    — Sinto muito por tudo que fiz a você. Fui imaturo… e por causa disso, essa guerra está acontecendo…

    — Do que você está falando? — questionou ela, confusa.

    A voz hesitou por um momento. E então, a confissão que não fazia sentido — e, ao mesmo tempo, parecia certa:

    — Se ao menos você estivesse viva… Por favor, me perdoe, mãe…

    A palavra reverberou dentro dela como um soco no estômago.

    Mãe.

    Li Wang estremeceu. Não fazia sentido. Era absurdo. Mas havia uma dor tão sincera, tão real naquelas palavras, que ela não conseguia racionalizar. Apenas sentir.

    O choro do desconhecido tornou-se mais intenso, e a tristeza dele parecia transbordar, como se estivesse sendo derramada sobre ela. Sentiu as pernas fraquejarem. Sua esperança de continuar viva começou a desvanecer como neblina ao sol.

    — Se ao menos eu tivesse escutado seus conselhos… — soluçava ele. — A única coisa que eu queria agora era consertar tudo… tudo o que fiz com você…

    Li Wang começou a olhar ao redor, movida por um impulso desesperado. Ela precisava ver. Precisava entender.

    — O que você fez? Por que está se desculpando? — gritou, o coração acelerado.

    Então, uma nova voz cortou o espaço — grave, autoritária, muito mais velha. Como o estalar de trovões em meio ao silêncio:

    — Humano, seu tempo está acabando. Seja breve.

    — Cale-se! — gritou a primeira voz, em resposta. — A coisa que mais me arrependo… é de não ter dito que te a—

    A frase se perdeu. O som distorceu como um rádio antigo fora de sintonia. Li Wang franziu o cenho, desesperada para ouvir.

    — Essa é a coisa que mais me arrependo de não ter feito antes… Parece ridículo, mas sinto que, depois disso, posso finalmente morrer em paz. Adeus… mãe.

    As palavras finais vieram como um sussurro, desmanchando-se no ar.

    — Não! — gritou Li Wang, de súbito.

    As lágrimas escorriam pelo seu rosto, mas ela sequer percebia. Era como se algo dentro dela, algo que não compreendia, estivesse se desfazendo.

    — NÃO MORRA! VOCÊ AINDA NÃO PODE MORRER! EU NÃO OUVI O QUE VOCÊ DISSE! EI, SEU DESGRAÇADO, NÃO OUSE MORRER!

    As palavras saíram como um instinto. Ela mesma não sabia por quê. Apenas sentia. E, mesmo enquanto gritava, as lágrimas caíam, salgadas, quentes, reais.

    “Isso não pode acabar assim”

    — NÃO DESISTA! — gritou mais uma vez, com tudo que lhe restava.

    Mas o silêncio já havia voltado. E a escuridão ao seu redor parecia ainda mais densa.

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