Conto: Li Wang

    Lyria alçou voo com um poderoso bater de asas, erguendo-se cerca de cinco metros acima do gramado do estádio. O som seco e profundo das asas cortando o ar reverberou pelas arquibancadas vazias, ecoando como um aviso iminente.

    De súbito, sem hesitação, Lyria mergulhou em direção a Li Wang numa velocidade aterradora, cruzando a distância em segundos. O impacto foi brutal. Li Wang mal conseguiu acompanhar o movimento; a figura de Lyria tornou-se um borrão escuro, uma sombra monstruosa que avançava sobre ela.

    A pancada foi tão forte que a arma de Li Wang voou de sua mão, arremessada metros adiante, sumindo no vazio do campo.

    — Largue esse brinquedo irritante — disse Lyria, com a voz carregada de um deboche cruel, agarrando-se ao corpo de Li Wang com força, como uma caçadora dominando sua presa.

    Os olhos de Li Wang se arregalaram. O calor do corpo e a respiração quente de Lyria próxima ao seu rosto causavam uma confusão incômoda. Ela tentou lutar, empurrou com todas as forças, até conseguir se soltar com um movimento desesperado, rolando para o lado e se pondo rapidamente de pé, ofegante.

    Mas Lyria não deu trégua. Pairando no ar, soltou uma risada longa e zombeteira, como quem se diverte com a fragilidade da adversária.

    — A humana que matou um pecado… Como serão seus gemidos? — provocou, inclinando a cabeça e observando Li Wang com olhos rubros, cheios de malícia e instinto predador.

    Li Wang apertou os punhos, o coração acelerado martelando contra as costelas. Tentou manter o foco, mas sua mente estava tumultuada.

    “Ela é… totalmente diferente de Vireon…” pensou, lembrando-se da batalha anterior.

    Hendrick, ainda sentado, com a expressão serena e despreocupada, murmurou:

    — Não me diga que está cansada, Wang?!

    Lyria gargalhou novamente, girando no ar com um movimento fluido, como se brincasse com a situação, uma predadora entediada.

    A mente de Li Wang estava sufocada pela imagem de Dayse, William e Bárbara… Todos eles, vulneráveis.

    Mas não podia fraquejar.

    De repente, Lyria subiu mais alguns metros, preparando-se para outra investida.

    — Vamos ver até onde consegue resistir — sibilou, antes de mergulhar novamente, desta vez com as garras expostas.

    Li Wang mal conseguiu esquivar-se por completo. As garras rasgaram o tecido de sua roupa e arranharam sua pele, deixando marcas ardentes. Lyria recuou e voltou a pairar no ar, preparando nova ofensiva.

    Cada investida da criatura vinha acompanhada de novos ferimentos — cortes superficiais, mas dolorosos — e, acima de tudo, a humilhação constante de ser tratada como uma presa frágil.

    E então, em meio ao campo, ensanguentada e ofegante, Li Wang se viu assombrada não apenas pela força esmagadora de Lyria, mas pelo jogo psicológico que a cercava, tentando quebrar sua determinação.

    Mas ela apertou os dentes, limpou o sangue do canto da boca com as costas da mão e se pôs de pé novamente, com o olhar endurecido.

    “Não… Eu não posso perder.”

    Após inúmeras investidas violentas, Lyria mergulhava, cortava o ar com suas asas monumentais, rasgava o espaço ao redor como uma força da natureza incontrolável. Mas, aos poucos, Li Wang começou a perceber o padrão, a cadência oculta sob aquela fúria caótica. Cada investida deixava um traço, uma intenção sutil — e Li Wang, endurecida pelas batalhas, começou a se adaptar.

    O corpo, dolorido e marcado por ferimentos, já não respondia com a mesma velocidade de antes, mas sua mente permanecia afiada. Saltou para o lado, esquivando-se de uma investida rasante que quase arrancou sua cabeça, rolou no chão e se pôs de pé a tempo de evitar outro golpe vindo de cima.

    O olhar de Li Wang, até então carregado de medo e tensão, agora cintilava com determinação silenciosa. Sua respiração era rápida, mas compassada; cada músculo, mesmo ferido, e lento, respondia com precisão.

    E então, em meio à sequência incessante de ataques, Lyria cometeu um deslize quase imperceptível — uma fração de segundo a mais na subida após uma investida, abrindo um pequeno espaço entre as escamas finas que protegiam seu flanco.

    Li Wang não hesitou.

    Com um grito sufocado de esforço e raiva, impulsionou-se do chão e, com um salto preciso, cravou a faca que carregava contra aquele ponto vulnerável, entre as escamas que reluziam à luz fria dos holofotes.

    O estalo seco da lâmina se partindo ecoou no estádio vazio.

    Li Wang ficou imóvel por um instante, surpresa, olhando para o cabo quebrado que ainda segurava com força. A lâmina havia se estilhaçado contra a pele de Lyria, como vidro frágil contra aço maciço.

    Lyria recuou um pouco no ar, olhou para o pequeno arranhão em sua pele escamada e soltou uma gargalhada sonora e vibrante, que ecoou como um trovão pelo estádio silencioso.

    — Armas humanas… — disse ela, com desprezo, inclinando a cabeça enquanto os olhos brilhavam como brasas. — Não serão capazes de me matar…

    E então, sem mais delongas, disparou novamente contra Li Wang, numa enxurrada de ataques ainda mais violentos e rápidos, como se quisesse punir a ousadia daquela tentativa.

    As enormes asas cortavam o ar com agressividade, impulsionando o corpo de Lyria como um projétil vivo, enquanto as garras reluziam ameaçadoras sob a iluminação artificial.

    Li Wang esquivava-se como podia, rolando, saltando, desviando-se por meros centímetros, mas cada vez mais o embate se assemelhava a um espetáculo grotesco — um predador de topo brincando com sua presa antes de devorá-la.

    O som das asas, o choque das garras contra o solo e os gritos sufocados de Li Wang formavam uma trilha sonora brutal naquela arena vazia, enquanto o céu da noite sobre elas, cobria a cena com um manto de sombras e desespero.

    Suor e sangue se misturavam no corpo de Li Wang, mas, apesar da exaustão, ela permanecia de pé, desafiando a morte, desafiando o medo, lutando para proteger aqueles que amava — mesmo que, a cada segundo, a vitória parecesse mais distante.

    Enquanto Li Wang continuava desviando desesperadamente dos ataques, seu corpo ferido e cansado começava a fraquejar. Ela ofegava, rangia os dentes, mas não recuava.

    Lyria, pairando alguns metros acima, observava com aquele sorriso malicioso, como quem poderia acabar com tudo a qualquer momento, mas preferisse prolongar o sofrimento, testando os limites da humana teimosa.

    Então, do meio do campo, a voz calma e grave de Hendrick soou, cortando o ruído da batalha como uma lâmina fria:

    — Agora eu entendi…

    Li Wang girou o rosto rapidamente em sua direção. Hendrick continuava sentado tranquilamente na mesma cadeira, as pernas cruzadas, os cotovelos apoiados nos braços, como quem assistia a um espetáculo particularmente interessante.

    Ele sorriu de canto, quase com admiração, inclinando-se levemente, como se quisesse que suas palavras fossem absorvidas lentamente:

    — O motivo pelo qual você não sentiu medo de mim… ou o porquê de não se sentir atraída por Lyria, mesmo após ela ter te segurado…

    Li Wang franziu o cenho, sem entender de imediato, enquanto limpava o sangue que escorria de sua sobrancelha.

    — Você não tem aura.

    O silêncio se abateu sobre o estádio por um segundo eterno, interrompido apenas pelo bater ritmado das asas de Lyria, ainda no ar, observando a presa se desfazer pouco a pouco.

    As palavras de Hendrick penetraram na mente de Li Wang como veneno. Ela sentiu uma estranha vertigem, como se uma parte de si, até então desconhecida, fosse subitamente arrancada e exposta à luz.

    “Aura?” — pensou, confusa, mas sem tempo para elaborar, pois Lyria voltou a mergulhar com velocidade assassina.

    Hendrick recostou-se novamente na cadeira, como se tivesse acabado de decifrar o maior enigma daquela noite, e sorriu satisfeito enquanto a batalha prosseguia, cruel e desigual.

    O ar vibrava com o som das asas de Lyria, rasgando o espaço numa velocidade estonteante. Li Wang desviava como podia, o corpo marcado por cortes profundos e arranhões, enquanto as garras deslizavam pelo concreto, arrancando pedaços de chão e espalhando estilhaços.

    Ofegante, com os pulmões queimando, Li Wang se manteve firme, os olhos analisando friamente cada movimento da inimiga. E então, em meio àquelas investidas furiosas e quase coreografadas, percebeu: num giro rápido de Lyria sobre si mesma, as axilas da criatura estavam desprotegidas, sem as escamas finas e resistentes que cobriam o restante do corpo.

    “Ali…”, pensou, mordendo o lábio inferior para conter a dor e o medo.

    Na próxima investida, quando Lyria mergulhou numa linha oblíqua, a velocidade cortando o ar, Li Wang se agachou instintivamente, rolou para o lado e, num movimento seco e veloz, puxou a faca que mantinha presa à cintura.

    Sem hesitar, impulsionou-se para cima e cravou a lâmina com toda a força no vazio entre as escamas, sob a axila esquerda de Lyria.

    Um grito ensurdecedor explodiu do peito da criatura.

    Lyria voou desgovernada para trás, batendo violentamente as asas para se equilibrar, o corpo se contorcendo, enquanto o sangue escuro escorria em linhas espessas pelo braço até a ponta dos dedos afiados.

    Li Wang, arfando, com o sangue quente pulsando em cada batida frenética do coração, ergueu-se lentamente e, mesmo coberta de feridas, abriu um sorriso torto, debochado, enquanto limpava o sangue do canto da boca.

    — Então você sangra? — zombou, a voz rouca e trêmula, mas carregada de desprezo ácido.

    Lyria arregalou os olhos em uma fúria descomunal, os músculos se tensionando sob a pele marcada pelas escamas cintilantes. Ela cravou as garras na faca e, com um puxão violento, arrancou-a da carne, jogando-a no chão com desprezo.

    O sangue continuava a jorrar, manchando as escamas e o solo do campo.

    — EU VOU TE MATAR, VADIA! — berrou Lyria, a voz reverberando como uma onda de choque pelas arquibancadas vazias, enquanto suas asas batiam com tanta força que levantaram uma cortina de poeira.

    Li Wang permaneceu imóvel, apenas observando.
    Notou que, ao contrário de Vireon, cuja carne se regenerava em segundos, a ferida aberta na axila de Lyria não cicatrizava. O sangue continuava a escorrer, latejante, exposto e vulnerável.

    — Não vai se regenerar, passarinho? — ironizou, inclinando levemente a cabeça, com o mesmo meio sorriso zombeteiro, mesmo que por dentro lutasse para se manter de pé.

    Enquanto a tensão atingia um novo ápice, Hendrick, ainda sentado confortavelmente na cadeira, observava tudo com olhos semicerrados, pensativo. Passou a mão lentamente pelo queixo, inclinando-se um pouco mais para frente.
    Sua expressão não era de preocupação, mas de interesse genuíno, como quem tenta decifrar um mistério complexo.

    “Como é possível…?”, refletia, sem tirar os olhos de Li Wang.
    “Todos os seres vivos possuem aura… é um princípio absoluto… E, ainda assim… ela age, pensa, luta… sem aura alguma?”

    Seu olhar permaneceu fixo nela, fascinado.

    O espetáculo, afinal, estava apenas começando.

    Lyria pairava no ar; o sangue ainda escorria da ferida aberta, mas o olhar não transmitia apenas fúria, havia também um brilho perverso de superioridade e prazer.
    Inclinou levemente a cabeça, os chifres curvados reluzindo sob a luz fria dos holofotes espalhados pelo estádio vazio. Então, com a voz aveludada e cruel, pronunciou, como quem sentencia o inevitável:

    — Mesmo que possa me fazer sangrar, você sabe muito bem que só morrerei se meus sete corações forem destruídos…

    Ela sorriu, lasciva, deixando a frase pairar no ar como uma névoa tóxica, tentando minar qualquer resquício de esperança.

    Li Wang mordeu o canto da boca com força, contendo o ímpeto de recuar.
    Suas mãos trêmulas, doloridas, apertavam com firmeza a outra faca que ainda restava. Ela tentava manter o raciocínio frio, mas o corpo, exausto e dilacerado, dava sinais claros de fraqueza.

    De súbito, Lyria ergueu um dos braços, o pulso pálido exposto.
    Num gesto ágil, deslizou a unha afiada pela carne, abrindo um corte profundo.
    O sangue jorrou em cascatas espessas, derramando-se no chão com uma velocidade absurda, até formar rapidamente uma poça densa e negra, que se espalhava como um miasma vivo pelo gramado gelado.

    O líquido cobriu uma vasta área, ganhando uma coloração entre vinho escuro e ébano, absorvendo a luz ao redor.

    Enquanto o sangue fluía, Lyria passou a lamber lentamente o ferimento, que diante de Li Wang se recompôs, fechando-se com uma naturalidade grotesca, como se nunca houvesse sido aberto.

    Mas o que paralisou Li Wang não foi a regeneração…
    Foi a poça.

    Ela permaneceu ali, silenciosa, até que um som surdo e viscoso começou a ecoar, o sangue borbulhava, emitindo estalos abafados, como se fervesse sob uma força invisível.
    As bordas vibravam de forma irregular, formando pequenas ondas que reverberavam pelo espaço.

    Li Wang, instintivamente, recuou um passo.
    O olhar fixo no centro da poça, onde, de repente, uma mão pálida, feminina e delicada emergiu com violência, os dedos crispados, lambuzados pelo fluido negro e pegajoso.
    Em seguida, outra mão.

    Ambas se cravaram no solo, agarrando-se com força ao gramado sintético, enquanto um corpo esguio começava a se erguer, puxando-se para fora daquele abismo de sangue.

    O coração de Li Wang acelerou descontroladamente quando percebeu: era Lyria.
    O mesmo corpo nu, de curvas hipnotizantes, pele marcada pelas escamas finas e sedosas, cabelos negros em cascata, olhos predadores.

    Antes que pudesse sequer formular um pensamento racional, outras figuras começaram a emergir, rasgando a superfície da poça como se fosse um véu translúcido.
    Mais uma…
    E outra…
    E outra…

    Até que, ao todo, quatro mulheres idênticas a Lyria estavam ali, de pé, envoltas no mesmo manto de sangue que as havia gerado.
    Cada uma trazia o mesmo semblante de desejo e selvageria, os olhos cravados em Li Wang como predadores à espreita de uma presa indefesa.
    Garras afiadas, asas membranosas retraídas, caudas serpenteando o ar com movimentos quase coreografados.

    O silêncio se instalou por um segundo, quebrado apenas pela respiração pesada e descompassada de Li Wang.

    A poça, então, lentamente cessou seu movimento, como se tivesse cumprido sua função primordial, tornando-se apenas um espelho turvo e inerte sob os pés daquelas entidades.

    As quatro Lyrias se entreolharam, como se partilhassem uma única mente, e, num movimento sincronizado, como predadores treinados, avançaram em direção a Li Wang.

    Ela permaneceu imóvel por um breve instante, olhos arregalados, peito ofegante, a mente lutando para processar a monstruosidade que acabara de testemunhar.
    O frio da noite russa cravava-se em sua pele ferida, mas o calor da adrenalina impedia que sentisse qualquer coisa além do mais puro pavor e a necessidade desesperada de sobreviver.

    “Como… como eu vou vencer isso…?”, pensou, enquanto as quatro versões de Lyria se aproximavam, prontas para despedaçá-la.

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