Capítulo 37 – Gelo e Fúria
Conto: Li Wang
O voo até o Nepal foi silencioso, pesado como a sombra que se arrastava no coração de cada um. Bárbara tentava manter os olhos abertos sobre um livro, mas o cansaço a vencia pouco a pouco. Dayse olhava pela janela, perdida em pensamentos que não ousava compartilhar. Li Wang, no entanto, não conseguiu fechar os olhos nem por um instante.
A voz de Nathan ainda ecoava em sua mente, entrecortada pelo ruído da ligação interrompida:
“Você tem que salvar o rei Taylon Sytoria…”
Salvá-lo de quê? Ou de quem?
E por que Nathan, logo ele, seria o responsável por esse chamado?
Quando o avião finalmente cruzou as nuvens, o horizonte revelou a imponência branca do Himalaia. Cordilheiras se erguiam como muralhas de pedra e gelo, mas havia algo errado. No meio da vastidão intocada, colunas de fumaça negra se erguiam contra o céu, e o brilho distante de incêndios riscava o véu da neve.
Aquela visão a fez lembrar de tempos sombrios. Fumaça assim sempre anunciava destruição. Parte dela queria acreditar que fosse apenas um acidente, uma queimada isolada, mas o coração insistia em lhe sussurrar que poderia ser o prenúncio de um conflito.
Li Wang não tinha como provar. Talvez fosse apenas imaginação… ou talvez estivesse diante do primeiro sinal de algo muito maior.
O corpo dela se retesou. Ainda não sabia o motivo, mas o ar parecia mais denso, como se pesasse contra os pulmões. Talvez fosse apenas a altitude, mas uma sensação insistia em gritar que algo muito além de sua compreensão os aguardava lá embaixo. A viagem havia começado com uma simples ligação, mas, dentro de si, ela tinha certeza que terminaria em um campo de batalha.
E, no fundo, ela sentia que não estava preparada.
O vento cortante atingiu Li Wang assim que seus pés tocaram a pista improvisada. O frio trazia o cheiro de fumaça e ferro queimado, um odor estranho demais para um lugar que deveria ser puro como as montanhas brancas ao redor. Bárbara também pareceu perceber algo, pois apertou o livro contra o peito como se as palavras gravadas fossem escudo. Dayse apenas ajustou o casaco com desleixo, como se quisesse esconder o incômodo.
Um veículo pequeno, de aparência rústica, os aguardava próximo à pista. O motorista, um homem encapuzado, não disse palavra; apenas gesticulou para que entrassem. O motor roncou baixo e o carro seguiu pela estrada de terra rumo a uma cidade no sopé das montanhas.
A cada quilômetro, o ar se tornava mais sufocante. Rancor, desespero… e sangue. Li Wang sentiu os músculos se contrair sem perceber.
— Li… — Dayse quebrou o silêncio, a voz baixa, como se temesse ser ouvida por algo além delas. — Tem certeza de que foi uma boa ideia vir até aqui?
Li demorou a responder. O olhar permanecia preso às sombras entre as árvores da floresta.
— Eu não sei. — A sinceridade pesou no ar.
A cidade parecia respirar mistério. Bandeirinhas coloridas dançavam no vento frio, misturando-se ao cheiro de incenso e poeira. O ar rarefeito queimava nos pulmões, lembrando a todos que estavam em altitude extrema.
Do quarto do hotel, Li apoiou a mão no vidro gelado. Entre as construções simples, algo destoava. Não eram turistas, monges ou moradores locais.
— Estão em movimento… — murmurou ela.
— Quem? — perguntou Dayse, aproximando-se.
Li apontou discretamente. Caminhões pintados de branco, soldados de uniforme claro, rádios nos ombros, passos ritmados. Por um instante, seu coração disparou.
“Nathan… me entregou? Era tudo uma armadilha?”
Mas o brasão que reluzia na lataria a fez hesitar.
Não era a Apocalypses.
Eram soldados da ONU. Alguns rostos até lhe pareceram familiares, memórias de missões antigas.
— Não… eles são da ONU. — Afirmou num sussurro, carregado de dúvida.
Então, a pergunta latejou:
“O que a ONU faz aqui, tão perto do Everest… e em número tão grande?”
O instinto falou mais alto. Li agarrou a mochila e a lançou sobre os ombros.
— O que você está planejando, Li? — Dayse estreitou os olhos.
Li a encarou. Estava cansada, mas firme.
— Quero que cuide das crianças.
O sangue de Dayse gelou.
— Não gosto desse tom. O que você vai fazer?
Li respirou fundo, como quem se despede em silêncio.
— Só confie em mim. Por favor.
O silêncio entre as duas pesou mais do que qualquer palavra.
Por fim, Dayse desviou o olhar, mordendo o lábio.
— Volte viva… ou eu mesma acabo com você depois.
Li sorriu, mas havia amargura no gesto. Saiu pela porta, deixando atrás de si apenas o som abafado da respiração curta de Dayse. Ela permaneceu imóvel, esmagada pela impotência. A memória da última falha: sangue, gritos, perda. Voltou como sombra cruel.
“E se eu fracassar de novo?”
A noite no Nepal parecia mais densa do que o normal. O silêncio das ruelas era cortado apenas pelo som ritmado dos passos dos soldados que ela seguia. Li Wang movia-se como sombra atrás deles, observando enquanto se espalhavam em formações precisas. Quarenta homens, divididos em pequenos grupos de seis ou sete. Organização demais para simples patrulha.
Ela os acompanhou até uma floresta densa nos arredores da cidade. Ali, a escuridão engolia tudo, e apenas o vento grave preenchia o espaço. Decidiu se revelar.
Os soldados pararam de imediato. As armas se ergueram num só reflexo.
— Identifique-se! — gritou um deles.
Li não respondeu. Apenas encarou, imóvel, o capuz projetando sombras sobre o rosto.
— Área restrita! — outro ordenou. — Afaste-se, agora!
O líder avançou um passo, a tensão visível até nos ombros rígidos.
— Último aviso!
Quando um dos homens se aproximou com a arma encostada em sua testa, o frio metálico despertou nela algo instintivo. Li não esperou o fim da frase. Movimentou-se como se o próprio ar cedesse espaço. Agarrou o pulso dele, torceu até ouvir o estalo seco e tomou-lhe a arma. Num segundo, o soldado estava imobilizado, escudo humano em seus braços.
— Ninguém se mexe. — A voz dela cortou o ar, firme, baixa, quase um sussurro mortal.
A frieza dos outros não durou mais que um instante. Disciplina não admite hesitação.
— Atirem! — ordenou o líder.
O disparo ecoou como trovão nas montanhas. Li empurrou o refém para o lado, afastando-o de si. A rajada veio logo em seguida, implacável. As balas não a atingiram, mas uma delas cravou-se no ombro do soldado que ainda caía na neve. Ele gritou, a mão instintivamente tentando estancar o sangue que jorrava, tingindo o branco ao redor de vermelho vivo.
O soldado gemeu baixo. O olhar dele, até então frio e treinado, agora tremia em choque e dor.
Li correu em zigue-zague. A respiração ardia, os músculos respondiam com precisão sobre-humana. Cada bala que passava perto lembrava o óbvio: aqueles homens não estavam ali para proteger.
“Merda… eles atiram para matar.” — Pensou.
Ela se jogou atrás de uma pedra, sentindo estilhaços de madeira e pedra explodirem ao redor. O cerco se fechava. Passos no gelo soavam como tambores de guerra. O rádio deles crepitava ordens: “Cercar perímetro. Cobrir ângulos. Pressão constante.”
A disciplina era assustadora.
Por um instante, a memória a golpeou: ela própria já havia marchado ao lado da ONU.
O peso da verdade a atravessou: eram elite. E não hesitariam em sacrificar o próprio companheiro. O medo a cortou como lâmina. Suas mãos tremeram, mesmo que só por um segundo.
— Consigo vencer um esquadrão sozinha…? — murmurou, quase sem voz.
Um ruído lateral quebrou o devaneio. Um soldado a flanqueava. Li reagiu sem pensar. Disparou contra ele como raio; o cotovelo explodiu no maxilar, derrubando-o. Outro atirou à queima-roupa. O calor das balas roçou sua roupa. Ela torceu o braço dele até ouvir o estalo do ombro, tomou-lhe a arma e atirou contra os joelhos de outro militar. O grito de dor ecoou na mata.
— NÃO SE APROXIMEM! CERCO À DISTÂNCIA! — bradou o líder.
Os homens recuaram, reposicionando-se com perfeição. Frieza absoluta.
Li se manteve baixa, arfando, mas algo estranho acontecia ali, no meio do caos. O corpo parecia leve, os pulmões tragavam o ar rarefeito como se fosse oxigênio puro. As pupilas dilatadas captavam tudo. O coração batia rápido, mas não a incomodava. O campo de batalha ao redor parecia mais lento, como se o tempo tivesse desacelerado só para ela.
“Dois anos atrás… eu jamais conseguiria fazer isso.”
Outro inimigo surgiu pela lateral. O corpo dela reagiu antes da mente. Um disparo seco atravessou a coxa do homem, que caiu gritando.
Os dois últimos abriram fogo juntos, nervosos.
Li correu em linha reta. Direta. Insana. As balas zuniam como enxame metálico no ar gelado. Ela rolava, desviava, avançava. Uma rasteira derrubou o penúltimo, e o joelho dela quebrou-lhe o nariz logo em seguida.
O último tentava recarregar, as mãos tremendo. Li agarrou-o pelo colete e o lançou contra uma árvore. O impacto fez o corpo tombar inerte.
O silêncio caiu de repente. Apenas o eco distante dos disparos reverberava pelas montanhas.
Seis soldados de elite. Todos fora de combate.
Li ficou de pé. A respiração saía em nuvens brancas no ar congelado. O peito subia e descia rápido, mas não havia cansaço real. Apenas alguns arranhões e roupas rasgadas denunciavam o confronto.
Ela olhou para as próprias mãos, ainda trêmulas.
“Isso… tudo isso… sem Azazel.”
Um sorriso nervoso escapou. Dois anos de treinamento, dor e perdas… finalmente entendia o quanto havia mudado.
Com rapidez, arrastou os seis soldados desacordados até uma árvore próxima e os amarrou com cordas de escalada. O primeiro a despertar foi o que ela usara como escudo. O rosto pálido suava, a respiração era curta e dolorosa.
— Q-quem é você…? — a voz oscilava entre incredulidade e raiva.
Li ajoelhou-se diante dele, os olhos frios como aço.
— Sou eu quem faz as perguntas.
O homem cuspiu no chão, tentando resistir às amarras.
— Terrorista desgraçada…
Li pressionou a lâmina da faca contra a perna dele, girando levemente. O grito rasgou o ar frio da montanha, ecoando pelas encostas. A adrenalina queimava em suas veias, mas algo dentro dela vacilou por um instante.
“Eles não são meus inimigos… tecnicamente… não ainda.”
O grito acordou outros dois soldados. Um deles era jovem, de cabelos castanhos claros, aparência frágil, quase deslocada no esquadrão. Os olhos semicerrados pela dor se arregalaram ao ver colegas feridos, sangue na neve, armas espalhadas. Quando fitou Li, havia horror e reconhecimento em sua expressão.
— Pare! Pelo amor de Deus, pare! — gritou, a voz trêmula.
O soldado ferido riu, rouco e maníaco:
— Vai… se foder…
Li cravou a faca novamente, em outro ponto. O segundo grito dilacerou o ar. Ela permaneceu imóvel, encarando a dor e a incredulidade diante dela.
O jovem respirava rápido, engolindo em seco, a cena queimando nos olhos.
— Qual é a missão de vocês? — perguntou Li, a voz baixa e cortante.
O rapaz gaguejou, mas logo firmou o olhar.
— Eu… eu conheço você… — disse, trêmulo. — Você é Li Wang. A traidora da ONU…
Li se inclinou, sua presença era esmagadora como um veneno silencioso.
— Não foi isso que perguntei.
Ela pressionou a faca contra o pescoço do agonizante. O jovem prendeu a respiração.
— Responda… ou ele morre agora. — Disse Li em tom de ameaça.
O ferido, já no limite, murmurou com um sorriso de dor:
— Não fale nada… para ela…
O jovem hesitou, a raiva substituindo o medo.
— Você sabe tão bem quanto nós… — disse, firme — …não temos permissão para falar das missões. Se dissermos qualquer coisa, seremos traidores. E você sabe o que acontece com traidores.
Li estreitou os olhos. A faca deslizava sobre a pele do refém.
— Eu vou matar cada um de vocês se não falar o que quero ouvir.
Antes que pudesse pressionar mais, o rádio preso ao cinto de um dos soldados chiou, interrompendo o silêncio. Interferência estática. Em seguida, uma voz conhecida explodiu no canal, carregada de urgência:
— Atenção, esquadrões! O falso rei Taylon Sytoria desapareceu de Élysium! Repito: o falso rei desapareceu de Élysium! Todos os grupos têm ordem de captura!
Li congelou. O nome ecoou em sua mente como um punhal.
“Taylon Sytoria… o mesmo que Nathan mencionara. Mas… Élysium? Onde diabos era isso?”
Por outro lado, ela sentiu um alívio silencioso percorrer seu corpo. Não precisaria ferir mais os homens que havia feito de reféns. A tensão em seus ombros diminuiu, embora a adrenalina continuasse queimando nas veias.
Ela arrancou o rádio e prendeu-o à própria cintura, o coração disparado. Lentamente, virou-se para os prisioneiros, mantendo a pistola firme na testa do jovem soldado, cada movimento calculado enquanto assimilava a notícia.
— Onde posso encontrar esse… falso rei?
O rapaz manteve a postura firme, treinado, como se soubesse que ela não atiraria de imediato.
— Não sabemos. A única informação que recebemos… é que ele provavelmente está próximo à cordilheira do Himalaia.
Li mediu cada palavra, cada movimento, sentindo a tensão subir, o frio do vento nas montanhas e a adrenalina queimando em cada músculo. Após alguns segundos, guardou a arma e se levantou, sem dizer mais nada.
— Perfeito.
Virou-se de costas e começou a caminhar em direção ao sopé do Everest, cada passo firme e decidido, consciente de que a verdadeira prova começaria quando começasse a escalar a montanha. A mente já calculava riscos, avaliando rotas, obstáculos e a altitude que a esperava.
— Você vai nos deixar aqui? — gritou o jovem, misturando indignação e incredulidade.
Li não respondeu. Um sorriso quase imperceptível surgiu em seus lábios.
“Eles são elite da ONU… não preciso me preocupar com isso.”
Sabia que, assim que saísse daquele local, os homens encontrariam uma forma de se soltar ou chamar reforços. Aquilo não era mais problema dela. Cada decisão precisava focar na missão, não em prisioneiros que, por mais habilidosos, não poderiam alcançá-la ali.
Ela continuou seu caminho, determinada, cada passo aproximando-a do desconhecido que a aguardava.
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