Capítulo 40 – A Tênue Linha Entre o Bem e o Mal
Conto: Li Wang
Após quase dez horas de escalada ininterrupta, o corpo de Li Wang já não parecia mais humano, apenas um fardo de carne exausta, guiado pela força da vontade.
A tempestade havia finalmente cessado, mas em seu lugar ficou o silêncio absoluto das grandes alturas, quebrado apenas pelo som ritmado de sua respiração pesada e do gelo rangendo sob seus pés.
O Campo 2 surgiu enfim em meio à névoa rala. Tendas cobertas de gelo, algumas tombadas, outras ainda de pé, tremendo ao sopro gélido. Ali, o Everest parecia murmurar os últimos segredos de quem ousara subir até aquele ponto
Li Wang se aproximou de uma das tendas ainda intactas e a abriu com mãos trêmulas. Lá dentro, havia vestígios claros de abandono apressado: mochilas abertas, alimentos parcialmente comidos, aquecedores ainda quentes, documentos largados. Algo havia feito os soldados partirem com urgência. Ela sentia isso.
Ao olhar pela abertura da tenda, enxergou silhuetas distantes, movendo-se em fila, como formigas sumindo entre as rochas. Seguiam para mais alto. Provavelmente atrás de Taylon Sytoria.
O rádio em sua cintura chiou.
— Esquadrão Dec para Central: seguimos em busca do alvo. Última possível localização próxima à fissura noroeste, acima da crista.
— Entendido. Mantenham vigilância. Ele não pode escapar.
Li Wang fechou os olhos por um instante.
“Então foi esse o motivo. Nathan não mentiu… Mas por que me pediu isso?”
Dentro da tenda, sentou-se perto da fogueira e aqueceu as mãos.
Comeu algumas barras energéticas e tomou goles de um líquido morno deixado para trás, algo doce, talvez chá de raiz. O calor aliviou por um momento as dores lancinantes, mas não alcançou os ossos doloridos.
Quando tentou se levantar, as pernas falharam.
O chão gelado a recebeu sem pressa.
As mãos de Li Wang se espalmaram sobre a lona da tenda.
O mundo girou.
O corpo tremeu.
Os olhos cederam.
E antes que a escuridão a tomasse por completo… alguém estava lá.
Sentado no canto oposto da tenda, de pernas cruzadas diante do fogo, um jovem de cabeça raspada vestia um manto laranja simples, o mesmo da última tarde antes de desaparecer da vida dela.
Yu Xingjiao Qing.
Seu irmão mais velho.
— Você… — murmurou Li Wang, a voz fraca como o sopro gelado que atravessava a lona.
Yu nem a olhou. Manteve os olhos fixos nas chamas que dançavam, calmo, sereno, como se meditando.
— Irmãzinha… — disse por fim, com sua voz suave, gentil, tão imaculada quanto nas lembranças de infância. — O que você se tornou?
O estômago de Li Wang se revirou.
— Não… você não está aqui… isso é só…
— Uma ilusão? — completou ele, sem mover o rosto. — Talvez. Talvez eu seja apenas sua própria consciência falando com a minha voz. Isso muda alguma coisa?
O silêncio seguinte doeu mais que o frio.
— Você sempre foi forte, Li. Mas força sem compaixão… é só brutalidade. Tudo que te ensinei… foi em vão?
Li Wang tentou se erguer, mas o corpo não respondeu. Apenas apertou os punhos, sentindo as unhas sujas contra a palma.
— Não — sussurrou Li Wang. — Eu só… fiz o que era necessário…
Yu enfim desviou os olhos para ela.
Negros. Calmos.
Mas não havia ternura.
Só tristeza. E decepção.
— Você matou, Li. Dezenas. Talvez centenas.
Ela mordeu os lábios até o gosto metálico surgir.
— Eram assassinos! Monstros! Eu só…
— Não importa quem eram. — A voz dele era baixa, quase compassiva. — O que importa é o que você se tornou. Olhe para suas mãos. Elas já não sabem rezar. Só matar.
Li Wang baixou o olhar.
As mãos.
Rachadas. Cobertas de sangue seco.
Estranhas, como se não fossem mais dela.
— Você… não entende…
Yu se inclinou levemente para a frente.
— Não? Eu vivi para proteger. Morri por isso. E você, irmã… você vive para vingar? Para matar?
Ela tentou falar algo. Qualquer coisa.
Mas o nó na garganta era espesso demais.
— Hoje você é forte. Mas fria. Vazia. A chama que ajudei a acender em você… está quase apagada.
Li Wang sentiu o calor escapar do corpo, como se o fogo diante dela tivesse perdido toda força.
— Pare… — pediu, a voz embargada.
— Você não precisa mais de mim — disse Yu, ainda olhando as chamas. — Só queria saber… por que me esqueceu tão facilmente?
— Eu não te esqueci!
— Não? — ele sussurrou, sereno demais. — Então por que deixou meu templo em ruínas? Por que deixou que seu coração se tornasse um campo de batalha?
As lágrimas cortaram-lhe o rosto.
A boca se abriu. Nenhum som.
Queria gritar que não tivera escolha. Que a guerra a havia forçado, que a dor moldou quem ela era agora.
Mas o silêncio a esmagou.
E Yu sorriu.
Não de ternura.
Não de perdão.
Um sorriso que não lhe pertencia.
O rosto distorceu-se devagar.
Os dentes claros se multiplicaram, a boca alargando-se até quase rasgar o rosto.
O fogo tremulou, como se tivesse reconhecido o intruso.
Era Azazel.
De novo.
Sempre ele.
A risada ecoou, baixa, zombeteira.
— Você quer ser uma heroína, Li Wang… mas tudo que faz é enterrar as pessoas que ama. Continue assim. Logo, não sobrará mais ninguém. Nem você.
Li Wang gritou.
Gritou de raiva. De culpa. De horror.
Socou o chão.
Rasgou a neve.
O sangue voltou a escorrer por suas mãos trêmulas.
Mas quando levantou os olhos, a tenda estava vazia.
Só restava o fogo.
E a escuridão dentro de si.
O sorriso de Azazel ainda pairava no ar, como uma cicatriz que o mundo se recusava a fechar, mesmo depois de Yu se desfazer em poeira no vento.
As pernas não responderam.
O corpo vacilou.
O ar rarefeito pesava como chumbo nos pulmões.
O frio atravessava os ossos.
Caiu sobre a neve.
Uma folha morta, abandonada no gelo.
Antes de perder os sentidos, viu o fogo na tenda oscilar, uma chama que parecia rir de sua fraqueza.
E sentiu o peso da própria alma, despedaçada.
A escuridão a envolveu com a doçura de uma mentira.
E Li Wang desmaiou.
Sozinha.
Derrotada.
Nas sombras silenciosas, o sorriso de Azazel permeava.
Cada fissura na alma dela era um passo.
E a liberdade dele já não parecia distante.
O frio desapareceu.
A dor também.
Li Wang flutuava no vazio.
Uma escuridão morna, silenciosa.
Mas algo a puxava para baixo.
Não era o peso da neve.
Era o passado.
E então… a lembrança veio.
Nítida. Cruel. Impossível de esquecer.
Ela voltou as ser apenas uma garotinha magra e suja, com os pés rachados e o estômago vazio.

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