Conto: Li Wang

    Tinha cinco anos e carregava baldes de água para os cavalos, mesmo sem forças para erguer os próprios braços.
    A fome a consumia como um fogo invisível, ardendo fundo no peito, apertando o estômago até que tudo dentro dela fosse apenas vazio. Um vazio que crescia a cada dia, sugando forças, esperança e até o calor das lágrimas.

    Naquela noite, guiada pela necessidade, rastejou até a despensa do templo Xingjiao, onde seu pai, Nie Qing, reinava como senhor absoluto.
    Um erro impensável. Um risco proibido.
    Mas a fome venceu o medo.

    Li Wang tropeçou, o estalo seco da madeira quebrou o shōji, e o terror desceu pela garganta como pedra.
    Lá dentro… o cheiro veio primeiro: arroz fresco, maçãs adocicadas, pão quente. O perfume era tão forte que doía.
    Ela não hesitou. Sentou-se no chão frio e devorou com as mãos o que pôde, como um animal acuado.
    Comia rápido demais.
    Comia como se cada pedaço pudesse ser o último.

    Foi quando a luz surgiu.
    A chama trêmula de uma lamparina. Passos lentos.
    E a sombra dele.

    O pão escorregou dos dedos pequenos.
    O coração disparou tão forte que ela achou que fosse desmaiar.
    Chorou, não por piedade, mas porque sabia que mãos seriam cortadas.
    “Ladrões devem ser punidos”, sua mãe repetia sempre.

    — Me desculpe… — a voz dela saiu em soluços fracos.

    Mas então… ele a olhou.
    Não havia raiva.
    Não havia desprezo.
    O jovem careca, de manto laranja e expressão austera, se abaixou devagar. A luz da lamparina desenhava sua face serena.

    Ele recolheu o pão e o devolveu às mãos pequenas e trêmulas da menina.


    Ela esperava o castigo.
    Esperava o golpe.
    Mas ele apenas disse, em voz calma, quase deslocada naquele lugar cruel:

    — Coma devagar… ou vai passar mal.

    Li Wang encarou o pão como se fosse uma armadilha. Então levantou os olhos e reconheceu o rosto.
    Yu Xingjiao Qing. O filho mais velho de Nie Qing.
    O herdeiro do templo.
    Aquele cujo toque nela era proibido.

    — Você… não vai me bater? — sussurrou, com as lágrimas ardendo nos olhos.

    Yu pousou a lamparina no chão. Seus olhos, calmos como um lago à noite, refletiam apenas gentileza.
    — Você está com fome… Isso não é um crime.

    Ela baixou o rosto, envergonhada, curvando-se até o chão, a testa contra a madeira áspera.
    — Me desculpa… Eu não queria roubar. Eu só… a barriga doía tanto…

    Ele se ajoelhou, pousando a mão sobre a cabeça dela. Um toque estranho, inesperado — diferente de tudo que já conhecera.
    — Você não roubou. Você sobreviveu.

    As palavras a atravessaram como lâmina. O choro veio contido, soluçado, o pão apertado contra o peito.
    — Mas… minha mãe vai me matar… se souber…

    Yu permaneceu em silêncio por um instante. Quando falou, foi baixo, firme:
    — Ninguém vai te machucar. Não enquanto eu estiver aqui.

    Ela ergueu os olhos.
    — Por quê? Por que está me ajudando?

    Yu sorriu. Não era alegre. Não era amplo. Era um sorriso calmo, quase triste.
    Ergueu-se, estendendo a mão.
    — Venha. Ainda há mais pão. E você não é a única que precisa comer esta noite.

    Li Wang segurou a mão dele. Pela primeira vez em muito tempo, sentiu algo parecido com esperança.

    Saiu correndo até o estábulo, o lugar que chamavam de dormitório das famílias Huang e Wang, concubinas do templo. Do lado de fora, a chuva caiu sem aviso, grossa e pesada. Ela arrancou o vestido e o ergueu sobre a cabeça para proteger os pães, abraçando-os contra o peito.
    O chão era lama, o vento gelado chicoteava o rosto, mas nada disso importava.
    Só pensava em como acordaria todos… talvez sorrindo, talvez em silêncio. O importante era que, por uma noite, teriam o que comer.

    Quando atravessou a porta, encontrou apenas penumbra. Seis lamparinas pendiam dos pilares; três já se apagaram. A luz fraca projetava sombras retorcidas.
    Mesmo com tão pouca claridade, ela percebeu de imediato.
    Ninguém dormia.
    Estavam todos deitados em camas de palha úmidas, com as mãos sobre os estômagos vazios, tremendo. Alguns murmuravam coisas incompreensíveis. Não sabia se era a fome ou o frio que os mantinha acordados, provavelmente os dois.

    As goteiras aumentavam a cada minuto, transformando o chão em um mar de lama fétida. Pequenos roedores corriam pelas vigas, o ranger de suas patas ecoando como um sussurro constante. O ar era pesado, saturado de mofo, suor e desesperança.

    Ela caminhava devagar, cuidando para não escorregar. A lamparina mais próxima lançava uma luz fraca, trêmula, e foi ali que a figura da mãe surgiu da escuridão como um espectro.

    Li-Wei Wang correu até ela. Os olhos arregalados não mostravam alívio, mas pavor.

    — O que é isso nas suas mãos?! Onde você estava?! Por que está nua?! — gritou, a voz trêmula, à beira do choro.

    Li Wang sorriu, ainda sem entender a gravidade, e respondeu com alegria:

    — São pães! O senhor Yu me deu… ele pediu para trazer e dividir com vocês.

    Não houve tempo para mais nada. Um tapa violento acertou o rosto da menina, lançando-a contra o chão lamacento.

    Os pães, que havia carregado com tanto cuidado, agora estavam imundos, afundados na sujeira.

    O mundo girava. O zumbido nos ouvidos abafava tudo. As luzes dançavam diante de seus olhos. Até que, aos poucos, a voz da mãe emergiu, cortante, cruel:

    — Garota idiota! Você sabe o que acabou de fazer?! Havia apenas UMA regra: NÃO chegar perto da família principal! E o que você faz?! Vai direto ao filho mais importante deles!

    Cada palavra era uma lâmina. Li Wang soluçava, confusa. O peito doía, mas não tanto quanto a certeza de que tinha falhado em algo que nem entendia.

    — Desculpa, mãe… eu não quis… — balbuciou, tentando se encolher contra a lama, contra o frio… contra a fúria dela.

    Li-Wei riu. Um riso sem humor, amargo, que cheirava a ódio.

    — Ah! Agora tudo está resolvido. Você já pediu desculpas. Ótimo! Todos os problemas do mundo foram solucionados.

    Andava de um lado para o outro como fera enjaulada, os olhos em brasa. Até que encontrou a pá. Pesada. Fria. Um instrumento banal, agora transformado em sentença.

    — M-Mãe?! O que você vai fazer?! — chorou Li Wang, arrastando o corpo pela lama para tentar fugir.

    Então percebeu que todos estavam olhando para ela. Seus irmãos. Os filhos da família Huang e Wang. Um por um se levantaram de seus leitos miseráveis.

    Nenhum se aproximou. Nenhum estendeu a mão. Apenas observavam.

    Não havia surpresa nos olhares… apenas julgamento. Como se já soubessem que aquilo iria acontecer. Como se, de alguma forma, estivessem torcendo para que acontecesse.

    — Só tenho desgosto… vergonha… nojo de você — cuspiu a mãe.

    Nojo. A palavra atravessou a menina como ferro em brasa. Ela parou de se mover. O coração batia rápido, mas o corpo se recusava a responder. Então vieram os chutes. Um, dois, três. Pesados, sem piedade. A lama se misturava ao sangue, os pulmões ardiam, e ainda assim nada doía mais que aquelas palavras.

    — Eu sabia que deveria ter te abortado. Ou ter deixado seu pai te matar quando você nasceu.

    A pá ergueu-se. O mundo parou. A menina fechou os olhos. Não chorou. Não implorou. Apenas esperou. Talvez a mãe tivesse razão. Talvez fosse melhor assim.

    O estalo foi alto. Um baque metálico, seco, contra algo duro. Mas não contra ela.

    Quando abriu os olhos, alguém estava à sua frente. Um corpo imóvel, firme como muralha. O braço direito interceptava a lâmina da pá.

    Yu.

    O golpe o atingira, mas ele não cedeu. Nem se abalou. Apenas olhou para ela e perguntou:

    — Você está bem?

    Era como se nada mais importasse. Não a mãe, não a violência, não o mundo desmoronando. Apenas a resposta dela.

    Yu trouxe comida. Tanta comida…
    Mas naquela noite, ele trouxe algo maior: proteção.

    E naquele instante, na lama e no sangue, Li Wang descobriu o que era amar alguém.

    Na manhã seguinte, Yu havia falado com o pai, Nie Xingjiao Qing. E o impossível aconteceu: a fome da família Huang e Wang acabou.

    Mas, para Li Wang, a verdadeira mudança já havia acontecido. Não no corpo. No coração.

    Mas a paz era frágil.

    Então, a guerra chegou.

    Nie Qing foi convocado para a guerra sino-vietnamita.
    A notícia se espalhou rápido, como um vento inquieto pelos corredores do templo. Alguns diziam que ele partiria por honra; outros, que era uma punição disfarçada.

    Os dias seguintes foram silenciosos. Tensos.

    As esposas e concubinas fingiam serenidade, mas os olhares longos e vazios traíam o medo.
    As crianças da esposa oficial, os filhos que carregavam o nome Qing, choravam escondido. Alguns tentavam disfarçar, outros se agarravam aos monges em busca de consolo.
    Para eles, Nie Qing era um pai. Rígido, sim. Mas presente. Um nome que vinha associado com afeto, histórias e orgulho.

    Mas para Li Wang… Era apenas um homem distante.

    Um nome murmurado com amargura entre as vigas do estábulo.
    O dono da casa que nunca fora sua.
    O motivo pelo qual não podia comer à mesa.

    E, ainda assim… era seu pai.

    Quando a carta chegou, trazida por um monge silencioso, o templo parou.
    Todos se reuniram no salão principal. O papel, amarelado e sujo de poeira, tremia nas mãos de um dos anciãos.

    Ninguém ousou interromper a leitura.
    Ao final, o silêncio foi rasgado:
    gritos, choros, lamentos contidos e sinceros.
    As mulheres cobriram o rosto. Os filhos mais velhos se ajoelharam.
    A dor reverberava pelas paredes centenárias como cântico fúnebre.

    De longe, encostada em uma das colunas, Li Wang apenas observava.
    Seu coração… não chorava.
    Não por insensibilidade.
    Mas porque não se pode sentir ausência de quem nunca foi presença.

    Ela apenas observou os rostos desfigurados pela dor. Ouviu os soluços e testemunhou orações desesperadas.

    Mas dentro dela… nada.

    Nenhuma lágrima.
    Nenhum nó na garganta.
    Nenhum pensamento gritando “pai”.

    “Ele morreu”, pensou. Mas a frase soava oca.
    Para ela, a morte era apenas mais uma coisa fria.
    Como o chão duro onde dormia.
    Como o arroz sem tempero.
    Como o olhar da mãe.

    E naquele dia, permaneceu em silêncio.
    Como se sua alma soubesse que, para certos corações, perder alguém é apenas outra forma de continuar sozinha.

    O luto mal havia terminado quando o templo foi rasgado por outra tensão.
    Primeiro sussurros, depois murmúrios… até se transformarem em gritos.
    Os ecos da discussão entre Yu Xingjiao e seu irmão Lian Xingjiao se espalhavam pelas paredes como preces distorcidas.

    No salão central, sob a lamparina que tremia com o vento, os dois se enfrentavam.
    A luz projetava sombras longas e desiguais, como se os próprios espíritos duelassem.

    Lian, mais jovem, vestia o traje cerimonial com rigidez. O rosto contraído exibia ambição crua, a ânsia de ser mais que o nome secundário na história de outro. Apontava o dedo contra Yu, a voz carregada de desprezo:

    — Você não está preparado para liderar isso, irmão! Passa tempo demais cuidando dos filhos das concubinas… Se fosse o herdeiro de verdade, já teria punido aquela garota que roubou comida! Ou esqueceu que nossas tradições não perdoam desonra?

    Yu não respondeu. Seu olhar permaneceu baixo, pesado, como se cada palavra de Lian fosse um golpe a mais. O silêncio dele não era submissão, mas o peso de alguém cansado de carregar o mundo nos ombros.

    Lian avançou um passo, firme:
    — O templo precisa de um líder forte. Alguém que não confunda compaixão com fraqueza!

    O coração de Li Wang apertou na sombra da coluna. Parte dela queria que Yu reagisse, que gritasse, que defendesse tudo o que era seu por direito.

    Mas ele apenas ergueu os olhos, lentos e firmes. A voz saiu calma, tão calma que gelou o ar:

    — Talvez você esteja certo, Lian.

    As palavras caíram como pedra em um lago. O salão inteiro estremeceu com o impacto silencioso.
    Lian piscou, confuso. Não era a resposta que esperava.

    Yu deu um passo à frente.

    Caminhou até o altar. Cada batida de seu pé contra as tábuas ecoava como um tambor fúnebre.
    De dentro do manto retirou um pequeno colar, o selo do templo. O símbolo do sucessor.

    Por um instante, apenas o segurou entre os dedos. O rosto austero parecia atravessado por uma dor invisível, como se aquele objeto fosse feito de ferro incandescente.
    Então, com gesto lento e irrevogável, depositou-o sobre a mesa envelhecida.

    O som do metal contra a madeira foi baixo, mas percorreu o salão como trovão contido.

    — Se o fardo do templo pesa sobre mim… talvez ele pertença a você.

    Lian ficou imóvel. A vitória que tanto almejara estava ali, mas o gosto era amargo.
    Não havia glória.
    Não havia triunfo.
    Apenas um vazio incômodo, como se recebesse não um prêmio, mas uma dívida.

    Yu ergueu o olhar. Sua voz era calma, firme, mas carregada de uma dor profunda:
    — O templo é mais do que um nome. Mais do que hierarquia. Ele precisa de paz… e eu já não encontro paz aqui. Nem entre nossos irmãos… nem dentro de mim.

    Por um momento, o vento que atravessava as cortinas de papel pareceu segurar a respiração do mundo.

    Yu concluiu:
    — Tome o templo, Lian. Conduza-o com a sabedoria que acredita ter. Mas… cuide dos pequenos. Até mesmo dos filhos das concubinas.

    As palavras ficaram suspensas no ar como prece. Não eram ordens. Eram legado.

    Li Wang, escondida na sombra da coluna, quase não respirava.
    Ver Yu depositar o colar era como vê-lo sangrar em silêncio. Não era derrota. Era escolha. Uma escolha que ninguém ousaria fazer.

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