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    Conto: Li Wang

    O bosque era suave, mas não silencioso.
    O som da água crescia aos poucos até que, após alguns minutos de caminhada, Li Wang chegou à beira do rio.
    A margem era larga, coberta por pedras lisas e musgo claro. O rio era ainda mais belo de perto, cristalino a ponto de revelar o fundo, com pequenos peixes prateados nadando em círculos e refletindo o céu que pairava acima.

    Li Wang se ajoelhou, retirou o cantil e começou a enchê-lo com cuidado.
    — Talvez… se eu seguir o rio, chegue até a cidade — murmurou.

    Mas, por dentro, o conflito a consumia.

    “E se for uma armadilha?”
    “E se tudo isso for só mais uma ilusão pra me fazer baixar a guarda?”
    O pensamento veio rápido, e doeu.
    Ela já acreditara em rostos gentis antes. Já chamara de lar lugares que queriam sua morte.

    “E se essa cidade for como o Everest… linda por fora, mas feita pra matar quem entra?”

    Ela engoliu seco, sentindo o peso das próprias dúvidas.
    Tudo ao redor parecia belo demais pra ser seguro.
    E ela já aprendera: nada realmente bonito sobrevivia sem esconder algo terrível por baixo.

    Ela fechou os olhos, tentando calar a mente.

    Então algo cortou o ar.
    Um som seco, rápido, como o assobio do vento rasgado.
    Li Wang girou o corpo por instinto e se lançou para o lado.

    Algo atingiu o chão onde estivera ajoelhada segundos antes, espalhando pedras e água num jato violento. O impacto fez o rio vibrar. O cantil escapou de sua mão e rolou até a margem.

    Ela se ergueu num salto, ofegante, os olhos varrendo o céu.

    E então a viu.

    Assim que as asas negras se abriram, a cortina de fumaça se dissipou, revelando por completo sua identidade.
    Lyria.

    Seus pés tocaram o chão com graça e brutalidade, uma fusão de beleza e ameaça. O vestido justo, negro como piche, parecia feito para seduzir e aterrorizar.

    Duas longas meias negras fundiam-se aos saltos que afundavam levemente na terra úmida.

    Seus cabelos negros esvoaçavam livremente.

    E seus olhos… vermelhos como brasas eternas, fitavam Li Wang com uma fome antiga.

    Um sorriso serpentino se abriu lentamente.

    Li Wang sabia: as armas mais perigosas de Lyria sempre vinham disfarçadas de luxúria.

    Mas algo estava diferente.

    Nas mãos, ela empunhava um chicote grotesco — uma arma viva feita de espinhos negros e rubis pulsantes.

    Cada movimento fazia a arma sibilar no ar.

    — Estava com saudade, Li… — sussurrou Lyria, sua voz um misto de mel e veneno. — Espero que esteja mais divertida do que da última vez.

    Li Wang recuou.

    A floresta, que antes parecia um refúgio, tornava-se agora um cemitério em potencial.

    O sussurro do chicote arrastava-se como se tivesse vida, e as asas de Lyria se erguiam como cortinas de uma peça macabra prestes a começar.

    Li Wang jogou a mochila no chão.
    O peso nas costas e o da alma foram deixados para trás.
    Sem desviar o olhar de Lyria, começou a desfazer-se das roupas que a prendiam ao frio do Everest.
    O casaco grosso caiu primeiro, afundando na lama úmida. Depois, o moletom pesado, ainda manchado de sangue seco.
    Cada peça arrancada era como uma lembrança descartada, um fragmento de medo arrancado à força.
    O ar quente do bosque tocou sua pele e trouxe consigo a sensação de libertação, mas também o prenúncio da dor.
    Ela respirou fundo.
    Os dedos tremeram.
    Mas não de frio.
    — Chega de correr… — murmurou, quase para si mesma.

    E então, pela primeira vez desde a luta na Rússia, permitiu que Azazel se manifestasse.

    Veias negras emergiram do cristal cravado em seu peito, pulsando como raízes vivas. Elas se espalharam por sua pele, contornando seu corpo como serpentes que reivindicavam um altar esquecido.

    Uma energia demoníaca rasgou o ar ao redor, densa, viva, quase consciente, envolvendo-a num manto de trevas que respirava, rugia e se contorcia ao redor dela.

    O traje se formou sobre seu corpo como uma maldição que a reconhecia, moldando-se aos músculos com crueldade ritualística.

    Era a armadura negra de Azazel.

    Um pacto materializado. Uma sentença vestida.

    Sua presença tornou-se sufocante, brutal, animalesca, um eco do próprio inferno pulsando sob a carne.

    Lyria sorriu.

    Um sorriso cheio de escárnio.

    — Uau… — disse ela, cruzando as pernas no ar como se flutuasse sentada sobre o próprio ar. — Quinze dias… e você ainda é a mesma coisinha frustrante de antes?

    Li Wang não respondeu.
    Os olhos estavam fixos, as pupilas dilatadas, o sangue fervendo sob a pele.

    Então, ela avançou.

    Num movimento explosivo, desapareceu da vista comum.
    A terra sob seus pés foi lançada para trás com a violência do impulso. Em uma fração de segundo, estava diante de Lyria com o punho cerrado, cravejado pela energia negra, prestes a esmagar o rosto daquela criatura infernal.

    Mas, a poucos centímetros do impacto… algo mudou.

    Um baque seco.
    Um silvo cortante.
    E o mundo girou.

    Li Wang foi arrancada do ar como se tivesse sido atingida por um raio. O corpo espiralou violentamente antes de se chocar contra o tronco de uma árvore colossal, que rangeu e rachou com o impacto.

    A dor veio como uma onda quente e sufocante.
    O ar fugiu dos pulmões.
    E quando tentou respirar, sentiu.

    Algo estava cravado em seu abdômen.

    Olhou para baixo.

    Uma esfera de ferro do tamanho de uma bola de futebol girava lentamente em sua barriga, coberta por espinhos retorcidos.

    Ela arfou, mas não sangrou.

    Azazel impedia o sangue de sair do corpo, costurando-a por dentro.

    “Se não fosse por ele… eu já estaria morta.”

    — Você foi tão previsível… — disse uma voz fria, quase entediada.

    Li Wang ergueu o rosto, ofegante.
    Diante dela, um jovem.

    Alto. Esguio. Cabelos escuros caindo sobre o rosto.
    A pele pálida, quase translúcida. Os olhos… sem cor. Eram cinzentos, mas não refletiam nada — como vidro morto. O sobretudo cinza que vestia tremulava suavemente, indiferente ao caos.

    — Quem… é você…? — rosnou ela.

    O rapaz deu de ombros.
    — Eu? — disse, sem emoção. — Sou só mais um peão nesse jogo idiota. — Olhou para Lyria. — Ela tava demorando demais pra matar você. Resolvi ajudar.

    — Tsc… — Lyria suspirou, girando o chicote nos dedos. — Eu estava me divertindo, Lethos.

    — É sempre isso com você… diversão, gracinhas… enquanto eu faço todo trabalho. — Ele girou um pequeno anel de ferro nos dedos, o mesmo que provavelmente invocara aquela esfera.

    Li Wang, ainda prensada contra a árvore, sentia o artefato girar em seu abdômen.
    Os espinhos apertavam, como se quisessem rasgar a carne.
    A dor queimava… mas ela não gritou.

    Em vez disso, agarrou a esfera com a mão esquerda.
    Os espinhos perfuraram sua palma, transpassando músculos e ossos.
    O sangue escorreu, quente, pulsante, mas ela não hesitou.

    Com um rugido, arrancou o objeto do corpo e girou o tronco, lançando-o de volta contra Lethos.
    A esfera cortou o ar como um projétil vingativo, zunindo com força.

    Mas parou.

    A poucos centímetros do rosto do rapaz, ela simplesmente… flutuou.
    Girando devagar, prisioneira de uma força invisível.

    Lethos suspirou, entediado.
    — Fraca. — Murmurou. — Foi pra isso que você perdeu, Lyria?

    Com um leve gesto, virou a palma para baixo.
    A esfera caiu no chão com um som oco, descartada.

    Li Wang arfava.
    O corpo tremia, a mão sangrava em rios, mas os olhos… ardiam.

    — Maldito… — sussurrou, o gosto metálico do sangue na boca. — Covardes… dois contra um?

    Lyria riu, dando um passo à frente.

    — Você queria uma segunda chance, não queria? — disse ela, chicoteando o ar com o artefato cruel que tinha nas mãos. — Bem… aqui está. Mas sabe qual é o problema das segundas chances, Li? Elas geralmente são piores que a primeira.

    Li Wang cuspiu sangue no chão.

    Mas então, algo mudou.

    O sangue que escorria de sua mão começou a brilhar com uma luz negra e densa, como fumaça viva.  

    Os músculos se costuraram, os ossos se alinharam, e a pele se refez.

    Ficou apenas uma cicatriz escura.

    Um lembrete do poder que habitava dentro dela.

    — Eu não sou a mesma de antes.

    Lyria apontou o chicote na direção dela.

    — Vamos ver quanto tempo você aguenta antes de implorar pela morte. Eu aposto… cinco minutos.

    Li Wang sorriu.
    O sangue escorria, seu corpo doía, mas havia fogo nos olhos.

    — Pode apostar o que quiser. Mas se eu cair… — ergueu o olhar, os olhos brilhando como carvão aceso — Levo vocês comigo.

    O chicote de Lyria estalou, mas hesitou e pela primeira vez, pareceu medir forças.

    Lethos recuou sutilmente.

    Ferida, cansada e cercada pelo impossível…
    ainda assim, Li Wang permanecia em pé.
    Uma força viva, indomável, que nem o próprio inferno ousaria subjugar.

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