Capítulo 48 – Ascensão Profana
Conto: ?
Li Wang sentia o corpo falhar.
O frio avançava pelas veias, e a dor antes insuportável, começava a perder o sentido. Cada batida do coração era mais fraca, mais distante. O mundo ao redor se dissolvia num borrão de luzes e sons, como se o próprio universo a estivesse esquecendo.
Ela não via mais Lethos, nem Althaia, nem o campo de batalha. Só o peso doce e morno do fim.
A morte, enfim, a alcançava.
Mas então, algo quebrou a sequência natural das coisas.
O instante seguinte não chegou.
O último sopro ficou preso em seus pulmões.
A dor congelou antes de se tornar silêncio.
Li Wang abriu os olhos, ou achou que abriu. Tudo estava parado.
As brasas não tremeluziam. O sangue não caía. O ar não se movia.
Até o som, aquele ruído abafado, fora arrancado do mundo.
E foi só então, nesse espaço entre o último suspiro que ele surgiu.
Azazel.
Não mais como a sombra sussurrante que a manipulava, nem como a presença incômoda presa ao cristal. Surgiu em sua forma verdadeira, horrenda e sublime.
Ergueu-se diante dela como um eclipse vivo, devorando toda luz. As asas colossais, afiadas como lâminas, abriram-se em imponência silenciosa. Seu corpo era uma simbiose do celestial e do grotesco — músculos delgados sobre um esqueleto exposto, tendões que pulsavam como serpentes negras sob a pele pálida. No rosto, não havia olhos, boca ou nariz — apenas fendas verticais, profundas e escuras, de onde emanava um vazio ancestral. Uma escuridão que não apenas engolia a luz… mas também a esperança.
Li Wang tentou falar.
Mas o ar já não existia.
Azazel inclinou a cabeça. Os longos dedos se uniram diante do peito, num gesto que poderia ser reverência… ou ironia.
Sua voz não saiu da boca, ecoou dentro dela, como um trovão em pensamento.
— Esta é a última vez que lhe pergunto, garota.
A voz reverberou com o peso de um juramento antigo.
— Você quer meu poder?
Ela quis dizer “não”. Quis resistir. Quis morrer com o mínimo de orgulho que ainda lhe restava. Quis morrer como Li Wang, não como brinquedo de um demônio.
Mas o corpo tremia, e o que restava da alma, gritava em silêncio.
Cada lembrança, o riso de quem amava, o calor de mãos que já não podia tocar, atravessava-a como lâminas.
Ela queria desistir.
Queria deixar a dor levar tudo, ser engolida e esquecer.
Mas algo dentro dela, o lado que ainda chorava, que ainda sonhava, que ainda amava. Recusou-se a morrer.
E esse lado, miseravelmente teimoso, sussurrou antes que ela pudesse impedir:
Não havia sobrado espaço para orgulho.
Só dor.
E na dor… ela cedeu.
“…Sim.”
A resposta não foi um som, foi um pensamento nu, cru, desesperado.
E era tudo o que Azazel precisava.
O mundo voltou a se mover.
As brasas voltaram a brilhar. O sangue caiu.
Mas onde antes havia uma mulher morrendo, havia algo diferente.
Li Wang riu.
Mas não era mais ela.
Era uma risada grosseira, gutural, distorcida, um som que jamais deveria vir de um corpo humano. O tórax vibrava com aquele riso, mesmo mutilado.
Do rosto de Li Wang, uma máscara começou a surgir, fundindo-se à carne como se tivesse nascido dela mesma. Agora tinha a forma de uma coroa de chifres longos e finos, cobrindo totalmente o rosto e deixando apenas frestas vermelhas em forma de runas, de onde emanavam olhos incandescentes, como brasas vivas. No centro do elmo, uma fenda em formato de diamante brilhava com intensidade, refletindo o símbolo do domínio de Azazel. O cabelo negro de Li Wang escapava por entre as frestas, longo e revolto, flutuando como se estivesse imerso em energia sombria.
Fios negros, como serpentes vivas, emergiram dos membros antes decepados de Li Wang, rastejando pelo chão quente e ensanguentado, farfalhando como raízes famintas em busca de carne.
Cada fio pulsava com uma aura vermelha, viva e faminta, como se tivesse vontade própria.
Eles se enrolaram nos membros perdidos, o braço e a perna, e, com precisão cruel, costuraram ossos, carne e nervos, recompondo cada detalhe do corpo mutilado.
O som era grotesco e hipnotizante: estalos de ossos se realinhando, carne sendo fundida e músculos se contraindo em agonia, como se a própria vida estivesse sendo costurada de volta por mãos invisíveis e impiedosas.
E então… os membros voltaram.
Como se jamais tivessem sido arrancados.
O corpo agora não era apenas reconstruído, era reformulado.
Algo acima do humano.
Além da vida.
Aquele era o despertar de Azazel.
E Li Wang… havia desaparecido.
Com lentidão ritualística, Azazel se ergueu.
Não houve impulso. Nem pressa. Apenas autoridade crua.
Cada movimento parecia pesar toneladas, e ainda assim possuía uma fluidez predatória.
Lethos, sempre entediado, sempre apático, recuou como um animal acuado.
Seus olhos se arregalaram. Um arrepio atravessou-lhe a espinha. Aquilo não era Li Wang.
Não era algo que ele pudesse conter.
— …Merda. — Murmurou, as mãos prontas para se defender. Mas sabia que pouco poderia fazer.
Althaia, que até então estava de costas, virou-se lentamente.
O olhar tranquilo e curioso que sempre carregava… mudou.
Seus olhos rubros brilharam com intensidade renovada, não de medo, mas de puro interesse.
O silêncio que precedia a fúria foi rasgado por um som visceral: carne se rasgando por dentro.
Azazel curvou o tronco, os ombros tremendo em espasmos monstruosos, e cravou a mão na própria coluna vertebral. A carne se abriu, como se implorasse para ser violada por sua presença, e um rugido animalesco escapou de sua garganta, tão brutal que o chão tremeu.
As aves da floresta próxima levantaram voo em debandada, gritando em pânico.
Com um puxão bestial, ele arrancou a própria espinha, mas ainda não havia terminado. Cada vértebra se alongou, torcendo-se e entrelaçando-se em carne viva, músculos latejantes e nervos pulsantes. A estrutura grotesca se contorcia como se tivesse vontade própria.
No final, sua espinha havia se tornado uma lâmina curva, irregular, obscena, negra como obsidiana, vibrando com energia profana.
Era uma foice infernal, não feita para matar… mas para aniquilar.
A arma ainda gotejava fragmentos de fluido negro quando o corpo de Li Wang tombou, inerte, vazio.
Mas apenas por um instante.
Antes mesmo de tocar o chão, Azazel já o reanimava.
Fios invisíveis de energia negra, capazes de rasgar a realidade ao redor, envolveram a carne como serpentes famintas.
Os ossos estalaram, os tendões foram costurados de volta como fios de aço tensionados, e os músculos reagiram como cordas vivas sendo manipuladas como por um mestre marionetista.
O som era grotesco. Carne sendo puxada, ossos se realinhando com estalos secos, e algo que não deveria se mover… se movendo.
Era como ouvir um corpo sendo remontado contra sua vontade, como se o próprio universo protestasse contra aquilo que acontecia.
Os ruídos ecoavam pelo campo com um peso sinistro, como se cada som carregasse um pedaço da sanidade de quem o ouvisse. O corpo voltou à vida, tomado por uma força que moldava cada centímetro em algo inumano, suas vestes começaram a se moldar, transformando-se em uma armadura negra, lustrosa e viva, feita de um metal que parecia pulsar com consciência própria.
Fendas e veios incandescentes em vermelho atravessavam a superfície, como se energia infernal fluísse incessante por dentro dela. Cada junção da armadura era reforçada com espinhos e bordas afiadas, irradiando uma brutalidade quase tangível, transmitindo dor e poder a cada movimento.

Althaia inclinou a cabeça, observando a criatura agora erguida diante dela: completamente regenerada, membros reconstruídos e um vazio grotesco por trás da máscara.
— Então… — murmurou, quase hipnotizada. — …é assim que você realmente se parece?
Li Wang não existia mais.
Restava apenas Azazel.

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