Capítulo 53 – Anóxia
Narrador: Azazel
O rugido da própria fúria ecoou entre as árvores, pesado o bastante para fazer o ar vibrar. Mas, de repente, outro som o engoliu, um assobio agudo, cortante, letal.
Como um míssil.
Azazel virou-se no último instante.
“Tarde demais.” — Foi o que Lyria pensou.
Mas estava errada.
A mão dele subiu veloz como um chicote, interrompendo algo no ar com um estalo seco. Os dedos dele fecharam-se ao redor de um pescoço fino.
Lyria.
Ela havia mergulhado do céu como um cometa desesperado, esgotando cada fio de aura, cada músculo que ainda atendia seu chamado, apenas para erguer voo mais uma vez.
E agora… estava suspensa no ar, imóvel, presa como um pássaro esmagado no punho de um predador.
Um buraco aberto e fumegante dilacerava seu abdômen.
O sangue escorria pelas pernas em fios grossos, pingando no chão como chuva pesada.
As asas tremiam, não de medo, mas de pura exaustão.
Azazel aproximou o rosto dela de sua máscara.
— Ainda tenta? — murmurou. A voz vibrava como metal arranhando pedra.
O rosto de Lyria se contraiu. Nada de dócil restava ali. Só dor. Só ódio silencioso.
Ela não gritou. Não lhe daria esse prazer.
Apenas continuou a encará-lo, mesmo quando a borda da visão começou a se tingir de preto e o mundo parecia escorregar para longe.
Azazel a jogou no chão.
Como quem larga um objeto quebrado.
O impacto ecoou seco, brutal, arrancando um jorro fresco de sangue de sua ferida aberta.
Ele deu um passo à frente.
E riu.
Uma risada que não vinha da garganta.
Vinha de algum lugar mais profundo.
Mais antigo.
A floresta tremeu.
As árvores pareceram encolher.
Até o ar ficou mais pesado, denso como chumbo derretido.
— Alguém mais? — bradou Azazel, abrindo os braços. — Alguém mais ousa me desafiar?
O eco de sua voz ainda morria por entre as árvores quando um silêncio estranho tomou a floresta, um silêncio denso, atento, quase reverente.
E, dentro desse silêncio, algo chamou sua atenção.
Um detalhe.
Um respiro.
Uma presença que não temia.
Azazel abaixou os braços. Sua fúria recolheu-se com a precisão de uma lâmina voltando para a bainha.
Ele ergueu a visão… e a encontrou.
Althaia.
Imóvel.
Ensanguentada.
Azazel a fitou como se, de repente, todo o resto do mundo tivesse deixado de existir.
Ele deu um passo.
Depois outro.
Lento, firme, arrastando consigo uma sombra que parecia maior do que o próprio corpo.
Caminhou até Althaia sem desviar o olhar.
Lyria jazia entre eles, caída, sufocada de dor, respirando com dificuldade, tentando manter os olhos abertos.
Azazel simplesmente passou por ela como quem cruza por cima de um galho quebrado no chão.
Nem um olhar.
Nem um gesto.
Nada.
Quando parou diante de Althaia, sua voz reverberou:
— Mesmo fraca… você me divertiu. Sinta-se honrada, pois viverá eternamente dentro de mim.
A ponta da foice ergueu-se.
E então desceu.
Lenta.
Deliberada.
Fria.
O aço penetrou entre os seios de Althaia.
Ela não gritou. Não estremeceu.
Apenas olhou para baixo, com um vazio que não era resignação, era exaustão absoluta.
Aceitava, enfim, que sua vida chegara ao fim.
Azazel puxou a lâmina para baixo.
O som: um estalar úmido, fibroso, impossível de confundir rasgou o ar.
Quando o tórax se abriu, a visão era tão absurda que desafiava a lógica.
Sete corações.
Entrelaçados, palpitando em ritmos distintos.
Seis ainda vivos.
Um deles, perfurado, enegrecido, inútil.
Azazel inclinou a cabeça, admirando a cena como um colecionador diante de um artefato único.
Sua mão envolveu um dos corações ainda vivos.
E o arrancou.
Um puxão rápido.
O corpo dela estremeceu inteiro, mas nem assim ela reagiu.
A máscara reagiu por ela.
Fissuras surgiram como rachaduras em um ovo prestes a romper.
A parte inferior se abriu, expandindo-se de forma antinatural.
Dentes serrilhados brotaram do metal, montando uma boca que não deveria existir.
Uma boca faminta.
O coração ainda batia quando ele o levou àquela abertura grotesca.
Foi então que o ar mudou.
Algo vibrou, profundo, ancestral, errante.
Um som que não era humano, nem divino; não era idioma, nem música.
Era um sussurro vindo da terra, do ar, do vazio entre os mundos.
“Ανοξία.”
A palavra não ecoou.
Explodiu.
Como um decreto antigo demais para ser compreendido.
O corpo de Azazel incendiou-se sem aviso.
Chamas brotaram dele como se sempre estivessem ali, esperando permissão para escapar.
Fogo alto, violento, absurdo, como se seu corpo fosse feito de pura substância inflamável.
O fogo tomou conta do chão e do ar, e num instante o corpo de Azazel tornou-se num clarão branco e voraz.
Althaia, mesmo à beira da morte, arregalou os olhos.
Não em dor.
Não em esperança.
Mas em espanto puro, ao ver seu próprio executor sendo consumido vivo diante dela.
Azazel queimava.
Queimava vivo.
O coração que ele segurava virou poeira antes de tocar a boca grotesca.
E então, pela primeira vez, Azazel rugiu.
Mas o som não era apenas dele.
Era estridente, esmagador, insuportável, como metal sendo moído contra ossos.
Mas havia algo pior escondido ali.
Uma segunda voz.
Um eco humano, desesperado, quebrado… a voz de Li Wang, que reverberava junto à de Azazel.
Ambos gritavam dentro do mesmo corpo.
Um grito de dor, agonia e puro terror, como alguém sendo arrancado de si mesmo por dentro.
O som atravessou a floresta.
As árvores estremeceram.
O solo vibrou sob os pés.
Do alto do paredão onde minutos antes Lethos se escondera, três figuras emergiram contra o céu incendiado, recortando-se como presságios.
A primeira caminhava à frente, uma guerreira cuja mera presença parecia elevar a temperatura ao redor.
Os cabelos castanhos, longos e revoltos, caíam como uma crina indomável. Cicatrizes finas riscavam o rosto com precisão de memórias antigas, marcando-a sem roubar sua beleza severa. Mas nada chamava tanto atenção quanto seu braço esquerdo:
não era carne, nem metal, aquilo era fogo puro.
Um membro inteiro feito de chamas vivas, moldado na forma de um braço humano, cada movimento deixando rastros incandescentes no ar.
Sua armadura pesada, escura e adornada por arabescos metálicos, contrastava com o tecido laranja queimado preso à cintura. E por fim, a espada descansava sobre o ombro, seu corpo inclinado à frente sugeria que ela poderia avançar a qualquer momento, uma tempestade em forma humana, irritada por natureza e perigosa em cada gesto.
À esquerda dela caminhava um homem de postura silenciosa, vestido elegantemente.
Cada fivela, cada compartimento oculto, cada peça milimetricamente ajustada ao corpo denunciava que ele era mais do que aparentava.
A máscara branca e lisa, sem boca, com apenas uma fenda estreita para os olhos tornava-o ilegível, quase como um fantasma.
À direita vinha outro homem, cuja simples presença cortava o ar.
Traços orientais elegantes, olhos escuros atentos, cabelos negros caindo em mechas rebeldes sobre a testa. Cicatrizes discretas quebravam a harmonia de sua beleza e lhe davam um ar afiado e perigoso, uma linha pálida na clavícula e outra atravessando o pescoço.
Vestia-se despreocupadamente: camisa negra entreaberta, postura solta, mãos nos bolsos, como se o caos ao redor fosse apenas um detalhe previsto.
Os três permaneceram ali, no topo do paredão, observando as chamas devorarem Azazel.
Enquanto ele ardia, largou a foice e soltou um grito inumano, agudo, dilacerante, tão poderoso que fez o ambiente tremer.
No alto, as três figuras não reagiram; apenas observavam sua agonia, como quem testemunha algo inevitável.
Então, um homem surgiu diante dele com a velocidade de um trovão.
Calmo. Perigoso.
Cabelos escuros até os ombros, rosto firme, traços precisos, olhos ocultos por óculos escuros.
Alto, de ombros largos, vestia jaqueta de couro negra, camiseta com estampa de caveira, calça social escura e correntes discretas, um equilíbrio perfeito entre elegância e rebeldia.
Sem hesitar, desferiu um chute direto no peito de Azazel.
O impacto o lançou vários metros para trás.
As chamas que o consumiam se extinguiram no instante da colisão.
— Cala a merda da boca, capeta desgraçado — rosnou o homem da jaqueta, sem sequer lhe dar um olhar.

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